Oito anos após o início do governo Lula (2003–2010), é possível fazer um balanço, ainda que provisório, de sua política externa. Provisório, porque a proximidade excessiva dos acontecimentos sempre dificulta juízos objetivos sobre um período marcado por grandes transformações, como o transcorrido no Brasil e no mundo nestes últimos anos.
A própria objetividade almejada dificilmente é alcançável. Ambicionada por historiadores e cientistas sociais, ela sofre a interferência de conflitos de interesse que atravessam todas as sociedades, sobretudo em períodos de aceleradas mudanças, como o atual.
O pensamento conservador sempre tratou de aprisionar as transformações sociais em fórmulas de sentido unívoco. Assim, a política exterior de um país, além de ser caracterizada como “política de Estado” e, por essa razão, “não partidária”, tinha de refletir o “interesse nacional”.
O liberalismo, em sua versão conservadora, reduziu a democracia à existência de um “Estado democrático de direito” imutável. Contra essa rigidez se insurgiram, cada um à sua maneira, a social-democracia e as revoluções socialistas do século XX. Destas últimas não nasceu a democracia anunciada. Ao tentar adjetivá-la – “burguesa” ou “proletária” – seus partidários acabaram por negar os aspectos universais dessa forma de governo e de convivência social. A despeito disso, as experiências mais tarde qualificadas como de “socialismo real”, apesar de seus descaminhos, exerceram forte pressão sobre os países desenvolvidos, em matéria de regulação econômica, planificação e, sobretudo, conquistas sociais para as classes trabalhadoras.
Já a social-democracia, que procurou fundir os ideais políticos perdidos do liberalismo com as aspirações de uma mudança social do (e/ou no) capitalismo, tampouco logrou seus objetivos de articular de forma duradoura mercado e Estado, democracia política e democracia econômica e social e de construir uma ordem mundial democrática e não assimétrica. O impasse que viveu nos últimos anos o pensamento de esquerda é resultado desses dois fenômenos históricos.
Em resposta à crise desses dois paradigmas, Claude Lefort estabeleceu que a democracia supõe, e mesmo exige, a existência de um espaço público no qual sujeitos sociais são capazes de criar novos direitos. Não se nega o Estado democrático de direito. Simplesmente ele é resgatado do imobilismo e das amarras formalistas com as quais se buscou aprisioná-lo.
As instituições e a normatividade do Estado de direito deixam de ser uma camisa-de-força da democracia. Oferecem, antes, as regras (e instituições) para uma resolução dos conflitos, que nunca será definitiva, pois responde a interesses diferentes, configurados e renovados na sociedade.
Essa digressão, aparentemente aleatória, ganha significação concreta quando se examina a história do Brasil republicano, para não ir mais longe.
É sintomático que, por ocasião da ruptura institucional de 1964, os novos donos do poder tenham procurado encobrir o golpe de Estado e a subsequente ditadura com fórmulas jurídicas, preparadas por constitucionalistas de plantão. O regime militar manteve, salvo durante brevíssimos intervalos, o simulacro de um sistema de partidos e o Congresso nacional funcionando, para realizar, entre outras tarefas, a “alternância” dos generais na presidência.
Em uma espécie de homenagem do vício à virtude, a ditadura pretendeu revestir o Estado de exceção com os ouropéis do Estado democrático de direito.
Naqueles anos, o próprio “interesse nacional” sofreu suas inflexões, e isso se refletiu na política externa praticada entre 1964 e 1984. Por vezes, ele refletia os valores dominantes do período da Guerra Fria, no qual o que era “bom para os Estados Unidos, também o era para o Brasil”, como ocorreu no início dos governos militares. Em outra circunstância, uma leitura distinta do “interesse nacional”, imposta por nova percepção das mudanças da conjuntura mundial, permitiu a ressurreição da política externa independente do governo deposto, sob o “codinome” (a prudência de uma clandestinidade intelectual assim o obrigava) de pragmatismo responsável.
O Brasil que emergiu do fim do regime militar procurou reconstituir sua presença no mundo. Retomou aos poucos os ideais defendidos no passado por San Tiago Dantas, Afonso Arinos e Araújo Castro, valores que haviam sobrevivido “clandestinamente” durante parte dos governos militares.
A lenta democratização da sociedade e do Estado brasileiros foi acompanhada de breves, mas intensas lutas sociais. Bastaria lembrar o debate sobre a política econômica, em meio a conflitos redistributivos, como os que sacudiram o País nos períodos marcados por forte inflação, que se somava à estagnação, à concentração de renda e à vulnerabilidade internacional.
Naqueles momentos, era difícil qualificar, de forma unívoca, o que seria o “interesse nacional”. Essa dificuldade se fazia mais evidente na esfera econômica, mas também se fez sentir em outros cenários da vida social e política, entre os quais o da política externa. Esta, como projeção do país na esfera internacional e elemento consubstancial na configuração de um projeto nacional de desenvolvimento, reflete conflitos e contradições da sociedade ainda que deva, e possa, apresentar uma cara coerente. Mas por estar ligada ao que se passa no país e no mundo, ela também expressa interesses partidários.
Diplomacia e paixões políticas
É falso, para dizer o menos, que a política externa tenha de ser conduzida de forma asséptica, por técnicos da diplomacia, incapazes de deixar-se contaminar pelas “impurezas” da realidade. Nada mais ideológico do que negar a presença das ideologias.
Não é preciso, assim, fazer uma longa digressão sobre nossa tradição diplomática para dar-se conta de que ela nunca esteve infensa às paixões políticas de cada período. As pressões de Osvaldo Aranha para que o Brasil se inclinasse para os Aliados, e não para o Eixo, foram fruto de um pendor “partidário”, ainda que os partidos estivessem proibidos no Estado Novo.
João Neves da Fontoura foi “homem de partido”, da mesma forma que Horácio Lafer. San Tiago Dantas era filiado ao PTB, Arinos à UDN, a qual abrigou em suas filas Abreu Sodré, antes de seu trânsito pela Arena e seu estacionamento no PFL. O banqueiro e chanceler Olavo Setúbal também integrou sucessivamente a Arena, o fugaz Partido Popular e, posteriormente, o PFL. Fernando Henrique Cardoso foi quadro dirigente do PMDB e do PSDB. Celso Lafer, para citar um último exemplo, nunca escondeu sua militância tucana. Da mesma forma, ministros de Relações Exteriores dos Estados Unidos e dos países europeus sempre mantiveram suas filiações partidárias.
Em suas funções, todos aqueles ex-ministros brasileiros mencionados serviram seu país de acordo com os valores e princípios que acreditavam ser universais, mas que aprenderam e amadureceram em seus espaços políticos próprios, isto é, em seus partidos. Nada mais natural. Suas gestões foram muitas vezes objeto de críticas de setores da sociedade – partidos ou facções da opinião pública. Falso, portanto, que, sob o manto de uma “política de Estado”, se escondesse uma unanimidade de opiniões.
O autor destas notas, por décadas na oposição, em mais de uma vez expressou diferenças ou divergências – mas também acordos – com orientações implementadas pelos sucessivos governos que antecederam a chegada de Lula à presidência da República.
É, assim, falaciosa a tese de que a política externa do governo Lula – e seus possíveis desdobramentos – tenha provocado a interrupção de uma tradição republicana e haja “dividido o País”, como alguns pretenderam.
A política externa, como toda política, sempre dividiu e divide uma sociedade, salvo em momentos muito especiais, como os de graves ameaças forâneas. Isso porque a política externa – como a econômica, a social e tantas outras – expressa interesses sociais e políticos distintos, e percepções culturais diversas. O nível dessa diversidade e a tolerância em relação a ela é forte indicador do grau de democracia existente em um país.
O Brasil e as mudanças globais
A política externa do governo Lula e da nova presidenta resgatou valores que inspiraram os grandes momentos de nossa tradição diplomática: o respeito à soberania nacional e a não intervenção nos assuntos internos de outros países, a luta pela paz e pela solução política de conflitos, a defesa da democracia e dos direitos humanos, o multilateralismo. A essa agenda foram acrescidos (ou nela enfatizados) temas como o do combate à fome e à exclusão social no mundo, o que implicou a defesa de uma ordem econômica global mais justa.
Para lograr esse último objetivo, impunha-se lutar por uma reforma das instituições de Bretton Woods – o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial – não só quanto à substância de suas políticas, mas também em relação à sua governança. No interior da Organização Mundial do Comércio, confrontada com a tarefa de concluir a Rodada Doha, o Brasil articulou o G-20, que mudou a lógica até então predominante das negociações comerciais globais.
Orientando-se claramente por uma perspectiva multilateral, a política externa brasileira também enfatizou a necessidade de um aggiornamento das Nações Unidas, em especial do seu Conselho de Segurança, responsável pelas complexas questões de segurança coletiva. Foi reiterada a tese de que era inaceitável um Conselho que, por sua composição, reflexo da conjuntura do imediato pós-Segunda Guerra, não expressasse a nova correlação de forças internacional nestes primeiros anos do século XXI. Por essa razão, o Itamaraty acentuou sua mobilização em torno dessa reivindicação, especialmente depois da criação do G-4, juntamente com a Índia, a Alemanha e o Japão.
Nas últimas três décadas, assistiu-se à vertiginosa aceleração da história, desde o fim da Guerra Fria e da bipolaridade até os dias de hoje, quando, no Sul do mundo, emergiram países com crescente importância econômica e política global, entre eles o Brasil.
A crise dos instrumentos de governança global foi atenuada pela criação de instâncias ad hoc, como o G-8, para o qual passaram a ser posteriormente convidados países emergentes. Essa prática, inaugurada em 2003 na reunião de Evian, foi sendo aprofundada em quase todos os encontros posteriores.
Nas sucessivas reuniões, cada vez mais ampliadas do G-8, ficava evidente que uma nova correlação de forças no mundo exigiria novos instrumentos de coordenação internacional.
A grave crise de 2008, que teve seu desencadeamento a partir da falência do Lehman Brothers, apressou a formação de um organismo mais representativo, o G-20 financeiro. Ainda que limitado em suas atribuições e desenvolvimento, limitações decorrentes das resistências de Estados Unidos e China a fazerem mudanças em suas políticas monetárias e cambiais e a submeterem-se a critérios multilaterais, o G-20 abriu o debate sobre grandes temas – regulação de fluxos financeiros globais, fim dos paraísos fiscais, mecanismos inovadores de financiamento no combate à pobreza – e contribuiu para uma reforma parcial, mas significativa, do FMI, especialmente de sua governança.
As grandes potências têm procurado confinar o G-20 no debate – mesmo assim parcial – de temas econômicos, reservando para o G-8 ou para outro condomínio (o 5+1, por exemplo) o enfrentamento de questões políticas globais relevantes, sobretudo as que envolvem os temas da segurança coletiva.
“Reserva de mercado” em política
Essa espécie de “reserva de mercado” em torno de questões políticas explica a reação dos Estados Unidos e de outras potências ao acordo de Teerã que o Brasil e a Turquia firmaram com o Irã, em 2010, para impedir que esse país usasse seu programa nuclear com fins militares.
A história mostrou, sem que fosse necessário transcorrer muito tempo, que havia coincidência entre o que os governos turco e brasileiro propugnavam e as propostas defendidas pelo presidente norte-americano. Mas isso não foi suficiente. A “invasão” por Turquia e Brasil de um território político-diplomático até então exclusivo das potências tradicionais provocou a intempestiva reação do G-5+1 de implementar sanções contra o Irã, desconsiderando o avanço – pequeno, por certo – que representara ter levado Ahmadinejad à mesa de negociações, que aí fez concessões até então não obtidas.
Da mesma forma, os movimentos da diplomacia brasileira no Oriente Médio com o intuito de desbloquear a questão palestina não foram bem recebidos, a despeito do reiterado fracasso das iniciativas das grandes potências nesta nevrálgica região do mundo.
Quando estas notas foram redigidas, a crise social e política desencadeada no Oriente Médio e no Norte da África estava em curso, sem previsões muito claras e seguras sobre seu desdobramento futuro.
Os acontecimentos do Egito, da Tunísia, da Líbia e de quase todos os países daquela região põem hoje em evidência o fracasso do chamado Grande Jogo, que desenhou o atual Oriente Médio em começos do século passado. Mas explicitou, igualmente, a inconsistência da Realpolitik levada adiante, décadas após, pelas grandes potências.
O desencadeamento da crise financeira e econômica global de 2008 alterou substancialmente o quadro mundial. Acentuou as incertezas que têm marcado a evolução histórica nas últimas décadas. Primeiro, porque a crise econômica não está encerrada e mantém fortes doses de imprevisibilidade. A perda de dinamismo das economias desenvolvidas, longe de estimular o surgimento de projetos renovadores – como o do New Deal, nos anos 1930 – tem provocado aventuras monetárias e cambiais, de claro signo protecionista, permitindo a implementação de orientações conservadoras, como aquela a que se assiste em boa parte da Europa.
As dificuldades que as esquerdas do velho continente têm encontrado até agora para definir respostas consistentes a uma crise que não produziram – mas que, em alguns casos, têm de gerir – criaram um perigoso vazio, cada vez mais ocupado por forças de extrema-direita.
Os rumos que venham a tomar os acontecimentos do Oriente Médio e Norte da África poderão provocar sensível agravamento da situa¬ção econômica e social dos países desenvolvidos, sobretudo dos fortemente dependentes de petróleo, além de estimular fluxos migratórios descontrolados.
Os períodos de incertezas e de declínio de grandes potências, ainda que esse declínio seja lento, são extremamente perigosos. Qualquer acontecimento, mesmo que de pequena expressão, pode desencadear catástrofes de grande monta.
Multilateralismos e multipolarismo: O “polo” sul-americano
Da mesma forma que o dinamismo da economia mundial é hoje garantido pelos países da antiga periferia, é importante que a renovação das relações internacionais resulte de uma maior participação deles na governança global.
Essa convicção multilateral, que informou a política externa brasileira, especialmente a partir do período Lula, e continuará presente no governo Dilma Rousseff, vem acompanhada da tese segundo a qual o rearranjo da ordem global se dará a partir da formação de novos polos. Por esse motivo, a política externa brasileira enfatizou suas ações na América do Sul, com a expansão e fortalecimento do Mercosul, com a criação e agora institucionalização da Unasul ou, finalmente, com um novo tipo de relacionamento bilateral com os países da região.
Essa diretriz, que marcou o governo Lula, foi manifestada no discurso de posse de Dilma Rousseff, quando a presidenta reiterou a disposição do Brasil de associar seu destino ao da América do Sul.
Muitas razões poderiam ser invocadas para sustentar essa opção sul-americana. As mais mencionadas correntemente estão ligadas à constatação do enorme potencial da região. Maior reserva energética do mundo, se levarmos em consideração os recursos hídricos, de petróleo e gás, o carvão, o sol e os ventos e as enormes potencialidades dos biocombustíveis.
O continente possui, igualmente, grandes e diversificados recursos minerais capazes de sustentar, com sobras, a atual e futura demanda mundial. Aqui estão reunidas condições privilegiadas para a produção de alimentos, não só por fatores naturais favoráveis – solo, água e sol – como pelos avanços científicos e tecnológicos que têm marcado grande parte da agricultura regional nas últimas décadas. A diversidade de regiões e climas vem acompanhada de uma biodiversidade exuberante, ainda pouco explorada.
Apesar de desigual, o processo de industrialização – concentrado no Brasil e na Argentina – se expande por muitos outros países. Contando com cerca de 400 milhões de habitantes, muitos dos quais beneficiados pela expansão do emprego e da renda, a América do Sul perfila-se hoje como um importante mercado regional. Durante a crise, esse mercado foi capaz de proteger a região das intempéries econômicas globais. Esta tem sido uma das razões para a atração de investimentos produtivos para o Brasil e outros países.
A América do Sul goza, hoje, de boa si¬tuação macroeconômica. Inflação relativamente controlada, baixa vulnerabilidade externa e, sobretudo, crescimento fundado na expansão do emprego e da renda e na inclusão social.
Mas os fatores imateriais não devem ser esquecidos. O continente vive há mais de uma década um período de consolidação democrática, que se tem imposto, inclusive, em países onde as contradições sociais oferecem base para certa instabilidade social e política. A ação da Unasul na ameaça de guerra civil na Bolívia e na tentativa de golpe no Equador atesta a força da democracia no continente. A criação do Conselho Sul-americano de Defesa fortalecerá a vocação pacífica desta parte do mundo, que também se caracteriza como livre de armamentos nucleares.
Região com relativa homogeneidade cultural e linguística, a América do Sul não apresenta maiores contenciosos entre suas nações. Diferendos de fronteira existentes são residuais e podem ser resolvidos por via diplomática. Não há sinais de conflitos religiosos e ideológicos que possam alimentar paixões políticas, como em outras regiões do mundo.
É claro que esse quadro extremamente favorável para um processo de integração é atravessado por dificuldades, que têm sido reconhecidas e enfrentadas.
A persistência de uma certa balcanização da América do Sul decorre da precariedade de sua integração física e energética. Não por acaso esses dois itens têm merecido atenção prioritária na política externa brasileira, nas agendas do Mercosul e da Unasul. Pontes, conexões interoceânicas, hidrovias, hidrelétricas e linhas de transmissão aproximam sistemas produtivos, homens e mulheres, garantindo, ao mesmo tempo, a interiorização de um desenvolvimento antes muito concentrado nas zonas oceânicas e facilitando o escoamento de nossas exportações.
Essas iniciativas são fundamentais para atenuar as assimetrias resultantes de uma integração fundada apenas no comércio, onde as vantagens do Brasil seriam enormes e permanentes.
A integração terá, assim, de ser complementada por um processo de articulação produtiva e financeira e pelo incremento da inovação científica e tecnológica, capaz de produzir um novo tipo de desenvolvimento. Esse critério tem também presidido as relações bilaterais do Brasil com os países do continente. Como disse Chico Buarque, não falamos “fino” com os Estados Unidos e “grosso” com o Paraguai e a Bolívia. Ao contrário, soubemos entender as demandas desses e de outros países e compreender que seu atendimento não era fruto de irresponsável “generosidade”, nem mesmo de compreensível solidariedade. Tratava-se de construir um entorno que não faça do Brasil uma ilha de prosperidade econômica e social em meio a um oceano de instabilidade social e política.
Essa preocupação não confere nenhuma primazia ao Brasil, menos ainda reflete qualquer aspiração de liderança regional. A política externa brasileira tem buscado um relacionamento solidário com nossos vizinhos, que compatibilize a articulação de processos nacionais diferenciados, inclusive do ponto de vista político-ideológico, com uma disposição de presença conjunta e soberana num mundo em construção.
Olhando o Sul sem esquecer o Norte
A ênfase da política externa brasileira no Sul do mundo, e seu especial interesse para com a América Latina, a África e os países árabes, foi por muitos tachada de “desvio terceiro-mundista” do governo Lula. A qualificação não procede historicamente e está impregnada de conteúdo ideológico. Não procede, porque revela um absoluto desconhecimento do significado político da expressão Terceiro Mundo. Ela nasce basicamente após a Conferência de Bandung, em 1955, quando Índia, Indonésia, Egito, Iugoslávia, China e outros países recém-descolonizados da África tentaram construir uma alternativa entre os países capitalistas (o primeiro mundo) e o então chamado campo socialista (segundo mundo).
Sob o manto deste terceiro-mundismo podiam encontrar-se países que não estiveram em Bandung, mas que praticavam internamente políticas nacional-desenvolvimentistas e, internacionalmente, optaram pelo “não alinhamento”. Na própria América Latina, os ventos do terceiro-mundismo se fizeram sentir, como o demonstram, para não citar outros exemplos, os arroubos diplomáticos do breve governo Jânio Quadros, admirador confesso de Sukarno, Nasser e Tito.
As circunstâncias históricas que deram nascimento àquele relevante movimento internacional deixaram de existir com o passar dos anos. Tentar repeti-lo seria um anacronismo histórico, o que não significa desconsiderar sua importância e as heranças que deixou.
As relações centro-periferia, tal como se configuraram cinquenta anos atrás, não mais existem, sem que isso tenha eliminado as assimetrias entre países pobres e países ricos.
Ao olhar para o Sul, sem esquecer o Norte, nossa política externa dos últimos anos fez e fará um movimento natural em direção a países de grande potencial, como o Brasil, mas que tiveram seu desenvolvimento e inserção internacional inibidos pela ausência de um projeto nacional de desenvolvimento ou por uma visão distorcida da cena internacional.
É importante, ainda que não seja o aspecto fundamental, que esse movimento tenha propiciado uma mudança fundamental em nosso comércio exterior e em nossos investimentos lá fora. Grande parte de nossos fluxos comerciais internacionais se dirigiram para a América Latina, a África, a Ásia e os países árabes, e sua composição foi em grande medida de produtos de valor agregado.
As mudanças de nossa presença econômica e comercial no mundo seguiram estritamente as pegadas da política externa, e isso os empresários brasileiros compreenderam muito bem. Não vem deles a caracterização de nossa diplomacia como “ideológica”, menos ainda de “terceiro-mundista”.
O olhar para o Norte que a política externa brasileira realizou e deverá dar continuidade no novo período governamental tem grande importância, na medida em que dessas relações esperam-se não só melhorias em matéria de comércio e investimentos, mas também um bom relacionamento no que se refere à transferência de tecnologia e inovação, elementos essenciais para a nova fase de nosso desenvolvimento nacional.
Esse olhar não será submisso, como o foi em outras ocasiões. Tampouco será de confrontação. O relacionamento com os Estados Unidos e com a União Europeia está atravessado por complexos problemas econômicos a serem resolvidos. O principal deles, em ambos os casos, é a persistência, quando não incremento, do protecionismo.
Dessas relações dependerá, igualmente, a realização de muitos dos novos objetivos que o País se foi dando em matéria industrial, científica, tecnológica e de defesa.
Nossa política externa deverá cada vez mais adensar seus conteúdos, sem com isso assumir um perfil fundamentalista. Deverá, ao mesmo tempo, dar mais institucionalidade a nossas iniciativas internacionais.
Temos consciência do significado de nossa experiência recente. De haver enfrentado, ainda que não resolvido plenamente, o problema fundamental de nosso país – o da desigualdade social – que minava nossa democracia e nos envergonhava aos olhos do mundo.
Temos consciência de que nossa luta universal em defesa dos direitos humanos exige, igualmente, resolver os enormes déficits internos que ainda possuímos nessa matéria. Esse é um compromisso forte do novo governo.
Uma política externa não se faz sem princípios nem sem valores. Mas ela não se faz apenas com uns e outros. Não queremos exportar nosso modelo econômico e social, menos ainda nossos avanços democráticos. Somos conscientes do importante que foi haver podido compatibilizar crescimento, distribuição de renda, equilíbrio macroeconômico e democracia. Mas não buscamos constituir-nos em paradigmas, em “modelo” para quem quer que seja. Sabemos que cada país tem de fazer seu próprio aprendizado.
Um mundo de incertezas e as certezas que podem subsistir: Continuidade e diferenças
É com esse propósito que participamos do BRIC, do IBAS e de tantos outros foros globais. Muito se tem especulado sobre as mudanças da política externa neste início do governo Dilma Rousseff. As mudanças existem e existirão por duas razões. A primeira, porque a presidenta dirigirá um país que hoje ocupa um lugar no mundo muito distinto daquele que ocupava em janeiro de 2003, com as vantagens e responsabilidades que isso pressupõe.
Mas haverá mudanças, porque toda política externa tem de conviver com uma certa imprevisibilidade. Quem poderia, em um passado relativamente recente, prever a queda do Muro de Berlim, o ataque às Torres Gêmeas, a crise de setembro de 2008 ou as turbulências que hoje sacodem o mundo árabe?
Mencionar esses elementos imprevisíveis não significa cair num relativismo, que faz da formulação política um campo de indefinições e perplexidades.
A sintonia da política externa com as transformações em curso no País, os mecanismos democráticos que devem presidir a elaboração de ambos os processos e, sobretudo, a obediência aos interesses da maioria, que a democracia permite aferir, são os melhores antídotos para que as incertezas não afastem o país dos objetivos que se traçou.
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