PAULO SOTERO
A percepção dominante de que o Brasil é um país em franca ascensão, ilustrada pela imagem do Cristo Redentor em decolagem que a revista The Economist estampou em sua capa de 14 de novembro, foi construída aos poucos, ao longo do último quarto de século. Ela reflete a realidade dos avanços internos que o País fez desde a redemocratização nos campos político, econômico e social e o pragmatismo com que enfrentou e superou as muitas crises que atravessou no período. A imagem positiva é hoje enfatizada pelo carisma do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que é reconhecido por sua biografia e tratado como uma celebridade, um superstar na cenal global. A durabilidade dessa imagem dependerá, porém, da forma como ela for interpretada e usada pelo País e seus governantes.
Ela será reforçada e ajudará a produzir dividendos reais se servir de estímulo ao aprofundamento da integração interna e internacional do Brasil como um país ocidental empenhado em reduzir disparidades sociais e que pauta suas ações pelos valores democráticos que lastrearam sua recente transformação. Uma nação que emerge, em suma, porque persegue com eficácia a superação dos problemas domésticos que limitam seu horizonte futuro: infraestrutura deficiente, educação e saúde de baixa qualidade, justiça morosa, excesso de regulamentação, insegurança pública e uma entranhada cultura de impunidade.
A imagem favorável do momento poderá, no entanto, desbotar e voltar-se contra o País, do qual o mundo agora espera e exige mais, se for tomada como um mero afago na vaidade nacional e inspirar devaneios de grandeza e de influência global que estão acima e além da capacidade de ação brasileira. O risco não é trivial. Ele é sempre lembrado nas análises sobre a ascensão brasileira e aumentou perigosamente nas últimas semanas de 2009 com a decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de elevar o protagonismo que imprimiu à ação diplomática de seu governo, apresentando o País como voluntário para uma improvável missão de mediador da crise entre Teerã e a comunidade internacional em torno do programa nuclear do governo iraniano. “Talvez a maior ameaça ao Brasil seja a arrogância”, advertiu a revista The Economist na mesma reportagem de capa em que projetou a ascensão do País ao ranking das potências econômicas nos próximos três a cinco anos, à frente da Inglaterra e da França.
Presumindo que o País fará as escolhas certas nos anos à frente e assumirá um espaço no mundo proporcional às suas dimensões continentais e ao sonho coletivo dos brasileiros de viver numa sociedade mais justa e próspera, o que não é óbvio neste final da primeira década do século xxi, os historiadores do futuro provavelmente destacarão a importância da continuidade na aplicação de políticas sensatas como principal motivo da transformação e identificarão três momentos-chave: a resolução sem acidentes do processo de impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, em setembro de 1992, que testou severamente as nascentes instituições democráticas apenas quatro anos após sua adoção, na Carta de 1988; a conquista da estabilidade econômica alcançada pelo real, em 1994, que levou seu autor, Fernando Henrique Cardoso, à presidência por oito anos, inaugurou um período de reformas que preparou a decolagem da economia e permitiu que um Brasil em paz consigo mesmo e mais seguro de si buscasse novos espaços de atuação política e econômica fora de suas fronteiras; e, por fim, a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, primeiro presidente saído do povo a chegar ao poder num país historicamente injusto e desigual. O sucesso do governo Lula, facilitado por ventos favoráveis vindos de fora, por uma agressiva expansão de programas de distribuição de renda e de acesso ao crédito e pelo inigualável carisma pessoal do presidente, deu legitimidade e robustez às transformações internas, refletidas na redução significativa da pobreza, na ampliação da classe média e na manutenção da estabilidade da moeda.
O inegável êxito do governo Lula certamente foi facilitado pela explosão da demanda por commodities e pelo forte aumento das exportações, impulsionados pela expansão do pib mundial e pelo espetacular crescimento da China, que o agronegócio e o setor de mineração estavam preparados para atender. O novo perfil energético do País, criado pelas descobertas de petróleo do pré-sal e pelo sucesso da indústria de combustíveis renováveis, ambos resultantes de décadas de investimentos em ciência e tecnologia, reforçou a imagem de sucesso do Brasil. Efeito semelhante teve a rápida internacionalização das operações de empresas brasileiras de porte, como as grandes empreiteiras, a Embraer, a Gerdau e a Marcopolo, que puseram em cena as multinacionais brasileiras e ajudaram a reforçar a visibilidade internacional do País.
Ascensão Fundada na Democracia e na Estabilidade
“A ascensão do Brasil não é resultado de lances de sorte”, escreveu Juan de Onis, ex-correspondente do New York Times, num artigo publicado na edição de novembro/dezembro de 2008 da influente revista Foreign Affairs. “Embora fatores globais, como o aumento dos preços das commodities e o fácil acesso ao capital internacional tenham ajudado, não houve nenhuma alquimia tropical ou vudu econômico. O segredo do atual sucesso do Brasil repousa na continuidade do seu sólido manejo econômico e político.”
O País foi beneficiado também pelos problemas de outros. O contraste com seus vizinhos imediatos, muitos dos quais diminuídos pela incapacidade crônica de seus governos e pela polarização interna, certamente contribuiu para que o Brasil firmasse uma imagem de nação em franco e rápido processo de amadurecimento.
Também ajudou, mais recentemente, a comparação com a Rússia, a Índia e a China, que formam com o Brasil o grupo de potências continentais emergentes destinadas, segundo projeções do banco de investimentos Goldman Sachs, a posições dominantes na economia mundial nas décadas à frente. Em contraste com o Brasil, os três outros brics padecem de deficiências importantes e de mais difícil tratamento do que as que complicam a decolagem do Brasil. Nos casos da China e da Rússia, sobressai a falta de democracia e de mecanismos transparentes para administrar relações de negócios e tensões internas. Na Índia, o futuro é condicionado pela resolução de insurgências étnicas e religiosas dentro de casa e um conflito armado latente com um vizinho imediato – o Paquistão – instável, hostil e nuclear.
Finalmente, a perda de prestígio e influência dos Estados Unidos, motivada pela desastrosa invasão do Iraque em 2003 e pela crise financeira global desencadeada pela implosão de Wall Street em 2008, também deixou o Brasil melhor na foto global. Num primeiro momento, a retração norte-americana abriu espaço para uma maior atuação regional do País, intensificando um processo iniciado nos anos 1980 e 1990. A crise financeira, cujos efeitos foram amortecidos e abreviados no Brasil pela existência de um mercado financeiro regulado, situação fiscal em ordem, abundantes reservas internacionais e uma ainda modesta integração internacional de sua economia, forçou uma acelaração das reformas das instâncias de governança global e deu mais palco – e novas responsabilidades – ao País.
Aos fatores tangíveis que justificam a simpatia de que o Brasil hoje desfruta fora de suas fronteiras soma-se uma certa propensão entre analistas estrangeiros da América Latina a sucumbirem ao efeito de manada. Isso os leva, no caso do Brasil, a exagerar as notícias favoráveis e a deixar de lado as nuanças ou ignorar dados preocupantes que estão evidentes para os brasileiros, mas não combinam com a imagem rósea que se formou sobre o País. Exemplos são a instrumentalização político-partidária dos órgãos do Estado pelo governo petista, a perda de qualidade de manejo na administração federal, o inchaço do funcionalismo, os esforços para controlar os meios de comunicação em nome do interesse público e da democratização do acesso, a ineficácia da Justiça e as implicações negativas da corrupção desenfreada e impune no Congresso Nacional.
À percepção positiva que se criou sobre o País corresponde, invevitavelmente, a expectativa de um comportamento que reforce as premissas da ascensão brasileira. “Com o poder e a influência vem a responsabilidade”, afirmou o presidente da Comissão da União Europeia, José Manuel Barroso, durante a cúpula Brasil-UE em Estocolmo, em outubro de 2009. “Se o Brasil quiser ser considerado um grande ator, terá que assumir maiores responsabilidades”, afirmou o líder europeu, estimulando Brasília a, entre outras iniciativas, somar-se às pressões sobre Teerã na questão nuclear. Aqui, os sinais emitidos pelo País têm sido contraditórios. Se, por um lado, a atuação do Banco Central, o desempenho do setor privado, as projeções de aceleração do crescimento econômico e iniciativas criativas de política social e ambiental têm reforçado a imagem positiva, a hiperatividade da política externa do governo petista e os gols contra que tem marcado causam perplexidade e começam a alimentar críticas.
É ilustrativa a decisão de Lula de emprestar sua credibilidade pessoal e o prestígio internacional do Brasil ao desacreditado presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, recebendo-o em Brasília no dia 23 de novembro passado, no momento em que a comunidade internacional estava empenhada em desmantelar o programa nuclear militar, que, suspeita, Teerã desenvolve. A visita de Ahmadinejad causou mal disfarçada contrariedade em Washington e outras capitais e suscitou as primeiras críticas explícitas ao País e a Lula em anos recentes. Num duro editorial, o Washington Post disse que Lula “demonstrou apenas sua ignorância” sobre o Oriente Médio ao apresentar-se como voluntário para mediar o conflito entre Ahmadinejad e o Ocidente – tal mediação foi a justificativa usada por assessores do presidente brasileiro para explicar a acolhida ao líder iraniano. A previsível rejeição por Ahmadinejad dos conselhos de Lula para que aceitasse o acordo nuclear oferecido pelo Ocidente, confirmada cinco dias depois da visita a Brasília, resultou numa condenação de Teerã até pela China e pela Rússia e expôs a futilidade da iniciativa brasileira. “O Brasil ainda poderá tornar-se uma potência regional; as políticas domésticas mais sensatas de Lula fortaleceram o país. Mas, para conquistar influência global, o Brasil terá que reformar o anacrônico terceiro-mundismo que informa sua política externa”, fulminou o Washington Post. “Ao abraçar párias como Ahmadinejad ou tentar posicionar-se entre o Ocidente democrático e estados fora-da-lei, o Brasil apenas garantirá sua permanência como o país do futuro.” O editorial do Post sinalizou uma rápida deterioração da percepção favorável que prevaleceu até recentemente na capital norte-americana sobre o governo Lula.
“O Brasil arrisca passar da conta”
A revista The Economist, que não pode ser acusada de má vontade em relação ao Brasil, chamou atenção para os riscos de um governo que diz prezar a democracia e é integrado por ex-perseguidos políticos acolher o líder de um governo que condenou à morte cinco militantes de oposição desde os protestos que se seguiram à sua contestada eleição e é acusado de graves violações aos direitos humanos. “O Brasil arrisca passar da conta em seu desejo de ser visto como um país importante”, afirmou a revista. A Economist ironizou a oferta brasileira de usar a diplomacia do futebol para mediar o conflito entre Israel e Palestina, que Lula fez ao presidente Shimon Peres, quando o recebeu em Brasília,dias antes da visita de Ahmadinejad. “Tudo bem, mas o Brasil deixou de resolver conflitos muito mais simples entre a Argentina e o Uruguai, a Venezuela e a Colômbia e entre os rivais políticos em Honduras”, afirmou a Economist.
As críticas ao País nesse episódio refletem uma avaliação negativa que já se faz há tempos dentro do Brasil sobre o uso que Lula e o governo petista fazem da diplomacia como instrumento de política partidária – uma prática que tem afastado a política externa de seu proverbial pragmatismo e resultado em raros sucessos e frequentes derrotas e embaraços.
Multiplicam-se os exemplos de ações na política regional que resultam na desvalorização do cacife de prestígio e influência do Brasil junto aos seus vizinhos, um ativo essencial para a projeção global do País e que se baseia em dados concretos, como a importância econômica crescente do Brasil na América do Sul. Exemplo recente foi o da convocação dos líderes dos oito países da região amazônica, no final de novembro, para uma reunião de coordenação de posições com vistas à Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, realizada no mês seguinte em Copenhague. É um tema substantivo para o Brasil, que nos últimos meses mobilizou o governo federal e os estaduais, empresas, organizações ambientais e o mundo acadêmico e resultou na formulação de uma posição consistente, que preparou o País para ter uma participação substantiva e de liderança nas deliberações. Mas cinco dos sete presidentes convidados ignoraram a convocação de Lula e o Brasil ficou no prejuízo. O caso da intervenção brasileira na crise institucional em Honduras – correta no mérito, mas equivocada no método – é igualmente revelador.
Levado por uma avaliação obviamente despropositada sobre sua capacidade diplomática para influir em processos internos de uma minirrepública da América Central na qual o Brasil tem escassos interesses e poucas conexões, o governo petista assumiu uma posição principista, com três consequências. Primeiro, o Brasil alijou-se do espaço de mediação do conflito, no qual, aí sim, o Itamaraty tem tradição e gente com talento para exercer a liderança brasileira quando atua orientado pelo interesse nacional e pela busca de soluções práticas para problemas reais. Mais grave, fez o jogo do bolivariano Hugo Chávez, cujos interesses mais conflitam do que convergem com os do Brasil, desperdiçou prestígio e foi reduzido à esdrúxula posição de hospedeiro de presidente deposto e desacreditado em seu próprio país. Por fim, fez com que o conflito de Honduras, entre outros assuntos, virasse motivo de críticas públicas do assessor internacional de Lula, Marco Aurélio Garcia, ao governo de Barack Obama, um desdobramento tão desnecessário e fora dos padrões da diplomacia que o próprio chanceler Celso Amorim julgou útil intervir e esclarecer que, embora as divergências sejam esperáveis e normais, “não há tensão alguma” entre Brasília e Washington.
Cultivar a percepção positiva que o Brasil conquistou no exterior não é, obviamente, incompatível com manifestações de divergências substantivas com os Estados Unidos e outros países. Calibradas para refletir interesses concretos do País, tais manifestações são necessárias e desejáveis, na medida em que reforçam a imagem de um País emergente sério, que sabe o que quer e não pede permissão nem desculpas para defender seus objetivos nacionais. É o caso das críticas ao protecionismo norte-americano, que é hoje o maior obstáculo à conclusão da Rodada de Doha e tem impedido a realização de um dos grandes objetivos declarados da política externa do presidente Lula. É o caso, também, das queixas que Brasília fez à falta de consulta prévia por Washington e Bogotá ao acordo que firmaram para instalar bases militares norte-americanas em território colombiano.
Existe, no entanto, um problema de definição que afeta a percepção do governo Lula sobre o aumento do espaço internacional do Brasil. Ele se revela principalmente na comparação com os Estados Unidos, nação que os brasileiros têm como referência desde os primórdios da República e hoje atravessa uma crise histórica de perda relativa de influência política e poder econômico motivada por fatores que pouco ou nada têm a ver com a ascensão brasileira. A ideologia que orienta a visão dominante no governo Lula, no entanto, parece ver a ascensão brasileira como um jogo de soma zero, no qual a ampliação do espaço internacional do País se dá – e é bom que se dê – em detrimento da superpotência. É compreensível que pensem assim os ex-militantes e simpatizantes de organizações de esquerda e de tradição antiamericana que ocupam hoje posições de responsabilidade na única nação emergente da área de influência dos Estados Unidos. Não há, no entanto, nenhuma evidência de que isso seja verdade ou de que Washington esteja particularmente preocupado em perder espaço para o Brasil na região ou em qualquer outra parte. “Nossos interesses são mais convergentes do que divergentes”, afirma há anos Thomas A. Shannon, embaixador designado dos Estados Unidos em Brasília e diplomata de carreira que teve um papel central na criação de um ambiente positivo e amistoso entre o ultradireitista George W. Bush e o esquerdista Lula.
Efeitos contraditórios do carisma de Lula
A visão torta que a diplomacia petista cultiva a esse respeito deriva talvez de uma leitura equivocada sobre a escolha que o governo Bush fez de ignorar a região nos primeiros seis anos de seu governo, quando reduziu a agenda hemisférica dos Estados Unidos ao combate ao terrorismo, ao narcotráfico e à promoção de acordos comerciais, com resultados modestos ou nulos, mas que atenderam aos interesses de Washington onde estes existiam. Curiosamente, a administração mais conservadora que os Estados Unidos teve no pós-guerra encontrou no governo petista um parceiro disposto a jogar o jogo fácil de um diálogo superficial baseado nas aparências da “boa química pessoal” entre seus líderes e numa agenda carregada de grupos de trabalhos sobre temas de interesse mútuo que muito pouco ou quase nada de concreto produziram. É irônico, mas talvez não acidental, que as diferenças de Brasília com Washington tenham-se tornado mais visíveis após a chegada à Casa Branca de um presidente preocupado em recuperar a credibilidade e o prestígio internacional dos Estados Unidos.
É instrutivo também, no contexto do realinhamento das forças globais em curso, comparar as posturas da China e do Brasil em relação aos Estados Unidos. A ascensão da China – uma potência que já emergiu como poder econômico, militar e estratégico – reduz efetivamente o espaço relativo dos Estados Unidos e introduz novas variáveis que Washington não pode mais ignorar, especialmente no pesado, complexo e potencialmente explosivo tabuleiro asiático. Pequim esmera-se, no entanto, em deixar claro que aposta numa “ascensão harmoniosa” e “pacífica”, não tem interesse em alfinetar Washington e dispõe-se mesmo a apoiar os Estados Unidos em questões estratégicas, como fez no final de novembro ao associar-se às pressões do conselho da Agência Internacional de Energia Atômica para forçar o Irã a abandonar o programa nuclear militar que é suspeito de ter e aceitar o acordo proposto para que tenha acesso a urânio enriquecido para fins pacíficos. O Brasil absteve-se, a despeito de Teerã ter ignorado solenemente o conselho que Lula deu a Ahmadinejad cinco dias antes da reunião da aiea e rejeitado o acordo proposto pela agência.
O uso por vezes descuidado que o governo tem feito da imagem positiva que o país conquistou, malbaratando o prestígio e o capital de boa vontade de que hoje desfruta, causa perplexidade em Washington, onde é entendido como fruto de duas tendências que se tornaram mais evidentes nesta fase final da gestão Lula. Uma delas é a da partidarização da política externa, simbolizada pela filiação do chanceler Celso Amorim ao Partido dos Trabalhadores, e ilustrada pela opção do Planalto de abraçar o bolivarianismo de Hugo Chávez incluindo a Venezuela no Mercosul. Criticada publicamente por diplomatas veteranos como o embaixador Rubens Ricupero, essa escolha complicou a tarefa de afirmar a liderança do País na América do Sul, que está fundada no peso crescente que a economia brasileira tem na região (cerca de 60% do pib sul-americano), mas não encontra uma expressão política correspondente – a menos, é claro, que se considere a Unasul como um foro de decisões substantivas, o que ela não comprovou ser em seus primeiros anos de existência. Por outro lado, ganha força a noção segundo a qual o presidente Lula, embalado por sua notável popularidade dentro e fora do País, faz uma avaliação exagerada sobre sua capacidade pessoal e, por tabela, do Brasil, de atuar e influir nas grandes questões internacionais. Este cálculo explicaria a iniciativa do governo brasileiro, no final do ano, de oferecer-se como mediador do conflito entre o Irã e a comunidade internacional, sem que ninguém lhe tenha pedido.
Se este for o caso, o problema tem data para ser resolvido. Nenhum dos sucessores possíveis de Lula dispõe de seu carisma pessoal ou contará com índices de aprovação popular capazes de estimular devaneios de liderança internacional além das possibilidades e dos interesses reais da nação. Essa constatação e a necessidade de devolver a ação externa do País à eficácia que ela só reencontrará no pragmatismo deixam ao próximo ou próxima presidente o desafio de usar com mais parcimônia e eficácia a percepção positiva que o mundo tem hoje do Brasil, capitalizando-a em iniciativas que enfatizem conquistas internas e iniciativas externas – muitas delas do governo Lula – que se complementam e se reforçam mutuamente e correspondem a uma visão mais consensual sobre o interesse nacional do que a que hoje prevalece.
Não é pequeno o elenco de iniciativas e atividades capaz de reforçar a percepção favorável que a comunidade internacional tem da presença crescente e positiva do Brasil no mundo. Iniciativa e atividades do governo e de agências e empresas oficiais nos campos da reforma da governança global, da cooperação e dos investimentos e no encaminhamento de grandes temas internacionais diretamente relevantes para o Brasil.
A interação do País com seus vizinhos imediatos da América do Sul continuará a oferecer oportunidades de afirmação e promoção da liderança e dos interesses brasileiros. A questão é saber se govenantes, empresários e demais atores terão interesse e capacidade para recalibrar a estratégia desastrada do passado recente. Esta precisa ser reorientada numa direção que produza menos discursos e mais resultados, assegurando o reconhecimento implícito da preeminência do Brasil e revertendo o processo em curso de desintegração regional. Inevitavelmente, a aceitação ou não do Brasil como líder por seus vizinhos é e continuará a ser realidade que condicionará a imagem internacional do País.
Onde o Brasil faz diferença
As negociações de um novo entendimento para reduzir as emissões de carbono, que substituirão o Protocolo de Quioto de 1997, apresentam oportunidade única para o Brasil ter uma atuação saliente, à altura dos interesses de uma nação que possui a maior área de sequestro de carbono do planeta (a floresta amazônica), a maior concentração de biodiversidade do mundo, a melhor matriz energética, imensas reservas de água, abundantes terras aráveis e a melhor indústria de produção de um biocombustível renovável. Sob pressão da indústria do etanol de cana-de-açúcar, de setores do agronegócio, da indústria e da opinião pública, o governo federal chegou à conferência de Copenhague com uma postura mais propositiva e menos defensiva do que adotara inicialmente. A meta voluntária de redução de emissões oferecida pelo País – de 38% dos níveis de 2005 até 2020 – foi a mais ambiciosa entre todas as apresentadas pelas nações participantes. A evolução positiva da discussão interna sobre mudança climática chama atenção para o dinamismo da democracia brasileira num tema de interesse central para o Brasil e a comunidade internacional. Essa evolução cria um marco positivo para a articulação de posições com outros países em desenvolvimento, principalmente China e Índia, que enfrentam o desafio comum de expandir e integrar milhões de novos consumidores em suas economias e, ao mesmo tempo, conter emissões de carbono. Traduzida em ideias e programas concretos, a positiva dinâmica interna reforçará de forma substantiva a imagem internacional positiva do País. Simultaneamente, imporá ao governo e à sociedade o desenvolvimento e a adoção efetiva de políticas públicas que venham a ser adotadas em cumprimento das metas de um futuro acordo global sobre redução de emissões.
A participação do País no Grupo dos 20, que a crise financeira de 2008 transformou na principal instância de governança global em assuntos econômicos, abriu um novo espaço para o País exercer liderança internacional. Trata-se, aqui, de um desdobramento que surpreendeu o governo, que atirou no que viu e acertou no que não viu. Empenhado desde 2003 na reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas e na conquista de um assento permanente nesse que é o principal foro global de governança política, o presidente Lula viu essa porta fechar-se em 2005, quando a China obstruiu o processo de reforma para impedir o acesso do Japão à condição de membro permanente, acesso defendido pelos Estados Unidos. A reforma da governança global acabou sendo precipitada, no entanto, pela implosão de Wall Street, em setembro de 2008. A aguda crise global que ela precipitou forçou Washington e as demais potências econômicas estabelecidas a reconhecerem a importância das nações emergentes de porte nas deliberações sobre medidas de contenção da crise e correção dos desequilíbrios da economia mundial.
Em setembro de 2009, durante a Cúpula do G-20 em Pittsburgh, Pensilvânia, o presidente Barack Obama afirmou que o G-20 “substituiu permanentemente” o G7-G8 como foro de formulação de políticas globais em matéria econômica e financeira. Trata-se, agora, de construir o G-20, definir sua jurisdição e afirmar sua influência. É um trabalho no qual o Brasil participa com ativos reais, entre eles a capacidade técnica de manejo do seu sistema financeiro, construída a partir da estabilização da economia, nos anos 1990. Os relatos disponíveis indicam que o País vem participando de maneira ativa e substantiva no processo do G-20, articulando suas posições com outros países emergentes não por razões ideológicas, mas em função de interesses concretos que compartilha com alguns deles, como a condição de credor líquido do sistema financeiro. O G-20 continuará a testar a capacidade brasileira para agir construtivamente para o fortalecimento do sistema financeiro global – um trabalho que corresponde ao interesse nacional e reforça a imagem favorável do País.
Mais complicado, mas não menos relevante para a percepção internacional da presença crescente do Brasil no mundo, é o desafio da exploração dos grandes depósitos de petróleo descobertos em 2007 em águas profundas da costa brasileira. Independentemente do marco regulatório que adotar para tirar proveito do petróleo do “pré-sal”, o País será avaliado por sua capacidade de usar a oportunidade que ele representa como um instrumento para atrair investimentos, criar e distribuir riqueza e agregar valor ao desenvolvimento interno, preservando a matriz energética limpa e evitando as distorções que costumam acompanhar a exploração de petróleo em larga escala nas nações em desenvolvimento.
As atividades de cooperação internacional do País na África e na América Latina nas áreas da saúde e da produção de alimentos, que se intensificaram no governo Lula a partir das ações da Fiocruz e da Embrapa, oferecem amplas oportunidades para o Brasil fortalecer a credibilidade que vem conquistando como um país doador em nações em desenvolvimento às quais está ligado por vínculos históricos e geo¬gráficos. Não se trata, aqui, de retórica terceiro-mundista vazia. Trata-se de ações concretas de solidariedade que abrem espaços para a projeção de interesses econômicos e políticos nacionais, ao mesmo tempo em que ampliam e fortalecem a cooperação entre agências brasileiras e de nações desenvolvidas, bem como organizações internacionais, em arranjos criativos e flexíveis voltados para a produção de resultados. Os programas de aumento da segurança alimentar na África, que a Embrapa intensificou a partir da instalação de uma representação em Acra, Gana, é um exemplo de ação que reforça a percepção favorável que o Brasil vem construindo como uma presença positiva no mundo, compartilhando com nações mais pobres o que aprendeu em meio século de bem-sucedida experiência de desenvolvimento de sua agricultura. Vai na mesma direção a decisão anunciada pela Embrapa, no final de 2009, de ampliar suas operações internacionais para a América Central, com uma representação na Cidade do Panamá.
A Fiocruz tem reforçado a inserção internacional positiva do País através das atividades de “diplomacia da saúde” que iniciou nos anos 1990 a partir do bem-sucedido programa nacional de combate ao HIV-Aids. As iniciativas de seu Centro para a Saúde Global transformaram a Fiocruz em parceira de agências de saúde de nações avançadas e de entidades influentes como a Gates Foundation em ações de combate a doenças na África e em programas de capacitação de pessoal na África e na América Latina. Também aqui, não se trata de retórica inconsequente, mas de iniciativas concretas de cooperação que lastreiam e projetam a imagem positiva que o País conquistou. Estas são, no entanto, ações que exigem persistência e dão fruto ao longo do tempo. No curto prazo, elas rendem poucos holofotes e, por isso, talvez não sejam vistas em Brasília como as mais propícias para alimentar um quadro de polarização política que os atuais ocupantes do poder parecem tentados a fomentar durante a campanha eleitoral de 2010.
Sob os olhos do mundo
p>Independentemente do tipo de investimento que se fizer da imagem favorável de que hoje desfruta, a percepção sobre o País no resto do mundo será influenciada nos anos à frente por alguns fatores novos. O primeiro deles é a previsão de especialistas segundo a qual a economia brasileira saltará para um patamar de crescimento mais elevado a partir de 2010, impulsionada pela expansão do mercado interno e da demanda externa, principalmente asiática, por alimentos e matérias-primas que o Brasil, talvez mais do que qualquer outra nação, está preparado para atender. Outro fator inédito que balizará a avaliação que se fará sobre o País fora de suas fronteiras é o protagonismo internacional sem limites aparentes que o presidente Lula introduziu na ação diplomática brasileira. Duas semanas depois de tomar posse, em janeiro de 2003, o presidente afirmou num discurso em Quito, durante sua primeira viagem internacional, que o Brasil estava “pronto para assumir sua grandeza”, um objetivo discutível, que talvez tivesse ficado melhor sem ser explicitado e que Lula buscou persistentemente. À expectativa do sucesso econômico e ao perfil diplomático mais saliente somam-se iniciativas como a decisão de hospedar a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de verão em 2016, no Rio de Janeiro. Ambas manterão a atenção internacional voltada para o Brasil num grau de intensidade a que os brasileiros não estão acostumados.
Problemas específicos como a criminalidade e falta de segurança nas cidades, a fragilidade da infraestrutura e o assalto aos cofres públicos, que antes eram objeto de atenção genérica e esporádica do resto do mundo, serão agora examinados à luz de indagações legítimas que os próprios brasileiros se fazem sobre a capacidade do País de solucionar os problemas que precisam ser sanados nos quatro a seis anos que terá para organizar os dois maiores eventos esportivos do mundo. Conseguirá o governo atrair os investimentos necessários para os projetos de infraestrutura e aplicá-los de maneira honesta, eficaz e criativa, que faça do Mundial de futebol e das Olimpíadas e de outros grandes eventos internacionais vitrinas de um País renovado que não apenas proclama grandeza e liderança, mas efetivamente as possui e exerce de maneira consequente? As respostas a essa pergunta dirão se a imagem positiva de que o País desfrutou na primeira década do século xxi foi usada simplesmente para alimentar a vaidade nacional ou serviu de estímulo para a adoção e execução de políticas públicas voltadas para a melhoria da qualidade da nação e da vida de seus quase duzentos milhões de integrantes, pois, em última análise, é disso que depende a percepção que os brasileiros e, em consequência, os não-brasileiros têm do Brasil.
paulo sotero é diretor do Brazil Institute do Woodrow Wilson International Center for Scholars, e professor visitante da Elliott School of International Affairs da Universidade de George Washington, em Washington, D.C.
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