Quando visito outros países, ou leio a imprensa estrangeira, só ouço elogios ao Brasil. Um país do BRIC, o “melhor do BRIC”, segundo dirigentes de empresas multinacionais. Posso, portanto, compreender a admiração e a surpresa que a política externa do Brasil causa no exterior. Já a admiração em relação ao seu desempenho econômico é para mim difícil de compreender. Desde os anos 1980, alguns países asiáticos vêm crescendo a taxas muito maiores do que o Brasil.
A “promoção” do Brasil a BRIC não mudou esse quadro – apenas levou muitos a pensar que mudou. Ainda que a taxa de crescimento do País tenha aumentado nos últimos anos, passando, em média, de 2% para 4% ao ano, continua muito menor do que a da China ou a da Índia. Em 2010, o crescimento do PIB foi mais elevado, 7,5%, mas esse resultado compensa a recessão de 2009, e não é sustentável, já que está sendo alcançado ao mesmo tempo em que o déficit em conta-corrente do País aumenta de forma perigosa. Nem a China nem a Índia padecem desse mal; crescem com superávit em conta-corrente.
Isto não significa que não tenham ocor¬rido avanços na política econômica. O grande aumento do salário-mínimo e a extensão do programa Bolsa Família a um número muito maior de brasileiros contribuíram para a expansão do mercado interno. No momento da crise financeira global de 2008, o BNDES e os demais bancos do governo central agiram de forma contracíclica, aumentando fortemente seus empréstimos às empresas. Uma política industrial foi definida. Grandes grupos empresariais brasileiros passaram a ter apoio do governo.
Graças à pressão do Ministério da Fazenda, o Banco Central diminuiu um pouco a taxa de juros real. Entretanto, em nome do combate a uma inflação dominada desde 1994, continuou a adotar uma política ortodoxa, própria do Consenso de Washington, baseada em taxa de juros ainda alta e taxa de câmbio sobreapreciada, ou, em outras palavras, baseada em déficit público e em déficit em conta-corrente – duas políticas perversas que levaram o Brasil a perder o mercado externo e vêm freando o investimento e o crescimento da economia brasileira.
A taxa de crescimento do Brasil continua, portanto, inferior e mais instável do que a dos países asiáticos. Isto se deve à política monetária ortodoxa do Banco Central – uma política baseada na irresponsabilidade fiscal e na irresponsabilidade cambial (déficits desnecessários em conta-corrente), que interessa aos competidores ricos do Norte, mas não interessa ao Brasil. Se o País seguisse outra política econômica, se adotasse de forma decidida os princípios do novo desenvolvimentismo, ao invés de ficar dividido entre este e o Consenso de Washington, poderia aumentar sua taxa de investimento e estar crescendo a uma taxa pelo menos duas vezes maior do que a lograda desde que, em 1994, a alta inflação inercial foi controlada, ou um terço maior do que a taxa média dos anos 2000.
Por que faço essa afirmação de forma tão segura? Estaria eu repetindo o keynesianismo vulgar e propondo que o governo incorra em déficits públicos mais elevados para manter sustentada a demanda agregada? Pelo contrário, baseado na macroeconomia estruturalista do desenvolvimento que venho desenvolvendo, nos últimos dez anos, em colaboração com um competente grupo de economistas keynesianos e estruturalistas, estou propondo uma estratégia nacional de desenvolvimento, que denomino novo desenvolvimentismo, que é substancialmente mais austera e responsável e leva a uma taxa de crescimento substancialmente maior do que aquela proporcionada pela ortodoxia convencional.
Estas ideias estão sendo desenvolvidas por vários economistas em diversos países e foram por mim sistematizadas num livro, Globalização e Competição (Rio de Janeiro, Campus-Elsevier, 2010) e num artigo com Paulo Gala (“Macroeconomia Estruturalista do Desenvolvimento”, Revista de Economia Política, 30 (4): 663-686, outubro de 2010).
Macroeconomia estruturalista do desenvolvimento
A macroeconomia estruturalista do desenvolvimento afirma que, embora o de¬senvolvimento econômico dependa também de fatores do lado da oferta (educação, progresso técnico e científico, investimentos na infraestrutura, boas instituições), seu ponto de estrangulamento está no lado da demanda. O desenvolvimento econômico depende de uma taxa de investimento elevada, que depende da existência de oportunidades de investimentos lucrativos para as empresas, que, por sua vez, dependem da existência de demanda interna e demanda externa. Entretanto, essas duas demandas tendem a ser insuficientes nos países em desenvolvimento devido a duas tendências estruturais: a tendência dos salários crescerem menos do que a produtividade (que deprime a demanda interna) e a tendência à sobrevalorização cíclica da taxa de câmbio, que coloca toda a demanda externa fora do alcance das empresas nacionais, mesmo que elas sejam eficientes ou competentes.
A primeira tendência decorre da oferta ilimitada de mão de obra existente nos países em desenvolvimento. A grande vantagem desses países, em relação aos países ricos, está em sua mão de obra barata, mas, como ela é abundante, tende a ser mal remunerada, o que cria um problema de insuficiência de mercado interno. Conforme Celso Furtado sempre salientou, a política de desenvolvimento deve estar sempre preocupada em enfrentar esse problema, não apenas por uma questão de justiça social, mas também porque um desenvolvimento sadio e sustentado não se coaduna com o aumento da desigualdade em países nos quais essa desigualdade já é muito grande.
A segunda tendência – a tendência à sobrevalorização cíclica da taxa de câmbio – é nova na literatura econômica. É uma crítica tanto à teoria neoclássica ou ortodoxa, que afirma que a taxa de câmbio flutua suavemente em torno da taxa que equilibra intertemporalmente a conta-corrente do país, quanto à teoria keynesiana, que afirma que ela flutua de forma volátil em torno desse mesmo equilíbrio. Ao invés, o que afirma a macroeconomia estruturalista do desenvolvimento é que, nos países em desenvolvimento, a taxa de câmbio não é controlada pelo mercado, mas pelas crises de balanço de pagamentos. O ciclo começa com uma crise de balanço de pagamentos, ou seja, com a súbita suspensão da rolagem da dívida externa do país em moeda estrangeira pelos credores externos e, em consequência, a forte desvalorização da moeda local. Em seguida, depois do inevitável ajuste que o país é obrigado a fazer, a taxa de câmbio volta a se apreciar gradualmente, puxada pela doença holandesa e, depois de algum tempo, por déficits em conta-corrente causados pela política de crescimento com poupança externa e pela tentativa de segurar a inflação com o câmbio. A dívida externa volta a aumentar e, afinal, de repente, os credores externos perdem a confiança, suspendem a rolagem da dívida externa. Acontece nova crise de balanço de pagamentos ou novo sudden stop, que leva a moeda nacional a se desvalorizar violentamente.
Há quatro causas fundamentais para essa tendência: 1) a doença holandesa, que atinge quase todos os países em desenvolvimento; 2) o “fetiche da poupança externa” – a crença de que os países devem incorrer em déficit em conta- -corrente financiado e financiá-lo por entradas de capitais para crescer; 3) a estratégia perversa de procurar reduzir a inflação à custa da apreciação da moeda nacional; e 4) o “populismo cambial”, ou seja, a estratégia política de apreciar o câmbio para aumentar os salários reais e lograr reeleição.
No quadro da macroeconomia estruturalista do desenvolvimento, o modelo da doença holandesa explica por que a taxa de câmbio de mercado tende para o equilíbrio corrente, que já é um equilíbrio sobreapreciado, já que não viabiliza indústrias que utilizam tecnologia no estado da arte mundial; o modelo da taxa de substituição da poupança interna pela externa mostra quão equivocado é o fetiche da poupança externa; as duas últimas causas da tendência à sobreapreciação cíclica da taxa de câmbio não exigem explicação adicional àquela presente em sua enunciação.
Doença holandesa
A doença holandesa caracteriza-se pela existência de duas taxas de câmbio de equilíbrio, podendo ser definida como uma sobreapreciação permanente da taxa de câmbio causada pelas rendas ricardianas (Ricardian rents) derivadas de recursos naturais abundantes ou de mão de obra barata, esta última quando acompanhada por elevada diferença entre os salários dos engenheiros de fábrica e os trabalhadores.
A produção e a exportação de commodities que dão origem à doença holandesa são economicamente viáveis a uma taxa de câmbio substancialmente mais apreciada do que aquela necessária para que os outros setores da economia, produtores de bens comercializáveis internacionalmente, que utilizam tecnologia no estado da arte mundial, sejam igualmente viáveis. A essa taxa, que é determinada pelo mercado, a conta-corrente do país se mantém equilibrada; denomino-a taxa de câmbio de “equilíbrio corrente”. A segunda taxa de equilíbrio, mais depreciada que a primeira – a taxa de câmbio necessária para que sejam competitivas as empresas que utilizam tecnologia avançada – é a taxa de câmbio de “equilíbrio industrial”.
A diferença entre essas duas taxas indica a gravidade da doença holandesa. Em um país produtor de petróleo essa diferença é geralmente muito grande. Se, por exemplo, a taxa de câmbio de equilíbrio corrente nesse país for de duas moedas do país por dólar e a taxa de câmbio de equilíbrio industrial for de dez moe¬das do país por dólar, esse país terá uma doença muito mais grave do que outro país, neste caso produtor de soja, cuja taxa de câmbio de equilíbrio corrente for igualmente de duas moe¬das do país por dólar, mas sua taxa de câmbio de equilíbrio industrial for de três moedas por dólar. No primeiro país, a gravidade da doença holandesa (que pode ser definida como a diferença entre as duas taxas dividida pela taxa de equilíbrio industrial) será de 80%, enquanto que no segundo país será de 33%.
No primeiro país, investimentos em outras indústrias de bens comercializáveis serão completamente inviáveis se o país não neutralizar a doença holandesa; no segundo caso, algumas indústrias mais eficientes e com alguma proteção tarifária poderão sobreviver no mercado interno, mas não poderão exportar. O primeiro caso é típico de países como a Venezuela e a Arábia Saudita; o segundo, de países como o Brasil, desde que fez sua abertura comercial e financeira (1990-1991) e deixou de administrar sua taxa de câmbio.
Para compreender o ciclo de sobreapreciação e crise a que estão sujeitos os países em desenvolvimento que seguem os preceitos da ortodoxia convencional, sugiro que examinem o gráfico que apresento neste artigo. Nele temos as duas taxas de equilíbrio e a tendência cíclica à sobreapreciação da taxa de câmbio, na linha interrompida escura. Temos ainda as duas alternativas a essa tendência que, na verdade, não se aplicam às economias em desenvolvimento: na linha branca, a flutuação suave e bem-comportada suposta pela teoria ortodoxa; na linha preta, a flutuação volátil suposta pelos keynesianos. Como vemos no gráfico, o ciclo começa com uma crise de balanço de pagamentos e uma violenta depreciação, que leva a taxa de câmbio acima (mais depreciada) do equilíbrio industrial. Em seguida, a doença holandesa “puxa” a taxa de câmbio para o equilíbrio corrente – o nível com o qual essa grave falha de mercado é compatível.
Para entender por que a taxa de câmbio continua a se apreciar, entra na área de déficit em conta-corrente e termina por levar o país à crise de balanço de pagamentos, é preciso considerar a crítica da política de crescimento com poupança externa, ou seja, com déficits em conta-corrente. Esta política proposta pelos países ricos aos países em desenvolvimento, e aceita por estes, afirma que: 1) os países em desenvolvimento devem incorrer em déficits em conta-corrente e financiá-los com entradas de capitais “para aumentar a poupança total”, e 2) que podem e devem aumentar juros para atrair capitais, apreciar a taxa de câmbio e, assim, atingir uma meta de inflação.
As duas estratégias implicam atração de capitais externos. A primeira é o incentivo à busca de financiamento externo e a deliberada incursão em déficits em conta-corrente (que, na literatura econômica, são chamados de forma eufemística de “poupança externa”) para, assim, aumentar a taxa de poupança do país e sua taxa de investimento sobre o PIB; a segunda, uma clássica distorção do regime de metas de inflação.
Entretanto, conforme demonstra o modelo que desenvolvi de substituição da poupança interna pela externa, as entradas de capitais não causam, principalmente, o aumento da poupança total e do investimento, e, sim, o aumento do consumo e a diminuição da poupança interna, ocorrendo, assim, uma elevada taxa de substituição da poupança interna pela externa. Os déficits em conta-corrente almejados pela política econômica exigem entradas de capitais para financiá-los e apreciam a moeda local. Em consequência, de um lado, os salários aumentam artificialmente, o consumo também aumenta artificialmente (dada a existência de uma elevada propensão marginal a consumir), a poupança interna cai e a poupança externa limita-se a substituir a interna. De outro lado, em termos mais keynesianos, a apreciação da moeda nacional, depois de um rápido período de estímulo ao investimento, devido ao barateamento dos equipamentos importados, cai porque desaparecem as oportunidades de investimentos voltados para a exportação e porque bens importados passam a inundar o mercado interno. O resultado, tanto de acordo com o primeiro quanto com o segundo raciocínio, é pouco ou nenhum aumento da taxa de investimento e de poupança total do país; ao invés, aumentam o consumo e a dívida externa.
Só em momentos excepcionais, quando o país já está crescendo aceleradamente e a propensão marginal a consumir se torna pequena, uma política de crescimento com poupança externa é benéfica. Na maioria das vezes, mesmo que se trate de investimento em capital físico, beneficia principalmente o investidor externo que recebe altos juros ou tem acesso sem reciprocidade ao mercado interno do país. Isto não significa que todo investimento de empresas multinacionais seja prejudicial ao país. Quando as entradas de capitais que o acompanham não vêm para financiar déficit em conta-corrente e apreciar o câmbio, mas para trazer tecnologia, não há nada a objetar. Este é o caso da China, que há muitos anos apresenta superávit em conta-corrente, mas admite a entrada de capitais estrangeiros desde que tragam tecnologia. A China não precisa dos capitais, porque cresce com despoupança externa; a entrada de capitais não preenche rombo externo, mas apenas aumenta as reservas internacionais do país.
A rejeição ao financiamento externo também não significa que um sistema financeiro nacional bem desenvolvido deixe de ser considerado fundamental para o desenvolvimento. Seu papel é financiar o investimento e, assim, viabilizar o aumento da poupança. Mas o financiamento é externo, concedido pelo sistema financeiro nacional – que faz empréstimos às empresas que estão investindo na moeda do país, e, dessa forma, não aprecia a taxa de câmbio, como acontece quando o empréstimo externo é feito em divisa forte.
Taxa de câmbio competitiva
Como fica o argumento neoclássico e neo¬liberal segundo o qual os países em desenvolvimento precisam de capitais externos para aumentar sua taxa de investimento? No caso de países de renda média como o Brasil, essa “falta” não existe. O que falta são oportunidades de investimentos lucrativos. Quando a taxa de câmbio se torna competitiva (no equilíbrio industrial), essas oportunidades passam a existir, e, havendo crédito (coisa que existe no Brasil graças ao BNDES, ao mercado de ações e, crescentemente, graças aos grandes bancos brasileiros), os empresários inovadores o obtêm, investem e, em consequência, keynesianamente, a taxa de poupança cresce.
Em síntese, uma taxa de câmbio equilibrada ou competitiva é essencial para o desenvolvimento econômico porque ela coloca ao alcance das empresas nacionais, que utilizam tecnologia no estado da arte mundial, toda a demanda externa mundial. Dada a vantagem de ter uma mão de obra barata, os países em desenvolvimento que mantiverem sua taxa de câmbio estável e no equilíbrio industrial, que é o verdadeiro câmbio de equilíbrio do país, crescerão de forma acelerada, realizando o catching up. Mas, para isso, precisam adotar a política de crescimento com poupança interna e neutralizar a doença holandesa.
Novo desenvolvimentismo
No quadro da globalização, os países competem entre si. Por isso, precisam de uma estratégia nacional de desenvolvimento – o novo desenvolvimentismo – cujo papel fundamental é neutralizar as duas tendências estruturais que acabei de discutir. No Brasil, esta neutralização ocorreu nos últimos cinco anos em relação à tendência dos salários crescerem menos do que a produtividade. Não houve, porém, neutralização da tendência à sobrevalorização cíclica da taxa de câmbio. Por quê? Essencialmente, porque a ortodoxia convencional, embora hoje muito abalada, continua hegemônica do ponto de vista ideológico: a sociedade civil brasileira não acredita mais piamente nessa ortodoxia como acreditava nos anos 1990, mas não se sente ainda segura em relação às novas ideias, especificamente em relação ao novo desenvolvimentismo.
Na verdade, o novo desenvolvimentismo é mais seguro e responsável do que a ortodoxia convencional. A ortodoxia convencional propõe déficits em conta-corrente (poupança externa) e, apesar de toda a sua retórica austera, que leva o economista convencional a resolver todos os problemas com a diminuição do gasto público, está também baseada na manutenção do déficit público, quando o correto é zerar esse déficit quando o país tem doença holandesa. Ao invés disso, a ortodoxia convencional propõe taxa de juros real alta “para combater a inflação”. Como, porém, o grande devedor é o Estado, a ortodoxia convencional sabe que esses juros impactarão o déficit público, de forma que, coe¬rentemente, e para manter o grau de endividamento estável (afinal ela não pode pôr em risco a dívida pública, que é a galinha dos ovos de ouro para os rentistas), ela propõe superávit primário inferior ao total de juros pagos pelo Estado, o que significa déficit público.
No Brasil, enquanto o total de juros pagos pelo Estado tem girado em torno de 7%, o superávit primário ficou em 4%, de forma que continua a haver um déficit público de 3% do PIB. Embora o economista convencional não goste de confessá-lo, ele está advogando a favor de dois déficits – o déficit em conta-corrente e o déficit público. Atende, assim, ao modelo ou teoria dos déficits gêmeos: quando temos um déficit, tendemos a ter o outro. Mas inverte a relação usualmente suposta nesse modelo: não é o déficit público, desejado pelo político populista, que causa o déficit em conta-corrente, mas é o déficit em conta-corrente, desejado pelo economista ortodoxo, que causa ou requer o déficit público.
Para um país que tem doença holandesa, esse tipo de política ortodoxa representa irresponsabilidade cambial e pouca seriedade fiscal. Um país que tem doença holandesa pode e deve ter superávit em conta-corrente. Se o país consegue neutralizar sua doença holandesa, isto significa que deslocou sua taxa de câmbio do equilíbrio corrente para o equilíbrio industrial e, portanto, que passou a ter superávit em conta-corrente. A lógica do modelo é clarís¬sima a respeito.
Além disso, esse país que neutraliza sua doe¬nça holandesa pode ter superávit fiscal, e deve, pelo menos, praticar déficit público zero. Para entender isto, sem recorrer ao raciocínio inverso dos déficits gêmeos, é preciso compreen¬der como se neutraliza a doença holandesa. Isto se faz, essencialmente (como faz hoje a Noruega em relação a seu petróleo, o Chile em relação ao cobre, e a Argentina em relação à soja), impondo um imposto ou retenção sobre a exportação desse bem correspondente à diferença entre o equilíbrio industrial e o equilíbrio corrente.
Ao se estabelecer essa retenção, a oferta do bem em relação à taxa de câmbio se deslocará para cima, o que causará a depreciação da moe¬da nacional e resultará na mudança do equilíbrio corrente do país, que se equalizará ao equilíbrio industrial. Esta depreciação ocorrerá porque, a partir do imposto, o produtor da commodity que origina a doença holandesa não está mais disposto a oferecer seu produto pela taxa de câmbio anterior ao imposto; condiciona sua produção a uma depreciação que compense o imposto pago. No exemplo do país exportador de soja, se o governo impõe uma retenção de uma moeda nacional por dólar exportado de soja, os produtores de soja só continuarão a oferecer a soja, ou seja, a produzi-la, se a taxa de câmbio mudar de duas para três moedas nacionais por dólar, e é para esse nível que o mercado, funcionando livremente, levará a taxa de câmbio.
Há, certamente, um processo de transição que precisa ser cuidado pelo governo, mas, afinal, não é o produtor de soja que paga o imposto; ele fica exatamente na mesma posição, com a mesma rentabilidade: antes do imposto recebia duas moedas por dólar exportado, depois, recebe três moedas por dólar exportado, mas paga uma moeda de retenção. Quem paga o imposto é todo o povo do país, porque com a desvalorização os preços dos bens comercializáveis sobem e os salários reais caem. Mas, em seguida, a economia passa a crescer aceleradamente e esse prejuízo é em pouco tempo compensado.
Imposto de exportação e fundo soberano
O que deve fazer o governo com a receita do imposto? Em princípio, deve fazer o que faz a Noruega. Ao invés de gastá-lo, investe-o em um fundo soberano. Supondo-se que o orçamento do Estado, desconsiderado o imposto, está equilibrado, o imposto de exportação deverá constituir superávit público. Se, mais realisticamente, supusermos que, sem considerar a doença holandesa e o imposto que a neutraliza, é razoável que o país incorra em um déficit público moderado (que mantém constante a dívida pública do país em relação ao PIB), a adição do imposto de exportação à receita do Estado deverá reduzir esse déficit público para próximo de zero. Se o Estado decidir gastar os recursos do imposto, deverá e poderá fazê-lo moderadamente, de forma que não ficará longe do déficit público zero.
Mas falta responder uma pergunta básica: através desta estratégia de crescimento com poupança interna e neutralização da doença holandesa, como o país conseguirá aumentar sua taxa de investimento e de poupança, já que o novo desenvolvimentismo rejeita a proposta equivocada de tentar adicionar à poupança interna a externa, porque seu resultado é antes aumento do consumo e da dívida externa do que do investimento? A resposta está em administrar a taxa de câmbio, ainda que no quadro de um câmbio flutuante, para que ela não se aprecie e seja competitiva, permaneça em torno do equilíbrio industrial. Para isto, será necessário neutralizar a doença holandesa e rejeitar o fetiche da poupança externa ou, em outras palavras, buscar crescer da única forma possível, com base na poupança interna. Graças a uma taxa de câmbio competitiva, as oportunidades de investimento aumentarão imediatamente para as empresas eficientes. Aumentarão em relação ao mercado externo, porque toda a demanda externa ficará ao alcance dessas empresas, e em relação ao mercado interno, porque diminuirá para elas a competição dos bens importados.
Ao aumentar a taxa de investimento, aumentará a renda e, como demonstrou Keynes, aumentará a taxa de poupança. Não se aumenta, portanto, a taxa de poupança do país recorrendo a uma ilusória poupança externa, mas garantindo demanda para as empresas e investindo. Para que as empresas invistam, basta, em termos de Schumpeter, que o sistema financeiro nacional torne disponível crédito para as empresas inovadoras; desta forma, estarão inovando, obtendo lucros e promovendo o desenvolvimento econômico do país.
Além de desempenhar o papel indutor de oportunidades de investimento, o Estado deve, de um lado, aumentar a eficiência de seu gasto na área dos serviços sociais e culturais e, assim, obter recurso para, sem aumentar a carga tributária, poder ampliar seus próprios investimentos. Sem, naturalmente, concorrer com os investimentos privados, mas complementando-os e incentivando-os. Se, por exemplo, o obje¬tivo a médio prazo, no Brasil, for aumentar a taxa de investimento de 18% para 25% do PIB, o Estado deverá elevar seu investimento dos ¬atuais 2% para cerca de 5% (aproximadamente 20% do total), ficando o setor privado responsável por investimentos equivalentes a 20% do PIB. Enquanto para o velho desenvolvimentismo o Estado devia ser também produtor, porque o setor privado não tinha capacidade de investir, hoje, no quadro do novo desenvolvimentismo, em um país que já realizou sua revolução capitalista, o papel do Estado na área econômica deve ser apenas estratégico ou indutor.
Em síntese, o novo desenvolvimentismo defende superávit em conta-corrente e déficit público em torno de zero, porque a neutralização da doença holandesa leva a economia do país nessa direção, e rejeita a proposta dos países ricos de que os países cresçam com poupança externa, porque essa tese não se sustenta nem lógica nem empiricamente (já há muitas pesquisas comprovando esse fato).
Através da neutralização da doença holandesa e da política de crescimento com poupança interna, o país aumenta sua taxa de investimento e de poupança e cresce aceleradamente com estabilidade de preços, e sem ficar sujeito a crises cíclicas de balanço de pagamentos. É, portanto, uma estratégia muito mais segura e responsável do que a ortodoxia convencional, que defende déficit em conta-corrente e aceita déficit público para financiar juros altos pagos pelo Estado.
É possível mudar a política macroeconômica? P ara tornar o novo desenvolvimentismo a política econômica do país é fundamental convencer sua sociedade civil – ou seja, a sociedade politicamente organizada formada por empresários, classes médias intelectuais, organizações corporativas e organizações de advocacia política. A rigor, seria preciso convencer o povo – a massa dos eleitores – mas, nas democracias imperfeitas de que dispõem os países, esse povo tem pouco poder, e o fundamental para os políticos que tomam as decisões no governo é a legitimidade da política econômica assegurada pelo apoio da sociedade civil.
Alternativa ao Consenso de Washington
Não é fácil convencer a sociedade civil dos países de renda média da superioridade do novo desenvolvimentismo sobre a ortodoxia convencional. No caso do Brasil, o novo desenvolvimentismo fez progressos substanciais nos últimos dez anos, mas ainda não se tornou hegemônico na sociedade civil. Já é dominante entre os empresários industriais, mas caminha devagar no restante da sociedade civil. Por várias razões. Primeiro, porque estas novas ideias apenas começam a ser conhecidas por seus líderes. Segundo, porque os brasileiros, estigmatizados pela alta inflação que prevaleceu entre 1980 e 1994, consideram boa qualquer política que assegure a estabilidade dos preços – coisa que a ortodoxia convencional do Banco Central está conseguindo. Terceiro, porque a hegemonia ideológica do Norte neoliberal e globalista sobre a sociedade brasileira ainda se mantém de pé. Destas três causas, esta é a principal. As elites burguesas e, principalmente, as elites intelectuais nos países em desenvolvimento são ambíguas em relação à questão nacional. Não são intrinsecamente dependentes, como afirmou a teoria da dependência, mas são nacional-dependentes: como sugere esse oximoro, ora se identificam com a nação, ora se associam de maneira subordinada ao império.
Nos anos 1990, a hegemonia do império foi quase absoluta e as elites brasileiras foram dependentes. Nos anos 2000, elas avançaram na direção da independência nacional e este avanço foi em parte sancionado pelo governo Lula. Isto ocorreu, de um lado, porque o consenso de Washington fracassou nos países em desenvolvimento aos quais se destinava, e porque, no Norte, o neoliberalismo globalista, ao desregulamentar os mercados, promoveu enorme concentração de renda nos 2% mais ricos da população e desembocou na crise financeira global de 2008 e na grande recessão que hoje enfrentam os países ricos.
Devido a estes fatos, a ortodoxia convencional já não é mais hegemônica, mas o novo desenvolvimentismo ainda não logrou substituí-la no papel de estratégia nacional. Principalmente, porque a macroeconomia estruturalista do desenvolvimento é constituída por um conjunto de modelos, e o novo desenvolvimentismo, por um conjunto de propostas de política, que só se consolidaram, do ponto de vista teórico, recentemente. Mas já se avançou muito nessa direção, como ficou demonstrado quando 25 economistas e cientistas políticos de diversos países se reuniram em um workshop em São Paulo, em maio de 2010, e propuseram e aprovaram as “Dez Teses sobre o Novo Desenvolvimentismo” (“Ten Theses on New Developmentalism”). A esses economistas se juntaram cerca de 50 outros economistas e cientistas políticos importantes que foram convidados para serem também “subscritores originais” do documento. Estas “Ten Theses”, que estão agora abertas à subscrição de outros economistas (www.tenthesesonnewdevelopmentalism), podem ser vistas como uma alternativa concreta ao Consenso de Washington.
No processo de transição em curso do novo desenvolvimentismo para a condição hegemônica seus propositores enfrentam, ainda, uma questão colocada por seus interlocutores na sociedade civil. Eles dizem, “está bem, suas teo¬rias e suas propostas fazem sentido, mas não é possível pô-las em prática, não é possível administrar a taxa de câmbio”. Esta “impossibilidade” é, assim, o último bastião da ortodoxia convencional. Mas um bastião frágil. Seus defensores neoliberais dizem que na globalização é impossível estabelecer controles à entrada de capitais, mas a experiência histórica do Brasil e a experiência atual dos países asiáticos dinâmicos mostram que isto não é verdade. O novo desenvolvimentismo defende controles à entrada de capitais, não à sua saída, porque como crises de balanço de pagamentos deixam de ser a “condição natural” dos países de renda média, não haverá razão para fugas de capitais.
Por outro lado, embora haja problemas políticos internos em estabelecer um imposto sobre as exportações de bens que dão origem à doença holandesa, está claro que isto é possível desde que fique explícito que os exportadores não serão prejudicados, porque a depreciação cambial compensará o valor do imposto pago. Na verdade, os produtores de bens primários serão beneficiados desde que o governo use parte dos recursos para estabelecer um fundo de estabilização que os socorra nos casos de queda violenta dos preços internacionais da commodity.
Finalmente, há duas dificuldades causadas temporariamente pelo deslocamento da taxa de câmbio do equilíbrio corrente para o industrial: haverá um choque de custos que aumentará apenas uma vez a inflação, e os salários reais diminuirão um pouco. A inflação, porém, logo voltará a cair desde que não haja qualquer indexação de preços. Quanto aos salários, logo voltarão a subir, agora de forma sustentada, graças ao aumento da taxa de investimento e da aceleração do crescimento.
• LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA é professor titular do Departamento de Análise e Planejamento Econômico da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, onde entrou por concurso em abril de 1959. É presidente do Centro de Economia Política, de cuja publicação trimestral, Revista de Economia Política, é editor desde 1981.
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