Uma potência ambiental
Josué Souto Maior Mussalém é economista e administrador de empresas, com mestrado em economia, além de professor de política e programação econômica, teoria do desenvolvimento econômico e projetos.
Ao longo dos últimos dez anos, vem coordenando eventos de natureza técnico-científica voltados para a questão ambiental, um trabalho feito em conjunto com sua mulher, a arquiteta Maria do Socorro Florêncio Souto Maior Mussalém, especialista em meio ambiente.
De 2002 até a presente data, Mussalém desenvolveu 17 projetos na área ambiental com temas vinculados a florestas, água, energia, agronegócio e biocombustíveis, dos quais oito foram apresentados na Europa e um na Índia.
Os encontros foram realizados em conjunto com entidades nacionais reconhecidas, como o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, a Fundação Amazonas Sustentável, a Secretaria de Estado do Meio Ambiente do Amazonas, a Companhia Hidroelétrica do São Francisco, o Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, o Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais e a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz.
Mussalém desenvolveu também o projeto de modelagem do consórcio de águas do nordeste, após ter realizado estudos sobre saneamento ambiental na França. É também membro fundador do Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos do Rio de Janeiro.
Esta palestra de Josué Mussalém, com o tema “A geopolítica ambiental do Brasil”, foi proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio, Sesc e Senac de São Paulo, no dia 13 de maio de 2010.
Ao longo dos últimos anos aprendemos a importância da questão ambiental, não só do ponto de vista da biosfera ou da sobrevida do planeta, mas também no aspecto econômico e social. Por que discutir uma política ambiental para o Brasil? O país já tem uma política, no que diz respeito à legislação. Aliás, nossa legislação é de boa qualidade, o problema está em sua aplicação. A política nacional de mudanças climáticas traz um comprometimento não obrigatório mas importante no que se relaciona à redução da emissão de gases. Precisamos é ampliar uma política geoambiental, a ponto de envolver nossa gigantesca geografia e o meio ambiente.
Outra questão que se propõe é: por que, em termos de meio ambiente, o Brasil tem importância fundamental para o mundo? É fácil responder. Estamos adquirindo relevância do ponto de vista de reservas petrolíferas e aquíferas. E há preocupação internacional em relação à floresta amazônica, às reservas indígenas e assim por diante. Além disso, não deixamos de ser também um dos países poluidores.
A COP-15, Conferência de Copenhague, que aconteceu em dezembro de 2009, teve um significado muito importante para o mundo. Em linhas gerais fracassou, porque a ideia era estabelecer um critério mundial de redução de emissão de gás carbônico e criar um compromisso efetivo entre as nações, principalmente as mais industrializadas. No entanto, algo ficou muito claro: o mundo está preocupado com a questão ambiental. Esse foi o ganho institucional da fracassada conferência.
Com base nessas questões fundamentais, começo destacando os oito enfoques estratégicos da geopolítica brasileira: territorial, das florestas e dos biomas, do estoque de águas, dos recursos minerais, da biodiversidade amazônica, da geração de energia, do agronegócio e do setor industrial, todos fortemente vinculados à geopolítica ambiental do país. O Brasil tem hoje dez fronteiras terrestres. Com o Uruguai e a Argentina não temos grandes problemas, mas com relação ao Paraguai sim, seja do ponto de vista do contrabando, seja do narcotráfico, e agora inclusive devido à questão ideológica. Há até rumores da presença nessa fronteira de grupos terroristas internacionais, tanto que o serviço secreto americano já avisou o Brasil da possibilidade de existência de um núcleo ligado à Al Qaeda. E temos a questão dos brasiguaios, ou seja, brasileiros que foram para o país vizinho cultivar terras e agora estão sendo atacados pelo equivalente paraguaio do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra]. Com a Bolívia temos a questão do tráfico de cocaína, muito forte na fronteira. Com o Peru tivemos um problema pouco divulgado. O grupo que restou do Sendero Luminoso aprisionou 71 trabalhadores de uma empresa argentina e o governo peruano pediu ao Brasil que nossa força aérea localizasse essas pessoas. Foi utilizado um avião de vigilância da FAB, fabricado pela Embraer, e os 71 reféns foram libertados pelo exército peruano.
Temos uma boa relação com a Colômbia, mas existem as Farc. Recentemente o gerente financeiro desse grupo foi preso pela polícia federal em Belém do Pará, onde estava negociando drogas e armas. Na década passada uma unidade das Farc entrou em território brasileiro, atacou uma guarnição de nosso exército, matou três soldados e furtou uma boa quantidade de armamentos. Na semana seguinte, nosso exército entrou na Colômbia, atacou aquela unidade das Farc, matou sete guerrilheiros e recuperou os armamentos. Isso não foi divulgado porque geraria uma questão internacional, mas aconteceu por decisão do alto-comando do exército brasileiro.
Com a Venezuela temos uma fronteira que é uma incógnita. A relação é boa, mas ali ficam a reserva ianomâmi e a Raposa Serra do Sol, uma área contínua indígena. Para os estrategistas do exército brasileiro, dentro de 15 ou 20 anos ambas as áreas poderão ser declaradas pela ONU [Organização das Nações Unidas] territórios independentes do Brasil. Algo parecido com Kosovo ou Timor Leste. Ainda bem que uma decisão do Supremo Tribunal Federal permite que as forças armadas e a polícia federal entrem quando quiserem nas reservas indígenas brasileiras, mas a bandeira do Brasil não tremula nessa área e ali não se fala português. Falam inglês e estão levando os índios com melhor capacidade e inteligência para estudar na Europa. Isso não é conjectura, não é invenção, são informações dos órgãos de segurança.
Floresta tropical
Temos a maior floresta tropical do mundo, a amazônica, cujo peso, evidentemente, é muito grande na definição do comportamento climático do planeta. A Amazônia Legal, que envolve vários estados, tem 5,1 milhões de quilômetros quadrados, ou seja, 60% do território nacional. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais [Inpe] diz que até 2007 foram desmatados 720 mil quilômetros quadrados, o equivalente a 14% da Amazônia Legal. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia [Inpa], os impactos desse desmatamento geram perda de biodiversidade, redução do ciclo de água e também da precipitação. Ou seja, a chuva diminui, o que contribui para o aquecimento global. Há também perda de conhecimentos tradicionais, erosão cultural e grilagem de terras públicas, coisa muito comum no Pará.
O professor Virgilio Viana produziu um gráfico em que se vê a importância da floresta amazônica no ciclo de chuvas da América Latina. Observe-se que 44% da precipitação pluviométrica de nosso continente depende da floresta amazônica. Ou seja, um desmatamento forte naquela região muda o regime de chuvas em São Paulo, no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e assim por diante.
Quanto ao estoque de águas, os estrategistas modernos dizem que as guerras do futuro acontecerão não por causa do petróleo, mas pelas reservas de água. Nesse ponto o Brasil está muito bem. Temos cerca de 12% de toda a água doce do planeta e 53% de todos os recursos hídricos da América do Sul. Nossa disponibilidade hídrica chega a 34 milhões de litros de água por habitante, muito acima do que a ONU considera suficiente para uma vida confortável. Só que temos mais concentração de água do que de renda no Brasil, pois 80% da disponibilidade hídrica está na região amazônica, onde residem 5% da população do país, enquanto os 20% restantes estão exatamente onde moram 95% dos brasileiros. Ou seja, o Brasil tem de definir claramente uma política de distribuição de água que beneficie todo o território nacional. Sem falar no desperdício, uma questão fundamental. Na região metropolitana de São Paulo ele chega a 10 metros cúbicos de água por segundo, o equivalente ao abastecimento de 3 milhões de pessoas. A água desaparece no leito das ruas e essa perda tem um custo muito alto. O Brasil avançou um pouco nesse campo ao institucionalizar a gestão da água, com a lei 9.433, de 1997, e criar a Agência Nacional de Águas e uma coisa muito boa que são os Comitês de Bacia Hidrográfica.
Alter do Chão
Quanto às reservas subterrâneas, temos o aquífero Guarani, considerado a maior reserva de água doce da América do Sul e uma das maiores do mundo. Tem 1,2 milhão de quilômetros quadrados de área, na bacia do Paraná e do Chaco-Paraná. No Brasil abrange 848 mil quilômetros quadrados, na Argentina 255 mil, no Uruguai 71,7 mil e no Paraguai 58,5 mil. No território brasileiro a distribuição dessa água está no Mato Grosso (2,2% do total do aquífero), Goiás (4,6%), Mato Grosso do Sul (17,8%), Minas Gerais (4,4%), São Paulo (13%), Paraná (11%), Santa Catarina (4,7%) e Rio Grande do Sul (13,2%). Do total da recarga, 40% são perfeitamente exploráveis, sem nenhum risco ao meio ambiente.
Existe outro aquífero importante, descoberto no final de 2009 por equipes das universidades federais do Pará e do Ceará. Chama-se Alter do Chão, e é maior que o Guarani. Segundo os indícios, ele pode ter 84,6 trilhões de litros de água, quase o dobro do Guarani. Está em território brasileiro, fortemente no Amazonas, Pará e Amapá. Se for comprovado esse volume, será o maior aquífero do mundo.
Riqueza mineral
Vejamos agora os recursos minerais, que têm muito a ver com a questão ambiental. Todos sabemos que o Brasil tem reservas elevadas de minério de ferro e alumínio, ambos de natureza estratégica. A China é nosso grande comprador de minério de ferro. Com a descoberta da camada pré-sal, mais as reservas conhecidas de petróleo, o país se tornará uma potência mundial petrolífera. A exploração desses recursos, porém, tem forte ligação com as novas regras de emissão de gases. O Brasil tem de segui-las de forma clara para que nenhum organismo internacional venha a nos condenar no futuro.
No caso da impressionante biodiversidade amazônica, quais os riscos que o país corre? São as 800 organizações não governamentais [ONGs] instaladas naquela região. Elas estão sendo monitoradas pelo exército e pela aeronáutica, e pelo menos 200 são passíveis de expulsão. São ONGs de todo tipo, ligadas a grandes grupos internacionais, espiãs a serviço de laboratórios e assim por diante. Para garantir essa biodiversidade, o Brasil dispõe de três vetores importantes: o Instituto Tecnológico de Aeronáutica [ITA], que é do governo federal, a Fundação Amazonas Sustentável, patrocinada pelo Bradesco, e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade.
Quanto à energia, temos uma matriz muito boa. As fontes renováveis, notadamente da hidreletricidade, compõem 75% dela. Nosso grande patrimônio são as usinas de Itaipu, Tucuruí e da Chesf – Paulo Afonso I, II, III e IV e Xingó. Ainda existe um pagamento de empréstimo internacional relacionado à de Itaipu, mas as outras estão praticamente amortizadas. Isso é um capital social básico muito importante, pois são usinas que geram energia não poluente. É o modelo brasileiro de energias renováveis, que inclui as pequenas usinas hidrelétricas, as PCHs.
Temos também a energia oriunda da biomassa, do bagaço da cana, produzindo vapor. É tão forte que já está concorrendo com a hidreletricidade numa escala inicial. Os biocombustíveis já conhecemos. Há o etanol, um modelo eficiente e bem-sucedido, e o biodiesel, que ainda não engrenou. O etanol chama a atenção do mundo inteiro. O embaixador Seixas Corrêa nos informou em Berlim que a Alemanha está desenvolvendo um bioetanol de beterraba para tentar padronizá-lo na Europa e evitar qualquer entrada do produto brasileiro feito de cana. E nosso etanol é muito superior ao americano, que é de milho, mais caro que o nosso, com eficácia inferior, além de atingir a cadeia alimentar do homem e dos animais.
Há ainda o potencial da energia eólica. Em Pernambuco temos duas fábricas de produção de equipamentos eólicos, uma de aerogeradores, com matriz na Argentina, e outra de pás. Mas os estados que têm mais ventos são o Rio Grande do Norte e o Ceará, além de Santa Catarina, no sul. Mesmo assim a Chesf vai iniciar um programa de energia eólica. É uma grande perspectiva. A energia solar, por sua vez, não tem grande relevância no Brasil, pois é muito cara. E a energia nuclear, muito comum na Europa, é importante e superlimpa.
Belo Monte
Existe uma grande polêmica sobre a instalação da hidrelétrica de Belo Monte. Ela seria a terceira maior do mundo, depois da de Três Gargantas, na China, e de Itaipu, só que tem um custo financeiro muito discutível. Para a Eletrobrás seriam R$ 19 bilhões, mas para as construtoras são R$ 30 bilhões, muito dinheiro, cerca de US$ 18 bilhões. Há dificuldades técnicas relacionadas ao projeto da usina e surgiu uma questão ambiental séria, por conta do lago de 1,2 milhão de quilômetros quadrados, reduzido para 400 mil. A capacidade nominal é muito alta, 11,2 mil megawatts, mas a capacidade real média de produção será menor, de 4,5 mil megawatts. E quanto ao financiamento, 80% dele é dinheiro barato, do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social]. Todo mundo é empresário quando o governo financia a custo baixo. Belo Monte fica a 50 quilômetros de Altamira e a 400 de Belém. O governo quer fazê-la de qualquer maneira, criou um consórcio às pressas, sob a direção da Chesf, ganhou a licitação, mas há muitas dúvidas se a construção será iniciada neste ano.
Quanto ao agronegócio, o Brasil está se tornando uma potência e nossa produção de grãos este ano deve alcançar em torno de 144 milhões de toneladas. Somos o maior exportador mundial de carne de boi, de frango e de porco. A expansão da fronteira agrícola não precisa abater uma só árvore, ao contrário do que dizem no exterior. Pode até haver derrubada ilegal, mas a Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária] desenvolveu esquemas de produtividade tão alta que pode aumentar a produção sem ampliar um hectare sequer de terras. E o enfoque do agronegócio tem muito a ver com a questão do meio ambiente.
Ninguém viu
Com relação à mudança do clima, é muito importante falar da lei federal 12.187, assinada no apagar das luzes do ano passado, dia 29 de dezembro, e publicada no Diário Oficial da União no dia 30. Ninguém viu. Ela tem alguns destaques importantes. O primeiro é a compatibilização do desenvolvimento econômico e social com o sistema climático, ou seja, o Brasil reconhece, pelo menos no papel, que esse crescimento se dará a partir da sustentabilidade. O segundo é a preservação, conservação e recuperação de recursos ambientais, com particular atenção aos grandes biomas naturais tidos como patrimônio nacional, como a caatinga, o cerrado e assim por diante. Terceiro, a consolidação da expansão de áreas legalmente protegidas, com incentivo ao reflorestamento e à recomposição de cobertura de áreas degradadas. E o estímulo ao desenvolvimento do mercado brasileiro de redução de emissões, o que vem do Protocolo de Kyoto. Mais: a política nacional de mudança do clima estabeleceu até 2020 o compromisso de redução de emissão de gases, com limite inferior de 36,1% (isso é ambicioso) e superior de 38,9%. Ou seja, vamos ter dez anos para fazer essa redução. O interessante é que ela não é obrigatória, é facultativa, mas foi um compromisso assumido pelo presidente Lula na COP-15. Pelo menos, se essa lei for executada em parte, já será um avanço em termos da geopolítica ambiental brasileira.
Outra questão diz respeito à defesa territorial da Amazônia. Há uma preocupação muito forte nas forças armadas em relação a isso. A doutrina de defesa da Amazônia tem dois enfoques principais: o ataque a um inimigo possível e a resistência. Imagine-se que a ONU determinasse que a reserva ianomâmi passasse a ser um território internacional. Nesse caso, a doutrina seria a da resistência. Para isso usaríamos o homem amazônico. O batalhão de infantaria sediado em Belém do Pará tem homens preparados para agir com 50 graus de temperatura. O exército está criando vários pelotões que servem nas fronteiras do Brasil com Venezuela e Colômbia.
Na estratégia da força aérea há o Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), que tem 19 radares fixos e seis móveis e 52 estações meteorológicas. E a Lei do Abate, que permite derrubar aviões que entram no território nacional sem plano de voo. Só tem um defeito: se houver uma criança a bordo, ele não será abatido. A marinha utiliza lanchas, meios flutuantes, navios, patrulha fluvial e uma coisa importantíssima como fator psicossocial, que é o atendimento às populações ribeirinhas. Ela é a grande esperança dos povos da floresta que ficam muito distantes de Manaus. Oferece médico, dentista, orientação nutricional e assim por diante.
Para concluir, diria que a importância do Brasil na questão ambiental é imensa. O país vai se notabilizar no cenário internacional também nesse campo e existem riscos inerentes a essa posição de importância. Porém, a dimensão do Brasil como potência vai depender do controle da Amazônia. Se a controlarmos, vamos ser daqui a 30, 40, 50 anos uma potência de primeira grandeza. E, no lado do oceano, temos as riquezas marinhas, biodiversidade e agora o petróleo. O Brasil está avançando em consciência ambiental mas precisa desenvolver a expressão psicossocial voltada para a questão ambiental, ou seja, as escolas devem levar em consideração que só o desenvolvimento com sustentabilidade é capaz de garantir a qualidade de vida, não só agora, como para nossos netos, bisnetos e assim por diante.
Debate
HUGO NAPOLEÃO – A respeito da invasão das Farc em território brasileiro, lembro que outro grupo separatista colombiano, o Exército de Libertação Nacional, uma facção mais à direita, também atravessou nossa fronteira e sofreu uma dura reação. Com relação à omissão dos Estados Unidos na Conferência de Kyoto, pergunto: de lá para cá houve alguma evolução favorável, não houve?
MUSSALÉM – Com Barack Obama, sim. Seu antecessor, George Bush, foi o presidente que mais reagiu a Kyoto, porque sofria forte pressão do setor industrial americano. Mas Obama quebrou esse paradigma e se comprometeu com uma redução média de 20%. Isso teve certo impacto e de fato os americanos pela primeira vez admitem a possibilidade de estabelecer regras claras para a redução da emissão de gases.
ROBERT APPY – Penso que Belo Monte é um capricho do presidente Lula, que quer fazer a sua usina, mas não vai conseguir. Quanto à agroindústria, estou preocupado com o movimento dos sem-terra, que pode destruir um esforço que permitiu ao Brasil ser o primeiro do mundo nessa área. Mas você foi muito discreto a respeito da proteção aos índios.
MUSSALÉM – Essa questão merece um estudo mais profundo, é muito séria. O alcance da concessão que se dá aos índios é muito forte. Eles nunca imaginaram que seriam tão ricos do dia para a noite. É como a história da tortura, nunca vi tanto torturado no Brasil. Acompanhei um pouco o regime militar porque minha família tem muitos militares, acompanhei a luta contra a guerrilha etc. Acho interessantes duas coisas dessa bolsa ditadura. Primeiro, o número de torturados é muito grande. Segundo, os torturadores eram altamente incompetentes, porque os torturados estão todos gordinhos, vendendo saúde. Se fossem da Gestapo ou da NKVD [a polícia secreta e política de Stalin], não estariam contando a história. Na realidade vai aparecer índio aí para tomar posse de terra, como os quilombolas.
ZEVI GHIVELDER – Existe algum viés ideológico no caso dos índios e quilombolas?
MUSSALÉM – Penso que sim. O Brasil é um país de esquerda. Não há ninguém de direita. [José] Serra é de esquerda, assim como Dilma [Rousseff], Marina [Silva], Plínio de Arruda Sampaio. Na América Latina está havendo um movimento à esquerda, que vai acabar qualquer hora dessas. É Hugo Chávez, Evo Morales, Fernando Lugo, Daniel Ortega e assim por diante. O Brasil está ajudando isso. Está construindo um porto em Cuba, com US$ 450 milhões do BNDES, e mantém obras na Venezuela. E vai levar um calote do Equador, de Rafael Correa.
ISAAC JARDANOVSKI – Como levou da Venezuela.
MUSSALÉM – Exatamente. O Brasil praticamente deu as refinarias para Evo Morales e prometeu uma linha de transmissão nova de US$ 450 milhões para o Paraguai. Então há um viés ideológico de esquerda. Há uma preocupação com o movimento dos sem-terra no nordeste. Seria a teologia da libertação? No Recife a teologia da libertação é dada como algo que foi destruído pelo nordeste, por um arcebispo muito criticado, por sinal, dom José Cardoso. Não foi ele. Quem acabou com a teologia da libertação foram duas coisas, o papa João Paulo II, que lhe deu uma pancada muito forte, e o fim da União Soviética, quando o socialismo real acabou. E aí Leonardo Boff pediu para sair da Igreja, o padre Veloso, de Pernambuco, um comunista disfarçado, também saiu e assim por diante.
Quanto a Belo Monte, concordo plenamente com Robert Appy. Aliás, uma pessoa do Centro Brasileiro de Infraestrutura, do Rio de Janeiro, disse que se trata de um projeto para eleger Dilma. O Brasil precisa de energia, mas Belo Monte é dispensável, temos outras alternativas.
JULIAN CHACEL – A primeira lembrança que me vem, após ouvir sua palestra, é que sempre se falou em taxa de crescimento econômico como se fosse uma medida de progresso ou de desenvolvimento em termos de ganhos líquidos, e não uma taxa bruta de crescimento. A respeito disso quero relembrar estudos feitos nos anos 1970, sob a liderança de Vito Tanzi, em que se examinava a taxa de crescimento de um país asiático, não me lembro se Indonésia ou Filipinas. Naquele período a taxa de crescimento desse país oscilava ao redor de 7% ao ano, um índice fantástico. Não obstante, quando se calculava a perda de reservas florestais, a taxa caía para 4%. De modo que a ideia do desenvolvimento pelo desenvolvimento tem de ser examinada do ponto de vista da exploração de recursos naturais e da consequente mudança climática.
A segunda observação é a respeito da usina de Belo Monte. Li recentemente um artigo de um engenheiro que pertencia à Odebrecht, em que assinala que o fator de carga de Belo Monte gira em torno de 44%, muito abaixo do das usinas hidrelétricas brasileiras. Se Belo Monte vier a ser construída e ao mesmo tempo se tiver uma importância fundamental como complementação às termelétricas, a tese da senhora que pretende chegar à presidência da República, da modicidade da tarifa de energia elétrica, vai para o espaço.
MUSSALÉM – A tarifa é subsidiada. Quem vai pagar a conta é o povo brasileiro.
CHACEL – De qualquer maneira a tarifa foi para o espaço e será mantida através de subsídio. É a socialização da tarifa por toda a nação brasileira.
MUSSALÉM – E há interesses privados de construtoras gigantes. Todo mundo quer fazer a obra. Eles não querem administrar a usina, querem a obra.
CHACEL – Permita-me uma pequena digressão. Há três tipos de turbina, Francis, Pelton e Kaplan, que levam o nome dos engenheiros que os desenvolveram. A Francis é para grandes quedas, a Pelton para as moderadas e a Kaplan é usada quando o rio apresenta gradiente baixo e grande volume. A usina bolbo de que se fala é uma variante da Kaplan, com um fator de carga muito baixo, porque no período de seca serão produzidos 4 mil megawatts médios e não os 11 ou 12 mil.
NEY PRADO – Faço uma ponderação de ordem conceitual. O conferencista mencionou o fato de que o Brasil hoje possui uma legislação muito positiva e avançada. Quero observar que comumente fazemos uma confusão entre princípios e legislação. Assistimos, na Constituição de 1988, a essa dialética que não fecha entre principiologia avançada no campo da ética e das intenções e uma legislação positivada que está afastada muitas vezes da principiologia. Então em sua fala aconselharia você a dizer que temos um decálogo de boas intenções no campo da ecologia, mas não poderemos positivar os princípios porque, em sendo positivados, exigiriam cumprimento coercitivo. E isso leva à ideologia e, mais do que isso, ao arbítrio.
MUSSALÉM – Inclusive a política nacional de mudança climática não obriga a sociedade a cumpri-la, é uma meta sem obrigatoriedade. Mas mesmo assim é evidente que o Brasil avançou muito em termos de pensamento ambiental em relação ao que era dez anos atrás.
CLÁUDIO CONTADOR – O Legislativo não está discutindo essas questões? Há algum tempo vi Marina Silva falando no Congresso sobre a questão ambiental e não havia ninguém ouvindo. Isso assusta, porque na hora de debater qualquer legislação ficamos desprotegidos.
MUSSALÉM – Há uma forte discussão sobre meio ambiente no Congresso. Não percebemos porque não estão enfocando o pré-sal pelo lado ambiental, mas pelo do rateio de royalties. Quem tem juízo sabe que até 2015 não teremos acesso àquelas reservas de petróleo. A Petrobras não diz isso publicamente porque é governo.
ISAAC – Considerando o potencial dos aquíferos brasileiros, que tal trocar o pré-sal pelo pró-água? E se fizéssemos a cessão onerosa dos recursos aquíferos?
MUSSALÉM – A questão da água é muito séria. Roberto Magalhães, quando era governador de Pernambuco, recebeu um convite do cônsul de Israel, Tzvi Chazan,para visitar aquele país. Quando voltou disse que estava envergonhado, porque temos muita água no nordeste. Quem não tem é Israel, que não deixa de ser uma potência.
JOSEF BARAT – A Embrapa talvez tenha sido um dos centros de pesquisa tecnológica mais avançados do Brasil e foi o trabalho dela que permitiu a evolução do agronegócio.
Pergunto se neste governo Lula foi aparelhada ou se sofreu algum tipo de constrangimento.
MUSSALÉM – Houve uma tentativa, parecida com o que ocorreu com o Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada]. Mas aconteceu uma reação e as coisas mudaram.
CONTADOR – Lembro que Lula colocou um tratorista para dirigir a Embrapa.
MUSSALÉM – Sei que era uma pessoa ligada ao PT, como é, infelizmente, o presidente do Ipea. Houve uma reação e agora o presidente é um cientista, Pedro Arraes. Hoje a Embrapa está criando outra empresa, a Embrapa Agroenergia.
BARAT – O governo tem uma estrutura esquizofrênica com relação à agricultura. Tem um Ministério da Agricultura que age no interesse da produtividade ou da produção e tem o Ministério do Desenvolvimento Agrário que é um braço do MST. Como a relação entre Embrapa e MST se dá no governo?
MUSSALÉM – Há uma relação boa entre a Embrapa e o Ministério da Agricultura, foi o que percebemos. Já o outro ministério é aparelhado totalmente pelo MST.
BARAT – Aliás, uma grande parte da ação predatória na Amazônia vem de assentamentos do MST, um fato meio escondido, mas real. Outra pergunta: se o Brasil não souber preservar a Amazônia, é óbvio que as preocupações internacionais vão crescer. O patrimônio não é só do Brasil, é mundial. Hoje não se pode discutir a questão ambiental sem uma visão mundial. O Brasil tem demonstrado sucessiva incompetência em administrar seu patrimônio, alguém vai ter de tomar conta disso mais adiante, ou nosso governo brasileiro ou algum tipo de acordo internacional. Os militares têm visão nacionalista, obviamente, e veem a ameaça externa como uma possível invasão, separação etc. Essa visão não está ultrapassada do ponto de vista estratégico?
MUSSALÉM – Não.
BARAT – A história de dizer que na Europa eles destruíram e agora querem impedir que nós destruamos é uma visão retrógrada, não é por aí que a coisa deve ser colocada.
MUSSALÉM – Jerônimo Moscardo, o embaixador que disse isso, não afirmou que agora vamos destruir, mas que agora querem nos ensinar a administrar a floresta amazônica. Foi essa sua intenção.
BARAT – Sim, mas a postura do presidente Lula é sempre defensiva, ele não mostra uma alternativa, e diz: “Vocês destruíram, nós também podemos”. Esse é um raciocínio primário. Os militares estão identificados com essa ideia lulista de defesa ou têm uma visão mais avançada?
MUSSALÉM – Eles têm uma visão doutrinária, diferente e independente de governo ou de partido, de defesa da Amazônia como território brasileiro e também de preservação ambiental. Eles são fiadores dessa situação e graças a eles ela não piorou em termos de desmatamento. Mas a Amazônia é nosso grande calcanhar de aquiles. Um especialista em assuntos estratégicos do exército, hoje na reserva, sempre diz que, se houver um ataque, não teremos como resistir. Outros militares, diferentemente, acreditam que temos condições de defesa contra uma grande invasão, desde que haja uma estratégia. Isso é interessante como discussão, porque é preciso criar uma consciência nacional de preservação do território.
BARAT – Como os militares veem a interferência da Venezuela, dos bolivarianos?
MUSSALÉM – Ela preocupa, mas muito menos que a ONU. A ONU tem cobertura legal e internacional, e assim entraram em Kosovo e no Timor Leste. Nesse país, o pessoal da Indonésia quando chegou perguntava quem falava português e matava todos os que respondiam afirmativamente. Quando a ONU determinou que a Indonésia saísse, ela obedeceu, mas não sem antes destruir igrejas e escolas, para não deixar rastro da colonização portuguesa. Em nosso caso, a preocupação com uma intervenção da ONU é grande. Daqui a 15 anos podemos ter uma surpresa, principalmente com os ianomâmis.
LUIZ GORNSTEIN – Este ano Brasília completa 50 anos. Em sua opinião, em termos geopolíticos, foi um êxito ou um fracasso?
MUSSALÉM – Como economista, acreditávamos que a nova capital era uma aberração. Hoje mudei de opinião e penso que Brasília foi muito importante para a consolidação do centro-oeste. Foi uma interiorização estratégica importante. Naquela época se pensava que a capital longe da costa ficaria mais protegida de uma invasão estrangeira, mas com a evolução da arte militar isso passou a ter pouca importância. Importante é a presença lá.
FARIA LIMA – Para resgatar um pouco a imagem do Congresso Nacional, tive a possibilidade de trabalhar na área de meio ambiente em 1971, quando levei 300 especialistas para Brasília. Abordamos um aspecto interessante que você também citou: todo investimento pressupõe retorno, mas aquele que é feito em educação causa impacto em vários planos, inclusive no psicossocial. Foi a partir daí que começou um despertar em relação à questão ambiental em nível mais amplo. Mas o Brasil cometeu então um grande erro, ao dizer que aceitávamos a poluição porque queríamos desenvolvimento.
Em relação à Amazônia, houve um equívoco do governo brasileiro quando incentivou o polo industrial de Manaus. A periferia da cidade tornou-se então um cinturão de miséria.
ZEVI – Você citou um número que impressiona, a existência de 800 ONGs na Amazônia. Cada vez que ouço falar em ONG sinto calafrios, porque sei que é picaretagem sugadora de dinheiro público. Eu queria que você explicasse o que fazem essas ONGs.
MUSSALÉM – Começou com Fernando Collor, com a assinatura do acordo da Rio-92, a permissão para que entidades estrangeiras viessem para o Brasil. Há uns 12 anos, a aeronáutica estava monitorando 600 entidades. Hoje são 800 as acompanhadas pelas forças armadas. Elas não precisam de dinheiro brasileiro, muitas são estrangeiras, patrocinadas por seus respectivos países ou por ordens religiosas. Os militares dizem que essas pessoas, mesmo de ordens religiosas, trabalham para os governos de seus respectivos países, são espiãs.
ZEVI – E resulta alguma coisa concreta da ação dessas ONGs?
MUSSALÉM – Na reserva ianomâmi elas atuam muito fortemente e estão levando índios com bom nível de inteligência para estudar na Europa e nos Estados Unidos. E um militar do exército me informou que na reserva ianomâmi é proibido falar português.
ISAAC – E os índios voltam como agentes secretos. É isso?
MUSSALÉM – Os índios serão os futuros administradores, esse é o x da história. Eles não vão voltar falando inglês por diletantismo, mas como administradores do território, que poderá ser internacional. Essa é a questão. Não sou eu que estou pensando, digo o que ouvi de quem conhece a questão amazônica e o interesse internacional. Lula estava para expulsar várias dessas ONGs, já havia uma relação no Ministério da Justiça, mas não vi nenhum ato de expulsão.
CONTADOR – O Congresso sabe disso?
MUSSALÉM – Sabe, mas não está interessado na questão, tem outras que considera mais interessantes.
VICENTE MAROTTA RANGEL – Quero apenas evocar experiências pessoais e sinalizar uma circunstância em que me envolvi. Na Conferência de Estocolmo de 1972 a delegação do Brasil era contrária à convocação dessa reunião. Tínhamos uma posição de reserva em relação à conferência e distinguíamos dois tipos de poluição, a da pobreza e a da riqueza. Temíamos, e estou interpretando o pensamento da delegação brasileira, que sob a roupagem da proteção ao meio ambiente houvesse a intenção de impor a nós os interesses de países colonizadores ou industriais. É claro que depois mudou, embora gradualmente, a tese do governo brasileiro.
MUSSALÉM – Em 1974, no governo Ernesto Geisel, havia uma visão nacionalista muito rígida. Essa referência histórica é muito boa, porque o futuro nós buscamos na história. Gilberto Freyre dizia que o tempo tem passado, presente e futuro ao mesmo tempo.
OZIRES SILVA – Sabemos que as escolas americanas, em seus livros didáticos, pregam a Amazônia como região internacional. A pergunta é: estamos fazendo alguma coisa para preparar os cidadãos do futuro para essa defesa?
MUSSALÉM – A resposta é não.
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