A humanidade passa por um momento histórico em que as questões ambientais emergem como elemento-chave no debate sobre o futuro. O agravamento do fenômeno do aquecimento global, exposto de forma clara e radical pelo último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, em sua sigla em inglês), tem provocado intensos debates.
Os alertas sobre a iminência de uma crise ambiental de proporções catastróficas e irreversíveis estão levando a sociedade global a enfrentar um inédito sentimento de urgência por ações que possam reverter ou minimizar o risco civilizatório que se avizinha. Não há praticamente um só dia em que esse assunto não seja abordado por lideranças governamentais e não-governamentais ou pela imprensa nacional e internacional. A recente campanha eleitoral de Obama nos EUA, sem dúvida a sucessão presidencial que gerou maior interesse e debates em todo o mundo, foi fortemente marcada pelas controvérsias em torno da questão climática.
Em meio a este turbilhão de acirradas discussões, o Brasil parece seguir embalado por seu belo hino nacional e se permite permanecer deitado em berço esplêndido ou, como têm dito alguns analistas, acelerar na direção contrária. O recém-lançado Plano Decenal de Expansão de Energia 2008–2017 com suas óbvias contradições em relação ao também recente Plano Nacional de Mudanças Climáticas, é prova disso.
Entretanto, independentemente das diferenças entre as avaliações a respeito do comportamento do quarto maior emissor mundial de gases de efeito estufa frente à crise climática global, a pergunta que se faz é até que ponto tem havido avanços na direção de incorporar o meio ambiente como variável-chave do desenvolvimento nacional?
A resposta para essa questão deveria basear-se em indicadores mensuráveis e que pudessem ser analisados no longo prazo. A falta deles é uma carência de que todos os envolvidos na temática ambiental se ressentem e que dificulta abandonar uma análise subjetiva – muitas vezes influenciada por vieses ideológicos ou partidários – e evoluir para uma avaliação mais objetiva, baseada em metodologias passíveis de serem aceitas pelos diferentes interlocutores envolvidos nesta discussão.
Balanço preliminar do período pós Rio-92
Um dos primeiros esforços no sentido de realizar um balanço estruturado da evolução da política ambiental no Brasil veio a público com a publicação Meio Ambiente no Brasil 2002 – Avanços e Entraves no Período pós Rio 92, organizada pelo Instituto Socioambiental e pelo Centro Internacional de Desenvolvimento Sustentável (CIDS) da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (EBAPE) da Fundação Getúlio Vargas, em parceria com a editora Estação Liberdade.
Esse estudo analisou o período de dez anos após a realização, no Rio de Janeiro, da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento que, além de seu caráter altamente mobilizador, coincidiu com a retomada no regime democrático no país, pois ocorreu cerca de dois anos após a primeira eleição direta para Presidente da República – embora nos derradeiros meses do mandato do então presidente Collor, que sofreria o impeachment noventa dias depois.
Os organizadores do estudo reuniram mais de cinquenta especialistas para avaliar a evolução das políticas públicas em oito temas centrais no debate sobre o desenvolvimento nacional: agricultura sustentável, biomas brasileiros, biodiversidade, recursos hídricos, energia, meio ambiente urbano, responsabilidade social das empresas e produção e consumo sustentáveis.
A conclusão foi que, apesar de alguns avanços localizados e importantes, nos primeiros dez anos após Rio-92, não se alcançou o patamar de políticas afirmativas suficiente para reverter os altos níveis de devastação ambiental ou de fragilidade dos poderes públicos responsáveis pelo controle e fiscalização das ações de degradação ambiental do país.
Foram identificados problemas estruturais envolvendo a governabilidade no Brasil, os quais limitaram fortemente a evolução do quadro ambiental. No âmbito do Legislativo, por exemplo, o levantamento indicou que as negociações para garantir a aprovação das reformas encaminhadas no governo FHC impuseram a necessidade de constituição de uma bancada parlamentar de sustentação ao governo, que levou ao aprofundamento das relações fisiológicas entre o Executivo e o Congresso. Nesse contexto, as demandas socioambientais não tiveram o tratamento esperado.
Foi um período marcado, inclusive, por alguns graves retrocessos, como os vetos à Lei da Política Nacional dos Recursos Hídricos, perdas e vetos na Lei dos Crimes Ambientais, aprovação da Lei de Patentes, prejuízo na tramitação da Lei da Mata Atlântica, esvaziamento do Conselho Nacional do Meio Ambiente e do Programa Nacional da Diversidade Biológica
No caso da conservação, os números também foram extremamente negativos. Entre os anos de 1992 e 2002, a Amazônia foi vítima de um incremento significativo nos índices de desmatamento, com taxa média anual 62% superior à verificada no ano de 1991. Esse ritmo acelerado levou à eliminação de 196 452 km2 de florestas na região, área equivalente à do estado do Paraná. Isso sem considerar os impactos da exploração madeireira predatória e das queimadas. No mesmo período, extensas áreas de cerrado foram convertidas em pecuária e plantios de soja e a Mata Atlântica contabilizou uma perda de aproximadamente 10% de suas já reduzidas florestas.
O estudo destacou ainda que, para enfrentar a voracidade de setores econômicos e políticos que cresceram à custa de incentivos fiscais e de um modelo altamente predatório dos recursos naturais, o governo dispunha apenas de um frágil Ministério do Meio Ambiente. Sua fragilidade decorria não apenas de um problema de estrutura e de falta crônica de recursos financeiros, mas também de um isolamento político em relação ao centro de governo que considerava a questão ambiental como simbólica e não como importante ou com densidade suficiente para ser considerada parte dos processos de decisão.
O governo Lula e a gestão de Marina Silva
Com a ascensão do Governo Lula, em 2003, criou-se uma forte expectativa de mudança desse quadro. O próprio fato de a futura titular do Ministério do Meio Ambiente (MMA), a então senadora Marina Silva, ter sido a segunda ministra anunciada, logo após o ministro da Fazenda, Antônio Palocci, serviu para aumentar a esperança de que o tema ganharia densidade junto ao governo. Historicamente, a nomeação para a pasta era uma das últimas a ocorrer e quase sempre submetida aos acordos políticos no âmbito do Congresso Nacional.
Foi exatamente com a perspectiva de inserir o meio ambiente no centro da agenda que Marina Silva incluiu entre as quatro diretrizes orientadoras de sua gestão a “transversalidade” com os demais os ministérios e órgãos do governo federal. As outras foram o fortalecimento do Sistema Nacional do Meio Ambiente, controle e participação social e desenvolvimento sustentável.
Quando assumiu a transversalidade como diretriz, Marina Silva sinalizou que reconhecia, por um lado, a complexidade das questões ambientais e, por outro, as fragilidades de seu Ministério para enfrentá-las isoladamente, devido às limitações de suas funções institucionais, de sua estrutura e de seus recursos financeiros e humanos. Esse posicionamento inaugurou no âmbito do governo federal o princípio da corresponsabilidade no enfrentamento dos desafios colocados pela agenda socioambiental.
Ele se refletiu na proposta do Programa Amazônia Sustentável, desenvolvido com o Ministério da Integração Nacional, para estabelecer critérios e procedimentos necessários a transferências de recursos da União para os estados da Amazônia, condicionando-as a uma agenda socioambiental adequada.
O mesmo princípio se manifestou, também, na criação do Grupo de Trabalho Interministerial Permanente para o Controle e Redução do Desmatamento na Amazônia, que reuniu treze ministérios e órgãos a eles vinculados na elaboração e implementação do primeiro plano federal concebido para controlar o desmatamento na região.
Na sequência veio a institucionalização do Grupo Interministerial da BR-163 Sustentável, reunindo quinze ministérios e órgãos vinculados, para o desenho de um plano de ação capaz de oferecer as salvaguardas socioambientais necessárias à autorização do asfaltamento da estrada Cuiabá–Santarém, no estado do Pará.
Simultaneamente a esses processos envolvendo a Amazônia, o Ministério do Meio Ambiente propôs a criação de vários outros grupos de trabalho interministeriais, como o que tratou da lei de biossegurança, da lei de acesso aos recursos genéticos, da regulamentação do artigo 21 da Constituição Federal, da elaboração do Plano Nacional de Mudanças Climáticas, entre vários outros.
Essa capacidade inédita de articulação do Ministério do Meio Ambiente, que sabiamente sempre insistiu para que a coordenação desses grupos de trabalho ficasse a cargo da Casa Civil, permitiu uma mudança importante na forma de gerir determinados processos complexos. Não há dúvida de que, embora limitadas em relação às expectativas iniciais, essas ações tornaram possível formar consensos inéditos dentro do governo federal, capazes de viabilizar agendas integradas que deram potência às ações de conservação ambiental.
De outra maneira não teria sido possível, por exemplo, obter apoio e reunir capacidade institucional para lograr tantos avanços como os verificados na política de controle do desmatamento na Amazônia.
Entre 2004 e 2007, a Amazônia assistiu a criação de cerca de vinte milhões de hectares de unidades de conservação, ampliando em quase 70% a extensão territorial dessas áreas na região, além da homologação de aproximadamente dez milhões de hectares de terras indígenas. Essas novas áreas protegidas equivalem à soma dos territórios dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro.
No campo do combate à grilagem, os avanços também foram impressionantes – principalmente quando consideramos a história de caos fundiário na Amazônia fomentado pela omissão do governo – com o inédito cancelamento nos cadastros do Incra de mais de 66 mil títulos de posses ilegítimas e a modificação radical dos mecanismos e procedimentos para registro de posse.
Somam-se a isso as inúmeras e politicamente inconvenientes operações do Ibama integradas com a Polícia Federal e polícias ambientais dos estados, do que resultaram o fechamento de aproximadamente 1 500 empresas clandestinas, a apreensão de mais de um milhão de metros cúbicos de toras, o desmonte de máfias da madeira que operavam há décadas na região e a prisão de 659 pessoas, inclusive funcionários públicos dos governos federal e estaduais.
Essa forte articulação política permitiu, também, resultados surpreendentes no Congresso Nacional. Foi o caso da aprovação, em apenas onze meses, da Lei de Gestão de Florestas Públicas (Lei n. 11 482/2006) com cláusulas consideradas politicamente inviáveis como a que recuperou o dispositivo da criminalização da derrubada de florestas públicas sem autorização, previsão legal que havia sido retirada da Lei de Crimes Ambientais quando da sua aprovação e sanção em 1998, no governo Fernando Henrique Cardoso. Foram igualmente os casos das conversões em lei de medidas provisórias altamente polêmicas, como a que estabeleceu a limitação administrativa provisória em áreas sob estudo para criação de unidades de conservação e a que criou o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. Ou, ainda, a aprovação da Lei da Mata Atlântica, encalhada no Legislativo desde 1992.
Também foram registrados aprimoramentos importantes no sistema de monitoramento dos desmatamentos pelo INPE, com o desenvolvimento do Deter, que permite o acompanhamento das ocorrências predatórias na região em tempo real; do Degrad, que traz informações da área de florestas degradadas; e do Detex, que deverá monitorar exploração seletiva de madeira a partir de 2009. Como resultado, o desmatamento na Amazônia apresentou uma queda de 58% nos três anos entre 2004 e 2007, quando atingiu a mais baixa taxa desde 1991.
Outra área que obteve importante avanço em função deste modelo de gestão integrada foi a de mudanças climáticas, onde, pelo menos no que se refere à relação entre clima e desmatamento, a posição brasileira mudou completamente. De uma postura inteiramente avessa a admitir essa relação, defendida por mais de dez anos nos foros internacionais, o Brasil não só passou a aceitá-la como desenvolveu e apresentou no âmbito da Convenção Quadro sobre Mudanças Climáticas um mecanismo de incentivos positivos para a redução de emissões de gases de efeito estufa decorrentes do desmatamento. Com isso, foi possível criar em 2008 o Fundo Amazônia que deverá desempenhar papel importante na captação de recursos necessários a consolidar as políticas de desenvolvimento sustentável na região.
Pelo exposto até aqui, a provável resposta à questão inicial que este artigo se propõe a esclarecer é de que a política ambiental teria finalmente migrado para o centro de decisão do governo na gestão do presidente Lula. Entretanto, não foi o que ocorreu.
Os importantes avanços citados só foram possíveis graças ao estabelecimento de uma profícua relação entre Marina Silva e vários ministros e dirigentes de autarquias federais – alguns dos quais eram antigos conhecidos de longos anos de convivência e militância partidária. A essa relação profícua associou-se uma enorme respeitabilidade junto à opinião pública e boas propostas de ação, apesar da manutenção de uma postura pouco elaborada e comprometida com a questão ambiental por parte do núcleo central de governo.
A visão conservadora do Palácio do Planalto sobre o papel das variáveis ambientais no processo de desenvolvimento nacional é certamente a melhor explicação para o fato de os resultados mais importantes terem ficado praticamente restritos à chamada agenda verde, considerada de competência indiscutível do Ministério do Meio Ambiente.
Transgênicos: oportunidade perdida
O caso da lei de biossegurança é um exemplo disso. A visão defendida pelo Ministério do Meio Ambiente era de que o Brasil poderia beneficiar-se enormemente, inclusive do ponto de vista econômico, se fosse capaz de implementar uma política para o uso de cultivares geneticamente modificados que garantisse controle efetivo da contaminação de espécies silvestres e segregação da produção. Por se tratar do último grande produtor agrícola no mundo onde o uso de transgênicos na agricultura era ainda reduzido, o país, segundo a proposta do Ministério, possuía a oportunidade histórica de adotar os cuidados necessários para viabilizar a produção de organismos geneticamente modificados com baixo impacto ambiental e, ao mesmo tempo, manter a produção de cultivares convencionais de forma a atender ambos os mercados, coisa que nenhum outro país relevante em termos de exportação de produtos agrícolas conseguira fazer.
Apesar da clareza da proposta, ela foi tratada como uma oposição oculta aos transgênicos e, diante da pressão do setor da biotecnologia, não obteve o apoio necessário a sua viabilização, apesar de ter sido originalmente compartilhada pela maior parte dos ministérios setoriais.
Foram muitos os debates como esse, e a competência do setor ambiental foi sistematicamente questionada e desconsiderada. Essa postura se repetiu durante as discussões em torno da lei de acesso aos recursos genéticos – questão-chave para o desenvolvimento da Amazônia –, retomada do Programa Nuclear, planejamento da expansão do plantio de cana-de-açúcar para a produção de etanol, planejamento energético, entre outros.
Licenciamento: nervo sensível, questão mal compreendida
Não seria exagero dizer que, além do controle do desmatamento na Amazônia, o licenciamento ambiental foi um dos poucos assuntos em que a competência do Ministério não foi questionada.
E foi justamente no campo do licenciamento que se explicitaram os grandes conflitos entre visões contraditórias no interior do governo federal sobre a relevância da questão ambiental frente à priorização do crescimento econômico estabelecida pelo presidente Lula.
O licenciamento de obras complexas realizado pelo Ibama foi dominado por intensas discussões entre o centro de governo e o Ministério do Meio Ambiente, com grande repercussão na mídia. Quem não se lembra do “bagre que jogaram no colo do Presidente”. Essa frase, atribuída ao presidente da República, sem que jamais se tenha confirmado a sua veracidade, teria vazado de uma das reuniões de coordenação política realizadas regularmente no Palácio do Planalto às segundas-feiras. Ela foi o estopim para que o licenciamento das hidrelétricas do rio Madeira ganhasse as páginas dos jornais e a mídia eletrônica. A intensa reverberação gerou um ambiente pesado, principalmente pela imposição de uma visão maniqueísta sobre decisões na área ambiental, que trata qualquer questionamento ou solicitação de aprofundamento de informações como ações que teriam na realidade o objetivo não-revelado de inviabilizar um determinado projeto.
Nesses momentos, fica evidente o abismo existente entre os órgãos de governo das áreas de infraestrutura e do meio ambiente no que diz respeito à percepção sobre a validade das diretrizes e condicionantes ambientais e, principalmente, a respeito da aplicabilidade do princípio da Precaução.
Para a maior parte dos integrantes do governo federal o licenciamento é um problema e não um processo positivo e necessário para harmonizar os interesses ambientais difusos com os culturais coletivos e os socioeconômicos gerais da sociedade brasileira. A premência de se empreender, gerar anotações verdes no relatório de evolução do Programa de Aceleração do Crescimento, aproveitar a tal “janela hidrológica” e, mais importante do que tudo, evitar o “apagão do FHC”, como costuma ser dito entre funcionários públicos graduados, se sobrepõe a qualquer lógica de discussão.
É importante que se diga que essa não é uma característica do atual governo e muito menos um problema recente. São muitos os casos de embates na arena do licenciamento no Brasil. Um dos mais antigos e polêmicos envolveu o projeto de construção do aeroporto internacional de São Paulo na década de 1970, sobre um remanescente de Mata Atlântica extremamente bem conservado em Caucaia do Alto, próxima à Capital. Se construído, teríamos perdido a Reserva de Morro Grande, que protege até hoje, graças ao movimento de reação, a Represa Pedro Bleicht, uma das mais importantes abastecedoras da Zona Oeste da Grande São Paulo, Embu, Taboão e adjacências.
A enorme mobilização ocorrida na época, capitaneada pela APPN (Associação Paulista de Proteção à Natureza), conseguiu reverter uma decisão que, é bom que se diga, havia sido tomada em pleno regime militar.
De lá para cá, muito coisa evoluiu. Foi aprovada uma legislação específica regulamentando o processo de licenciamento ambiental, iniciada com a Resolução Conama 001, em 1986, e reforçada pela Constituição de 1988. Posteriormente, ela foi detalhada por centenas de leis, resoluções, decretos, portarias e instruções normativas.
Mas a verdadeira revolução no pensamento e na gestão de processos que envolvem risco se deu com a definição e imposição, por meio da aprovação de dispositivos legais, do princípio da precaução.
Neste ponto faço uma pequena digressão. Segundo Olivier Godard, economista do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, o princípio da precaução é uma nova etapa de um processo histórico, iniciado com a revolução industrial, de extensão das normas sociais e jurídicas que visam promover a prevenção de riscos. Sua emergência foi impulsionada por três grandes questões: os acidentes médicos (sangue contaminado, transplantes, etc.); o meio ambiente (ameaças globais); e a responsabilidade por produtos que podem prejudicar a qualidade de vida (o risco do desenvolvimento).
O princípio da precaução surge, portanto, frente a situações de risco em um contexto de incerteza e eventualidade de danos graves e irreversíveis. Nesse sentido, não se trata de compensar, mas de impedir ou proibir determinadas atividades ou empreendimentos porque as perdas podem ser irreparáveis quando há incertezas científicas que impedem a prevenção e há riscos não-mensuráveis, portanto “não-avaliáveis”.
Para que um processo complexo de avaliação de impacto ambiental seja eficiente, a aplicação do princípio da precaução deve considerar vários aspectos, inclusive o fato de que a não-realização de um empreendimento pode implicar custos. Entretanto, mesmo considerando que a decisão deve ser tomada em contextos nos quais o problema é de arbitragem entre diferentes tipos de riscos e seus impactos, ela deve tomar como base o pior cenário e não a simples ponderação entre todos os cenários possíveis. Neste ponto é que a complexidade aumenta, pois a definição do pior cenário é necessariamente uma construção social na medida em que há diferentes pontos de vista que precisam ser ponderados e considerados. Essa construção, por sua vez, gera conflitos entre os proponentes de uma atividade ou empreendimento e os que se julgam potencialmente atingidos ou prejudicados, pois a inversão do ônus da prova impõe ao empreendedor a apresentação das salvaguardas e garantias de que os problemas identificados no processo serão (e como serão) superados. Isso gera custos e adiamentos de decisões que contrariam o interesse do interessado no projeto.
Como esclarece Paulo Affonso Leme Machado, renomado jurista brasileiro nesse campo, a aplicação do princípio da precaução não tem por finalidade imobilizar as atividades humanas, mas, sim, reduzir a extensão, a frequência ou a incerteza do dano. Visa, portanto, a durabilidade da sadia qualidade de vida das gerações humanas presentes e futuras. Dessa forma, pressupõe uma mudança inovadora na medida em que leva a sociedade a admitir, e considerar legítima, a adoção, por antecipação, de medidas que visem evitar problemas ambientais ou implementar medidas de prevenção, sem que haja certeza científica de que esses problemas efetivamente se concretizariam caso as medidas não fossem adotadas.
As bases para a adoção do princípio da precaução na legislação brasileira foram estabelecidas no início da década de 1980, pela aprovação da Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n. 6 938, de 31/8/1981). Em seguida, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), pela Resolução n. 001/1986, definiu a obrigatoriedade da realização de estudo de impacto ambiental para empreendimentos potencialmente causadores de degradação do meio ambiente, instrumento posteriormente consagrado pela Constituição Federal em 1988.
O princípio da precaução entrou definitivamente no arcabouço legal brasileiro quando o Congresso Nacional ratificou, em 1994, as convenções sobre Diversidade Biológica (Decreto Legislativo n. 02, de 3/2/94) e sobre a Mudança do Clima (Decreto Legislativo n. 01, de 3/2/94) e, alguns anos depois, em 1998, aprovou a Lei de Crimes Ambientais (Lei n. 9 605, de 12/2/98).
Encerrada a digressão, fica claro que a adoção do princípio da precaução não é opcional no Brasil. É obrigatória por força de lei e sua aplicação exige procedimentos sofisticados de análise de riscos, baseados em informação técnica e científica de alta qualidade e de gestão democrática das expectativas sociais.
Atualmente, com o arcabouço legal existente no país seria praticamente impossível construir uma nova Balbina. Certamente o maior, mas não o único exemplo, de como o mau planejamento ambiental pode ser catastrófico. Iniciada em 1973 e concluída em 1986, Balbina foi responsável pelo alagamento de 2 300 quilômetros quadrados de florestas, aumento do desmatamento e impacto social enorme sobre os índios Waimiri-Atroari. Ao final, a água do lago virou foco de mosquitos, elevando a incidência de malária na região e a usina não se mostrou capaz de gerar energia suficiente sequer para abastecer metade da cidade de Manaus, com 1,6 milhão de habitantes.
É importante ressaltar, entretanto, que, mesmo com as restrições legais atuais, ainda há graves equívocos sendo cometidos, principalmente quando a agenda econômica se sobrepõe à socioambiental. Basta verificar o caso de Barra Grande, uma hidrelétrica em Santa Catarina, aprovada em 1999 e autorizada a iniciar as obras em 2001, com base em um estudo de impacto ambiental fraudado. A hidrelétrica acabou recebendo a licença de operação em 2005, mesmo após a comprovação de que os responsáveis pelo projeto haviam omitido no estudo de impacto ambiental a existência, em sua área de inundação, de florestas primárias de araucárias protegidas por lei.
Os argumentos expostos, no entanto, não visam negar que o processo de licenciamento pode e deve ser aprimorado. É evidente que há dificuldades, demoras excessivas e, muitas vezes, excesso de burocracia. Há ainda em algumas situações falta de compromisso, espírito público e sentido de urgência por parte das equipes envolvidas. Entretanto, basta uma breve análise comparada entre a capacidade técnica instalada no Ibama e nos seus congêneres estaduais, de um lado, e a demanda por licenciamentos nessa nova etapa de desenvolvimento nacional, de outro, para se verificar que há uma óbvia incompatibilidade.
Esse problema foi, inclusive reconhecido e enfrentado pelo atual governo, possibilitando que a partir de 2003 houvesse um aumento significativo dos profissionais contratados e uma mudança radical no status funcional das equipes responsáveis pelo licenciamento ambiental no Ibama. Além do aumento no número, eles passaram a ser funcionários permanentes, em substituição à situação anterior em que a maior parte – cerca de 90% – era de consultores externos contratados por período determinado. Com essa prática extremamente equivocada não havia praticamente acúmulo de experiência profissional no Ibama, gerando dificuldades permanentes a cada nova análise, mesmo que de casos similares.
Somando-se a esses aprimoramentos na capacidade operacional do Ibama, foram realizados vários ajustes na legislação nestes últimos anos, a fim de simplificar os procedimentos de licenciamento de empreendimentos de baixo impacto. Com isso, além da aceleração de vários processos, foi possível concentrar os esforços das equipes na análise de projetos de maior potencial de degradação e que, portanto, exigem análises mais aprofundadas e demoradas.
Estudos de impacto ambiental: deficiências e conflito de interesses
O problema é que mesmo com esses ajustes institucionais importantes, embora aquém do necessário, persiste um problema gravíssimo no país, que nenhuma melhoria na estrutura do licenciamento poderá resolver: a falta de conhecimento científico, de planejamento macror-regional e de zoneamento ambiental necessários a subsidiar os estudos de impacto ambiental e as suas análises.
Um exemplo desse problema é relativo aos inventários biológicos, fundamentais para qualquer decisão no processo de licenciamento. Os estudos realizados pelo Ministério do Meio Ambiente através do Programa Nacional de Diversidade Biológica mostram que temos extensas áreas do território nacional sem que praticamente nenhum levantamento de fauna e flora tenha sido realizado.
Devido a essa lacuna, que deveria ser preenchida com um esforço permanente e de longo prazo financiado pelo poder público, os termos de referência de estudos de impacto ambiental elaborados pelos órgãos licenciadores acabam incluindo esses levantamentos entre as obrigações do proponente.
É evidente que isso gera vários problemas. O primeiro é o prazo longo que estes levantamentos demandam para serem realizados, pois as coletas precisam ocorrer nas várias estações climáticas e, idealmente, por vários anos. O segundo envolve os custos, geralmente muito elevados. O terceiro diz respeito à confiabilidade desses estudos quando realizados pela parte interessada, uma vez que um inventário que revele alta diversidade de espécies ou a identificação de alguma ameaçada de extinção pode dificultar ou mesmo inviabilizar a emissão da licença.
Embora esses vazios de conhecimento básico estejam espalhados por todo o país, há uma concentração na Região Norte, onde estão 65% do potencial hidrelétrico nacional ainda disponível. Não é por outro motivo que o Plano Decenal de Expansão de Energia 2008–2017, recentemente lançado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), prevê a implantação de um grande número de usinas hidrelétricas na Amazônia. Somente até 2011, serão propostas licitações para construção de seis novas hidrelétricas na região.
Outro subsídio básico para embasar qualquer processo de estudo de viabilidade de usinas hidrelétricas são os inventários de bacias hidrográficas. Esses estudos estavam praticamente abandonados até recentemente, quando a EPE lançou vários editais para sua realização, a saber: os dos rios Araguaia com potencial estimado de 3,1 mil MW, Branco com 2 mil MW, Trombetas com 3 mil MW, Aripuanã com 3 mil MW, Zuluena com 5 mil MW, Jari com 1,1 mil MW e Sucunduri com 650 MW. Aos estudos das bacias hidrográficas desses rios, somam-se os realizados nas bacias do Uruguai, Parnaíba, Paranaíba, Tocantins, Doce e Paraíba do Sul.
A avaliação ambiental integrada, que faz parte desses estudos, no entanto, não vem apresentando a qualidade esperada. Com isso, não está sendo atingido o objetivo maior, que seria identificar e avaliar os efeitos sinérgicos e cumulativos resultantes dos impactos ambientais ocasionados pelo conjunto de aproveitamentos hidrelétricos nas bacias hidrográficas. Mais uma vez, se repete o problema de ser a parte interessada responsável por fazer algo que deveria ser atribuição de instituições altamente qualificadas e independentes.
No caso específico do licenciamento das hidrelétricas do rio Madeira, a intensa pressão sobre o Ibama para agilizar o licenciamento e o “folclore” criado em torno do caso dos bagres não permitiram que viessem a público as fragilidades do estudo de impacto ambiental e as mudanças importantes ocorridas no projeto original decorrentes do licenciamento. Na licença prévia da UHE de Jirau, vinte e seis condições específicas foram impostas ao empreendedor, levando a vários importantes aprimoramentos no projeto, a exemplo de cuidados com os riscos de contaminação por mercúrio e com o controle da malária, para não falar da solução encontrada para o problema da vazão dos sedimentos pelas turbinas e vertedouros e da deriva de ovos, larvas e exemplares juvenis de peixes migradores, com a demolição das ensecadeiras originalmente previstas para permanecerem no leito do rio Madeira.
Outros casos de licenciamentos altamente complexos, e que só se tornaram possíveis após profundas modificações nos projetos iniciais, foram o da integração de bacias do rio São Francisco e o asfaltamento da BR-163, na Amazônia.
Não há duvidas quanto ao fato de que a expansão da oferta de energia elétrica deve-se dar preferencialmente por meio da construção de hidrelétricas. Isso não pode significar, no entanto, uma flexibilização do sistema de licenciamento que coloque em risco aspectos socioambientais.
Uma análise dos custos ambientais e sociais envolvidos no desenvolvimento de empreendimentos hidrelétricos no Brasil, elaborado pelo Banco Mundial (Bird), aponta que eles representam cerca de 12% do investimento na obra podendo, segundo seus autores, “ser facilmente integrados no custo total”. Ainda de acordo com esse estudo, há outros problemas importantes além do licenciamento que precisam ser resolvidos, entre os quais: incertezas acerca da fórmula correta de divisão dos riscos hidrológicos, geológicos e outros riscos decorrentes de grandes hidrelétricas entre os setores público e privado; falta de planejamento das bacias hidrográficas, incluindo estudos de inventário e de viabilidade; riscos cambiais; crescentes custos de transmissão, especialmente os que envolvem plantas mais distantes como as localizadas na Região Amazônica; necessidade de maior transparência nos leilões de energia; e um marco legal que preserve o cumprimento dos contratos firmados.
Ainda segundo o estudo do Bird, dois outros fatores têm contribuído para dificultar os processos de licenciamento de hidrelétricas. O primeiro decorre da percepção negativa da sociedade civil sobre esses empreendimentos na Amazônia devido aos grandes prejuízos ambientais e sociais resultantes das usinas de Balbina e Samuel. O segundo diz respeito à falta de planejamento adequado e de bons projetos na área de energia, devido aos seguidos cortes orçamentários promovidos pelo governo federal, no passado recente, nos órgãos responsáveis. É consenso, segundo o estudo, que serão necessários muitos anos de investimentos da EPE, criada em 2004 justamente com essa finalidade, para que o Brasil supere essa lacuna.
Nesse sentido, atribuir ao licenciamento ambiental a maior parcela de responsabilidade pelo atraso na implantação de empreendimentos hidrelétricos e pelo consequente aumento da participação de usinas termelétricas “sujas” na matriz energética brasileira, já que elas são mais facilmente licenciáveis, é, no mínimo, simplificar a discussão. É, também, uma forma perversa de transferir o ônus político resultante da crônica falta de capacidade do setor elétrico e do governo como um todo para buscar soluções adequadas para o enorme desafio de aumentar a oferta de energia elétrica, contemplando todos os aspectos citados.
Esse é o grande embate que vem ocorrendo no centro do governo federal. E ele vem se dando de forma desvirtuada na medida em que os aspectos socioambientais são sistematicamente considerados pouco relevantes frente à necessidade de dotar o país da infraestrutura necessária ao crescimento econômico.
Mais sinais preocupantes
Os movimentos políticos recentes reforçam as preocupações de que o Brasil pode estar caminhando para uma flexibilização da legislação relativa ao licenciamento exatamente no momento em que os ativos ambientais adquirem maior relevância em todo o mundo.
São elementos que reforçam essa preocupação o recente decreto que alterou os condicionantes para a proteção de cavidades naturais subterrâneas e a proposta de criação de uma “via rápida” para o licenciamento de obras de infraestrutura na Amazônia, elaborada pelo Ministério de Assuntos Estratégicos.
João Paulo Ribeiro Capobianco é biólogo, ambientalista e pesquisador associado do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia). Foi Secretário Nacional de Biodiversidade e Florestas (2003–2007) e Secretário Executivo do Ministério do Meio Ambiente (2007–2008).
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