Nos últimos dez anos, a sociedade mundial encontra-se exposta a novas e velhas pandemias, cuja propagação tem recebido uma grande cobertura da imprensa, gerando debates, questionamentos à organização dos sistemas de saúde, desafios a governos e uma grande movimentação nas indústrias de medicamentos e vacinas. O mais recente caso é o da gripe suína, rebatizada como gripe A (H1N1), derivada da transmissão e contaminação pelo vírus H1N1.
Ainda que doenças transmissíveis sacrifiquem os mais pobres, dado que muitos riscos em contraí-las são atribuídos às más condições de vida, pandemias costumam ser mais democráticas, pelo menos em sua origem. Quando a transmissão viral não tem barreiras e se multiplica pelo contato interpessoal, pelo manuseio de objetos ou pelo ar, através das vias respiratórias, não existe como evitar que estas doenças cheguem aos espaços públicos frequentados por pobres e ricos. Uma doença infecciosa de fácil e rápida transmissibilidade pode transformar-se naquilo que conhecemos como pandemia.
Ao longo da história humana, pandemias derivadas de doenças de fácil transmissão tiveram um papel crucial na dinâmica demográfica, ao aumentar a mortalidade ou levar populações inteiras a migrar na busca de regiões mais salubres.
A maioria das pandemias que se conhecem na história são zoonoses e tiveram origem no contacto entre humanos e animais (especialmente animais domésticos nas regiões rurais). Durante as guerras do Peloponeso na Grécia, no século V a. C., uma pandemia matou a quarta parte da tropa ateniense. No século II da era cristã, outra pandemia (que segundo os relatos poderia ser varíola) dizimou cinco milhões de pessoas no Oriente Médio e, um século depois, uma segunda rodada da mesmo vírus pode ter matado cerca de cinco mil pessoas por dia somente em Roma.
Estima-se que a peste negra (provavelmente o que conhecemos hoje como peste bubônica), tenha eliminado, no século XIV, um terço da população europeia (cerca de 25 milhões de pes¬soas) e provavelmente outras 30 e 40 milhões de pessoas na África e na Ásia, respectivamente. Vários surtos de cólera foram registrados no mundo nos séculos XIX e XX, em vários continentes, matando milhões de pessoas.
A era da influenza
No entanto, as mais enigmáticas dessas zoo¬noses são aquelas que cabem dentro da categoria influenza ou gripe. John Barry, em seu livro The Great Influenza, publicado em 2004, descreve o poder do desconhecido em fazer avançar a ciência no confronto com as grandes epidemias. A história da medicina não seria a mesma (e muitas investigações científicas que levaram à descoberta de vacinas e tratamentos contra doenças transmissíveis, salvando milhões de vidas, não teriam sequer começado) sem as respostas que surgiram contra a ¬ameaça que representou a grande influenza, também conhecida como gripe espanhola. Uma varrida nos jornais da época permite chegar a um total de 21 milhões de mortes entre 1918 e 1920 atribuídas a essa pandemia, mas muitos acreditam que a realidade esconde uma mortalidade muito maior – entre 50 e 100 milhões de pessoas – numa época em que a população mundial não chegava a um quinto da existente nos dias de hoje.
Ainda que se saiba que a gripe espanhola pertencia à família das chamadas infuenza A , derivadas de um vírus que combina duas proteínas: a hemaglutinina (H) e a neuraminidasa (N) , não se determinou ainda qual foi o tipo exato de combinação entre os vários tipos de H e de N que originou a gripe espanhola. Estima-se, porém, que a gripe espanhola tenha sido decorrência de um vírus tipo H1N1 – o mesmo relacionado com a atual pandemia de gripe A. Numa conjuntura na qual não existiam nem medicamentos nem vacinas, estima-se que a taxa de mortalidade da gripe espanhola tenha alcançado no mínimo 2,5% dos que contraíram a doença.
Depois dela surgiram outras mais, não com tanta letalidade. Destacam-se, entre elas, a gripe asiática (1957), associada a um vírus H2N2, que matou cerca de 2 milhões de pessoas numa época em que já se contava com mecanismos de controle sanitário. Seguiu-se a gripe de Hong Kong (1968), associada ao H3N2, com efeitos globais mais suaves. Casos isolados foram novamente encontrados em Hong Kong em 1999 e em 2003, associados a um vírus de tipo H9N1. Seguiram-se a gripe russa (1977), também causada por um vírus H1N1, e a gripe aviária (2005) relacionada com o vírus H5N1, passando ainda por um surto da chamada Sindrome Respiratória Aguda Severa (SARS) em 2002, identificado como um tipo de pneumonia, que surgiu na China e se espalhou por Hong Kong, Vietnã e Canadá, e apresentava uma alta taxa de letalidade (em torno de 18%).
A gripe aviária, embora tenha acumulado número pequeno de casos, dado que sua transmissão se dava entre aves e humanos , apresentou alta taxa de mortalidade.
Dos 438 casos registrados entre 2003 e agosto de 2009, morreram 59,8% e sua transmissão atingiu uma escala global, por estar associada à migração de aves, embora não tenham sido registrados casos humanos do vírus na América Latina . A primeira vacina contra o H5N1 para aplicação em humanos foi aprovada pelo Food and Drug Administration (FDA) norte-americano em abril de 2007. Empresas como a Sanofi Pasteur, GlaxoSmithKline e Novartis estão produzindo diferentes versões da vacina, mas a eficácia de 45% ainda é considerada baixa.
A profilaxia para o tratamento da influenza aviária é feita através dos chamados inibidores de neuraminidasa, como é o caso do oseltamivir (conhecido comercialmente como Tamiflu) e do zanamivir, que atuam sobre todos os vírus da influenza de origem animal (influenza A), incluindo o H5N1. O Tamiflu tem sido produzido pela empresa Roche, que se dispôs a doar três milhões de doses para que a OMS as distribua em países pobres. Por outro lado, existem barreiras para a quebra de patentes deste medicamento e alguns países têm buscado acordo para produzi-lo como genérico, inclusive o Brasil.
A principal forma de prevenção para a gripe aviária ainda é o sacrifício de aves e milhões delas foram sacrificados em vários países do mundo. Boa parte dos custos associados à prevenção da doença é derivada de compensações econômicas aos produtores de aves ou àqueles que dependem delas para subsistência, especialmente nos países mais pobres onde existe grande participação da produção para autoconsumo.
Embora exista uma longa lista de medidas de prevenção que governos, empresas e sociedade civil podem utilizar, através da cooperação entre as instituições públicas de vigilância sanitária animal e de saúde, muito pouco tem sido feito, especialmente nos países em desenvolvimento.
Pandemias constroem e destroem ícones da administração pública. Muitos se tornam heróis e entram para a história ao inventar vacinas que interrompem sua transmissão, terapias que permitem seu tratamento e a cura ou processos de gestão que resultam em estratégias exitosas de vigilância e prevenção. Mas, ao mesmo tempo, podem demonstrar a fragilidade dos Ministérios de Saúde, mesmo daqueles que se esforçam por acariciar a mídia visando transmitir à opinião pública uma imagem de eficiência e capacidade resolutiva.
A ameaça trazida pela Influenza A (H1N1)
A atual influenza A teve sua origem associada ao México, mais especificamente à localidade de La Gloria, situada no estado de Vera Cruz, em março deste ano. Esta cidade se localiza proximamente a uma fazenda de criação de porcos, com cerca de um milhão de animais. No entanto, as autoridades mexicanas não associaram, na época, o surto de gripe à sua origem animal. Os primeiros casos registrados da gripe em sua forma H1N1 foram confirmados nos Estados Unidos em crianças oriundas do México e a primeira morte ocorreu em abril: uma senhora no estado mexicano de Oaxaca.
Gripes são comuns entre humanos e respondem por uma parte importante da mortalidade de pessoas idosas e imunodeprimidas. De acordo com o Center for Disease Control (CDC) – o principal órgão de vigilância e pesquisa sobre doenças transmissíveis do governo norte-americano – a gripe ou influenza sazonal afeta anualmente de 10% a 20% da população norte-americana, sendo responsável por 36 mil mortes anuais. São mais vulneráveis pessoas menores de 5 e maiores de 60 anos de idade, pessoas imunodeprimidas (com diabetes, ¬doença crônica renal e AIDS) ou com insuficiência cardíaca ou respiratória. São também mais expostos trabalhadores nos setores de saúde, educação, bombeiros, policia etc.
Nas últimas duas décadas, a vacinação tem sido um dos fatores de redução da mortalidade e do risco associado à influenza sazonal em vários países desenvolvidos e em desenvolvimento. Dada a alta taxa de mutação dos vírus da influenza sazonal, a cada ano a OMS identifica quais seriam as cepas de vírus mais suscetíveis de propagação para orientar a fabricação e a distribuição das vacinas contra influenza sazonal.
Ainda que represente um risco para populações especiais, a vacinação e a baixa letalidade têm mantido as epidemias regulares de gripe basicamente sob controle.
A situação trazida pela influenza A e pelos vírus do tipo HN é, no entanto, diferente. Pode-se dizer que a propagação desses vírus traz riscos concretos de pandemias. O Quadro 1 mostra as fases, segundo a OMS, para que se classifique o risco de pandemia associado à influenza. Observa-se que, desde as últimas aparições dos vírus HN, poucos foram os casos que chegaram à fase 6, quando se confirma a rápida propagação do vírus em escala mundial.
No entanto, desde a segunda semana de junho de 2009, a OMS declarou que uma pandemia da influenza A havia chegado ao nível 6. Com isso foi decretada oficialmente a primeira pandemia de influenza desde a gripe de Hong Kong em 1968, que causou a morte de mais de um milhão de pessoas.
Tentativas sucessivas foram feitas para batizar a nova gripe de 2009 até que se chegasse a um consenso. Originalmente foi chamada de gripe suína, pelo fato de estar associada a uma variante do Influenzavirus A encontrado em porcos. Mas, em vista de sua transmissão humano-humano e do risco de tal nome levar a perdas econômicas associadas à mortandade de rebanhos suínos, como parece ter ocorrido em alguns países, resolveu-se mudar seu nome para gripe norte-americana, em alusão ao seu surgimento no México e nos Estados Unidos. No entanto, sua rápida propagação em outros continentes levou a União Europeia a chamá-la de Nova Gripe. Finalmente, a OMS acabou por definir que deve ser chamada simplesmente de gripe A (H1N1).
O Gráfico 1 mostra que entre a última semana de abril e a primeira semana de agosto de 2009 foram registrados oficialmente, no mundo, 177,5 mil casos humanos de gripe A (H1N1) com confirmação serológica em 193 países. O gráfico mostra também que a tendência ao crescimento continua a se acentuar. A rápida evolução do número de casos da gripe A (H1N1) foi suficiente para que a OMS a classifique como pandemia.
Como mostra o Gráfico 2, até a primeira semana de agosto de 2009, a OMS havia confirmado 1 462 mortes pela gripe A (H1N1), no mundo. Observa-se, em termos quantitativos, a mesma tendência de crescimento do número de mortes. Como o número de casos oficialmente registrados depende da capacidade de registro de cada país, capacidade que é menor nos países em desenvolvimento, é bem possível que os números oficiais estejam subestimados.
A Tabela 1, construída a partir de observações independentes encontradas em webpages de organismos dedicados ao tema, mostra uma estimativa dos vinte países com maior número de casos registrados e a percentagem de mortes associada à gripe A (H1N1). Esses dados divergem daqueles apresentados nas estatísticas oficiais e na OMS. Registram quase cem mil casos a mais, pois incorporam informações que ainda estão por ser confirmadas ou que podem conter erros, até mesmo o de registro de casos de influenza sazonal como se fossem de gripe A (H1N1). Devido à rápida evolução da doença em muitos países e aos progressos na observação e registro de casos, esse ranking poderá sofrer rápidas mudanças até o final do ano.
Como foi dito, os dados da OMS podem estar grandemente subestimados. Não apenas pelo sub-registro de países em desenvolvimento, mas também porque a organização mudou, desde meados de julho de 2009, o protocolo que obrigava o registro de casos. Atualmente, os países já não são obrigados a testar, confirmar e registrar casos de gripe A (H1N1), a não ser os mais graves, que possam levar a intervenções do sistema de saúde ou à morte. O Reino Unido, por exemplo, há quatro semanas não tem apresentado novos casos, provavelmente em função de ter cessado o registro de casos não-graves.
Verifica-se que, em média, a percentagem de mortes por casos registrados é inferior a 1%. No entanto, alguns países apresentam proporções superiores a 1% de mortos por casos registrados, destacando-se: Brasil (9,3%), Argentina (6%), Ma¬lá-sia (1,7%), Peru (1,6%) e Estados Unidos (1,0%).
É interessante notar que a elevada percentagem de mortes sobre o total de casos registrados no Brasil pode ser confirmada no próprio site do Ministério da Saúde brasileiro. De acordo com o Informe Epidemiológico Influenza A, da Secretaria de Vigilância à Saúde (SVS), de 3 de agosto de 2009, o país havia registrado 1 586 casos de influenza A e um número de mortes de 192, o que significa que 12% dos casos registrados resultaram em óbito.
Vários fatores podem contribuir para uma proporção elevada de mortes associadas à gripe A (H1N1), cabendo destacar a deficiência das ações de vigilância epidemiológica dos sistemas de saúde em registrar o número de casos, a gravidade dos casos e a falta de tratamento adequado nos sistemas de saúde. Nos países com menor nível de desenvolvimento ou qualificação da rede de serviços de saúde, tanto o primeiro como o terceiro fator parecem ser mais frequentes.
Por outro lado, cada nova cepa de vírus H1N1 afeta as populações de forma diferenciada, podendo ser mais branda ou mais grave. Pessoas com condições especiais que levam à imunodepressão são mais suscetíveis a contrair a doença. Com base nos informes do Euro¬pean Center for Disease Control, de 7 de agosto de 2009 , que analisou o desenvolvimento da gripe A (H1N1) em 29 países da União Europeia e da Europa do Leste, identificaram-se as seguintes características:
Prevalência – A taxa de registro de casos é de 5,3 por 100 mil habitantes, variando de 0,2 na Polônia a 19,5 no Reino Unido, país que conta atualmente com 62% dos casos registrados na Europa;
Hospitalização – Cerca de 12% dos casos, em média, levaram à hospitalização dos pacientes, mas a proporção de hospitalização pode variar de 0% (Holanda) a 94% (Áustria);
Viagens – Somente 5,2% dos casos foram contraídos em viagens fora do país, variando de 0% (Chipre, Malta) a 19% (Reino ¬Unido);
Demografia – A gripe A (H1N1) parece afetar mais os mais jovens, dado que a maioria dos casos ocorre entre os grupos de 10 a 29 anos (mais de 60% dos casos registrados). Tal fato faz com que boa parte das hospitalizações (34%) ocorra entre as idades de 20 a 29 anos.
Vale ainda observar, na Europa, a baixa incidência de mortalidade nos casos registrados. Os sistemas de saúde europeus parecem dar respostas melhores aos desafios de vigilância epidemiológica e cumprem os protocolos de saúde pública em sua rede de serviços. Ainda que existam diferenças no uso de protocolos, a maioria dos casos graves resulta em hospitalização por exigir tratamento intensivo.
Tal quadro parece não ser observado nos Estados Unidos e menos ainda nos países em desenvolvimento, especialmente os latino-americanos, onde a rede de saúde se organiza para prestar assistência médica regular, insuficiente diante de epidemias, e não tem uma adequada integração com os protocolos de prevenção e medidas de saúde coletiva.
Os Esforços para o controle da pandemia de gripe A (H1N1)
Existem três tipos de ações relevantes para o controle das endemias de influenza:
a) o desenvolvimento de processos de imunização (vacina) e profilaxia (medicamentos) que permitam prevenir ou curar a doença;
b) o desenvolvimento da capacidade de resposta dos serviços de saúde para atender sistematicamente a uma crise provocada por uma pandemia (seleção de pacientes segundo o grau de severidade, hospitalização, recursos humanos qualificados, transporte e logística etc.);
c) o funcionamento adequado dos serviços de epidemiologia e dos laboratórios para testar pacientes, quantificar, analisar e processar a informação sobre o desenvolvimento da pandemia, identificar padrões de propagação, evolução dos sintomas, demografia do contágio e da mortalidade e outros parâmetros que permitam alimentar a capacidade de resposta dos serviços de saúde.
No que diz respeito ao desenvolvimento dos processos de imunização contra a gripe A (H1N1), os principais fabricantes internacionais (Sanofi-Aventis, GlaxoSmithKline, Novartis, Baxter, CSL e Solvay) estão intensificando os esforços para produzir uma vacina que, segundo a imprensa internacional, não estaria disponível antes de dezembro de 2009. A empresa chinesa Sinovac, por sua vez, parece ser a primeira a completar os ensaios clínicos para a vacina contra a gripe A (H1N1) e afirma que seu produto seria eficiente com uma única dose de aplicação, quando a maioria dos especialistas afirmam que seriam necessárias duas doses.
As estratégias de vacinação dependem não somente de quando a vacina estará disponível, mas também da avaliação das necessidades, para que a produção alcance a quantidade de doses necessárias. O governo norte-americano trabalha, por exemplo, com uma estimativa de 600 milhões de doses e a maioria dos países, em seus prognósticos, considera que o número de doses seria igual a sua população multiplicada por dois, na hipótese de que fossem necessárias duas doses por pessoa. Haveria a possibilidade de produzir tantas vacinas em tão pouco tempo, no caso de uma intensificação dos riscos pandêmicos?
No que se refere à profilaxia, os medicamentos antivirais parecem ser mais eficazes no caso da gripe A (H1N1), dado que esta se apresenta em forma mais branda que a sua antecessora (H5N1). Dois medicamentos foram identificados como eficazes contra o vírus da gripe suína – o Tamiflu (oseltamivir), produzido pela Roche, e o Relenza (zanamivir), produzido pela GlaxoSmithKline. A maior polularidade do Tamiflu parece estar associada ao seu ¬custo e disponibilidade para o tratamento da influenza (em todas as combinações conhecidas de H e N). No entanto, seu uso apresentou problemas no tratamento dos casos comprovados de gripe aviária (H5N1).
As indicações mostram que a efetividade do medicamento estaria associada à necessidade de ministrá-lo nas primeiras 48 horas de manifestação da doença.
Como medida preventiva, a Roche mantém três milhões de doses adicionais de Tamiflu para uso da OMS no caso de um eventual surto da pandemia. Metade desse material fica estocada nos EUA e a outra metade, na Suíça. A priorização dos destinos dessa medicação é determinada pela OMS.
No entanto, questões relativas a patentes têm dificultado a produção mundial de antivirais pelos laboratórios de outros países. Segundo dados da Roche, os governos de 85 países teriam estoque de Tamiflu para enfrentar os primeiros momentos de uma pandemia. E a capacidade produtiva das fábricas da Roche, em todo o mundo, poderia atingir até 400 milhões de doses ao ano.
A grande incógnita é saber em que nível os países estão com suas redes de saúde preparadas e seus serviços de epidemiologia mapeando os casos e produzindo soluções para evitar o alastramento de surtos epidêmicos da enfermidade.
Na ocasião em que se disseminou a gripe aviária, boa parte das empresas privadas nos países desenvolvidos foi incentivada pelos governos a realizar planos estratégicos de enfrentamento de uma pandemia, inclusive a aquisição de estoques de medicamentos (Tamiflu), o desenvolvimento de rotinas e processos para o isolamento de casos e para o transporte de pacientes para estabelecimentos de saúde especializados.
Nos países em desenvolvimento, ao que parece, as estratégias de enfrentamento de uma pandemia – inclusive os aspectos logísticos – têm tido pouca comunicação social e pouca participação da sociedade civil, empresas e instituições não-governamentais. Em geral, esses países não estão preparados para dar respostas em caso de uma crise pandêmica. Alguns países da Ásia, da África subsaariana e certos grupos populacionais da América Latina serão os mais afetados.
Na América Latina, a região mais desigual do mundo, alguns países deram ou podem dar uma resposta rápida e eficaz a uma situação de crise como a vivida no México. Mesmo assim, poucos governos divulgaram suas reservas de antivirais. Dizem apenas que o estoque é suficiente, para tranquilizar a população, mas podem estar jogando com a sorte.
A Influenza A no Brasil
De acordo com os dados do Ministério da Saúde, o Brasil tem utilizado para a gripe A (H1N1) a mesma estratégia de notificação, investigação e diagnóstico laboratorial utilizada para as pessoas em situação de risco na influenza sazonal, ou seja, menores de 2 anos, maiores de 60 anos, gestantes, portadores de doenças crônicas e pessoas imunodeprimidas. Os sistemas existentes de notificação – SINAN, Sistema de Vigilância Sentinela da Gripe , Sistemas de Informações Hospitalares, Sistemas de Informação de Mortalidade (SIM) e outros permitem gerar uma base de dados consistente e acompanhar adequadamente o processo de vigilância do H1N1 no Brasil. Há que destacar que o sistema brasileiro de informações de saúde é um dos mais completos na América Latina.
Os dados revelam que 43% dos casos registrados de H1N1 no Brasil (sobre uma base de 1 583 casos na primeira semana de agosto) estavam associados a pessoas que tinham pelo menos um fator de risco complicador (inclusive gravidez), proporção que é relativamente mais baixa (38%) entre os agravos verificados na gripe sazonal.
Observa-se ainda uma maior participação de mulheres (55%) entre os afetados pelo H1N1. De acordo com matéria publicada no Estado de São Paulo em 6 de agosto último, o número de casos graves de H1N1 no Brasil dobrou de 14% para 28% em duas semanas, o que mostra que as manifestações da doença podem estar-se tornando mais violentas, contribuindo para um aumento de sua mortalidade.
Também é desproporcionalmente alto, em relação a outros países, o número de gestantes brasileiras que morreram por complicações associadas à gripe A (H1N1). Dados da primeira semana de agosto revelam que, do total de 82 gestantes que contraíram a gripe A (H1N1), 34% haviam morrido, o que é considerado uma proporção bastante elevada em comparação com a de outros países.
A maior presença de casos graves e complicações da gripe A (H1N1) no Brasil pode estar influenciando sua alta mortalidade. Na maioria dos países, o número de mortes em relação aos casos registrados é inferior a 1%, mas no Brasil esta proporção chegaria a 12%, de acordo com as próprias estatísticas do Ministério da Saúde (9% segundo a Tabela 1). O país latino-americano que chega a proporções mais próximas é o Paraguai (com 9%). Em outros países, como Colômbia e Argentina, a proporção se encontra ao redor de 6%.
Considerando, porém, a mortalidade acarretada pela influenza A no conjunto da população, pode-se dizer que o Brasil ainda se encontra em melhor situação que outros países latino-americanos como Argentina, Uruguai, Costa Rica, Paraguai e Chile, onde as taxas de mortalidade por 100 mil habitantes variam entre 0,6 (Chile) e 1,0 (Argentina). A taxa de mortalidade observada nos casos de gripe A (H1N1) no Brasil é de 0,09 por 100 mil habitantes, ainda que nos estados do Sul, onde a incidência é agravada pelo inverno mais rigoroso, ela seja quatro vezes superior à média nacional, como se vê no Gráfico 3.
Portanto, ainda que no Brasil o número de mortes seja elevado diante do número de casos, a pandemia ainda não teve efeitos tão drásticos sobre a mortalidade geral como em outros países latino-americanos, o que pode levar à hipótese de que o número de casos registrados esteja subestimado.
O Brasil está preparado para enfrentar a gripe A (H1N1)?
Do ponto de vista formal, sim. Vários guias e protocolos têm sido emitidos, incluindo os mais recentes no mês de agosto de 2009. Eles permitem orientar os serviços de saúde a como proceder em relação a aspectos tão diversos quanto: administração do cuidado clínico, aspectos laboratoriais, indicações para o uso de medicamentos (Tamiflu), medidas a serem tomadas pelas unidades assistenciais, atendimento ambulatorial e pronto atendimento, transporte de pacientes, segurança dos hospitais, processamento de produtos da saúde, vigilância epidemiológica integrada com a assistência, informação sobre internação e mortalidade e processos de vigilância sentinela. Essas normas seguem basicamente a orientação da OMS e estão amplamente disponíveis.
Sabe-se pela imprensa que a Fiocruz tem adquirido o Tamiflu, em seu estado genérico, e tem um acordo com a Roche para sua embalagem e distribuição, já que o principal cliente do medicamento é o Ministério da Saúde, que o tem armazenado nos estoques da rede básica e hospitalar de saúde do país.
No entanto, não têm sido realizados processos de avaliação sistemática que permitam saber qual o nivel de preparação das unidades de saúde para enfrentar uma pandemia de influenza A. Estariam a rede de saúde, os hospitais, ambulatórios e unidades de pronto atendimento aptos a prevenir e controlar a transmissão e a receber e tratar um conjunto crescente de casos, se e quando a pandemia alcançar grandes proporções?
Informações da Organização Panamericana da Saúde (OPS) mostram que a pandemia apresenta tendências decrescentes na Argentina, Canadá, Chile, Equador, El Salvador, Estados Unidos, Jamaica, México, República Dominicana, Uruguai e Venezuela. O risco parece ser crescente em Belize, Bolívia, Guatemala, Haiti, Paraguai, Peru e Santa Lúcia. Nos demais países das Américas, inclusive o Brasil, não existe informação ou a tendência não está definida.
A intensidade da pandemia, no final de julho, parecia ser elevada na Argentina, Canadá, Cuba, El Salvador e Guatemala. O Brasil está entre os países onde não existe informação que permita determinar a intensidade da pandemia. No que se refere ao impacto da pandemia nos serviços de saúde, este parece ser moderado em países como Argentina, Bolívia, Cuba, Equador, El Salvador, Guatemala e Paraguai. Não há países onde o impacto seja alto e no Brasil, mais uma vez, não há informação, segundo a OPS, sobre a capacidade de resposta dos serviços de saúde.
Considerações finais
As lições aprendidas das pandemias anteriores de influenza mostram que a vigilância epidemiológica adequada é o primeiro passo. Quanto mais cedo forem identificados os modos, a intensidade e a capacidade de resposta das instituições, mas fácil é avançar nos processos de preparação e evitar tragédias como as ocorridas com a gripe espanhola. A vigilância pode ainda contribuir para acelerar a produção das vacinas, dado que permite acompanhar as mudanças virais para ajustar a eficácia das vacinas contra os distintos tipos de influenza (sazonal e outras).
A vigilância sobre a influenza, tanto humana como animal, também permite uma prévia identificação das populações que vivem em contato com animais domésticos ou selvagens, propiciando aos Ministérios, tanto da Agricultura como da Saúde, a proposição de rotinas sanitárias e a fiscalização do seu cumprimento, para evitar ou mitigar as chances de que vírus de transmissão animal possam sofrer mutações e se transformar em vírus de transmissão de ser humano para ser humano.
Organizações como a OMS, a OIE e o Banco Mundial, ainda que burocráticas, têm demonstrado muito mais eficiência e competência para elencar rotinas, conseguir recursos internacionais de financiamento e definir o papel de laboratórios na produção de vacinas e medicamentos para as pandemias de influenza do que os governos em dar uma resposta rápida e adotar medidas para enfrentar esses surtos. Nações continentais como a China, por exemplo, estão longe de fornecer informações fidedignas sobre os riscos de uma pandemia até que elas ocorram (como o caso da SARS) e é praticamente impossível convencer os governos dos países africanos – dizimados pela AIDS e pela malária – a investirem em processos de vigilância contra a influenza.
Além da vigilância, o segundo passo é a comunicação aberta sobre os dados e fatos relacionados com a influenza, independentemente de suas consequências políticas. Quando a comunicação é aberta, a vigilância é adequada e a liderança política é forte o suficiente para avançar na solução dos problemas, existe a chance de que uma pandemia possa ser evitada em seu nascedouro pelo isolamento de casos, criação de áreas de quarentena e administração de antivirais. A recomposição dos estoques de antivirais pelos países, a adequada comunicação sobre o número de doses existentes e sobre as estratégias para que todos possam ser atendidos no caso de uma crise pandêmica são passos necessários para construir uma relação de confiança entre o governo e sua população no caso de uma crise pandêmica.
Um terceiro passo é investir mais em pesquisa básica e desenvolvimento de vacinas e antivirais. Tomando como referência os esforços de luta contra o bioterrorismo, a OMS considera os vírus da influenza entre os mais de 40 tipos de vírus que poderiam ser utilizados como arma suja bacteriológica. Os três primeiros da lista são anthrax, peste e varíola (peste e varíola são evitáveis por vacinação).
O combate às endemias gera um bem público que beneficia a todos e é indivisível. É antes de tudo uma função essencial de saúde pública. Cabe ao Estado o papel de condutor da estratégia e de fazê-la cumprir pelas empresas, indivíduos e instituições da sociedade civil.
Com o término do inverno no Hemisfério Sul é possível que o governo nos países da América Latina, particularmente nas regiões mais frias do Cone Sul, ganhem fôlego para começar a intensificar seus esforços de preparação para enfrentar uma eventual pandemia. O bastão passa novamente para o Hemisfério Norte. A resposta mexicana aos efeitos da influenza no próximo inverno poderão balizar e antecipar a dimensão do que ainda estará por vir. Esperemos que não seja o pior.
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