Certamente o maior desafio para um futuro governo no Brasil será conceber e pôr em prática uma estratégia que tenha como ponto de partida levar a sociedade e os formuladores de políticas públicas e privadas a deixar de encarar o meio ambiente como um tema apartado, desligado das realidades econômicas, políticas, sociais, culturais. Só esse caminho permitirá definir e executar uma estratégia que tenha como estrutura fundamental para as próximas décadas a extraordinária possibilidade do País, com sua posição privilegiada: trata-se de uma nação com território continental, insolação durante todo o ano (e possibilidades de plantio e colheita equivalentes), quase 13% da água que corre na superfície do planeta, de 15 a 20% da biodiversidade planetária (uma das maiores possibilidades de futuro, com novos alimentos, novos medicamentos, novos materiais para substituir os que se esgotarem), além da possibilidade de uma matriz energética “limpa” e renovável, com hidreletricidade, energias solar, eólica, de biomassas, de marés, geotérmica. Não seria exagero dizer que o Brasil é o “sonho do mundo”, tem em relativa abundância tudo aquilo de que o mundo precisa nesta hora de grandes crises. Mas para isso é preciso que sejamos competentes e coloquemos as questões no lugar.
A atual crise financeira global – na qual o excesso de consumo e o desligamento entre rea-lidade financeira e o mundo concreto têm papel central – começa a mostrar que as reformas planetárias terão de ir muito além das instituições financeiras e de seus reflexos nas estruturas político-administrativas dos governos. Terão de religar esses mundos às bases físicas do planeta. E aí, é preciso começar relembrando aquilo que o ex-secretário-geral da onu, Kofi Annan, não se cansa de repetir: “O problema central do mundo hoje está nas mudanças climáticas e nos padrões de consumo insustentáveis, já além da capacidade de reposição do planeta; essas duas questões é que ameaçam o futuro da espécie humana”. São palavras muito graves, pronunciadas por um diplomata da inteligência e da experiência de quem comandou por mais de uma década as questões planetárias, como secretário-geral da onu. Então, é preciso partir desse começo, para recolocar as questões em seu devido lugar.
Consumo insustentável Dizem os relatórios do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (pnuma) que o consumo de recursos e serviços naturais no mundo já está hoje cerca de 30% além da capacidade de reposição do planeta. E esse consumo excessivo aumenta de ano para ano, com consequências dramáticas no avanço da desertificação, na crise de recursos hídricos, na perda da biodiversidade, na contribuição para os problemas do clima, no agravamento da pobreza mundial.
O Living Planet Index e a Red List Index afirmam que, entre 1970 e 2008, houve uma perda de 30% na biodiversidade do planeta, principalmente em áreas tropicais, onde pode chegar a 60%. Há alguns dados recentes mais animadores, como o de que a perda de florestas tropicais diminuiu na década passada e caiu de 160 mil quilômetros quadrados anuais para 130 mil – que ainda é alta. Em compensação, a área em hectares utilizada por ser humano continua a crescer. E no Brasil, embora essa disponibilidade de área por habitante seja alta, está acima do limite aconselhável em escala planetária.
Centrando o olhar em cada bioma brasileiro, a preocupação cresce. Embora nos últimos anos tenham caído as taxas de desmatamento na Amazônia (7 464 km2 em 2009), ainda continuamos com uma média muito alta, de mais de 17,5 mil km2 anuais na última década – com a agravante de os últimos levantamentos mostrarem retomada da tendência de crescimento. E ao todo o Brasil já perdeu 17% de suas florestas tropicais. No Cerrado, há muita divergência entre números governamentais e de ongs – estas apontando perda superior a 20 000 km2 anuais e as estatísticas oficiais, que também adotavam esses números, baixando consideravelmente nos últimos tempos. Seja como for, o Cerrado já perdeu mais de 50% de sua vegetação originária e o desmatamento parece afetar negativamente a retenção de água no subsolo, num bioma onde nascem 14% das águas que correm para as grandes bacias brasileiras (Amazônia, São Francisco, Paraná-Paraguai). A Caatinga já perdeu 45,3% de sua vegetação nativa e tem cerca de 180 000 km2 de seus 826 411 km2 em processo de desertificação.
Diagnósticos de especialistas em clima, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, mencionam a possibilidade de o semiárido perder de 25 a 30% de seus recursos hídricos nas próximas décadas, em função do clima. Já no Pantanal de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, o desmatamento em suas bordas tem levado a um ampliação progressiva das secas, agravada pela pressão em favor do aumento de plantio de cana-de-açúcar.
É imperioso repensar esse panorama. Segundo o professor Roberto Berlinck, do Instituto de Química de São Paulo, o valor da biodiversidade brasileira – estimado em us$ 2 trilhões anuais – é muito maior que o Produto Interno Bruto. Não se deve estranhar, quando se lembra estudo de Robert Constanza e mais treze cientistas na Universidade da Califórnia, segundo o qual os serviços prestados gratuitamente pela biodiversidade e pelos serviços naturais (fertilidade natural do solo, regulação do clima, manutenção dos recursos hídricos, etc.) custariam três vezes o produto bruto mundial se tivessem de ser substituídos por ações humanas.
Neste Ano Internacional da Biodiversidade, o Global Diversity Outlook (da Convenção da Diversidade Biológica), ao mesmo tempo em que lamentou não terem os países cumprido o compromisso de reduzir as perdas nessa área, fez uma advertência: “Os sistemas naturais que dão suporte à economia, à vida e à sustentabilidade correm o risco de rápida degradação e colapso, a menos que haja uma mudança rápida, radical e criativa, capaz de garantir a sustentação e a variedade da vida na Terra”. Mais: “A biodiversidade não pode ser vista mais como separada da economia. Ela pode influenciar a saúde, a renda e a segurança da humanidade”. No entanto, como lembra o secretário-executivo da cdb, Ahmed Djoghalaf, “continuamos a perder a biodiversidade em ritmo nunca visto na História – mil vezes mais rápido do que foi durante séculos”.
Reverter esse quadro exige políticas públicas fortes e bem dotadas. Há poucos anos, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (sbpc) propôs, em sua reunião anual, que o Brasil adotasse uma política de desmatamento zero para a Amazônia e de forte investimento em ciência e tecnologia na região, inclusive na formação de cientistas, para aplicação prioritária no conhecimento e exploração da biodiversidade. A expansão da agropecuária poderia continuar ocorrendo em mais de 200 mil quilômetros quadrados do bioma, já desmatados e sem nenhuma utilização econômica. Não conseguiu ser ouvida. Os recursos nessa área continuam a ser ínfimos. O orçamento do Ministério do Meio Ambiente para tudo o que deve ser feito – cadastramento de terras, monitoramento, fiscalização, etc. – também é risível, já que para toda a sua atividade ele dispõe de menos de 1% do orçamento federal.
E poderia ser diferente, como mostra um único exemplo: o Instituto de Pesquisas da Amazônia (inpa) conseguiu, com cruzamentos, produzir um tipo de pupunha manejável – o que não acontecia antes, com troncos repletos de espinhos; com isso, tornou possível a extração em escala do palmito de pupunha, que hoje responde pela maior parte do palmito exportado e consumido internamente, já que o palmito juçara está em extinção. O biólogo Thomas Lovejoy, preocupado com as perdas em nossos biomas, lembra que, hoje, só o comércio mundial de medicamentos derivados de plantas chega a mais de us$ 200 bilhões anuais. Mas o Brasil nem participa desse mercado. Chegamos ao cúmulo de medicamentos fabricados com base no veneno da jararaca, aqui descobertos por um cientista brasileiro – mas que por falta de recursos locais tiveram de ser desenvolvidos nos Estados Unidos –, traduzirem-se anualmente em centenas de milhões de dólares, pagos inclusive pelo Brasil, que os importa.
Os dramas do clima
Já são bastante conhecidos os diagnósticos na área do clima, principalmente os do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, o órgão científico da respectiva convenção, que conta com mais de 2 500 cientistas do mundo todo, que têm seu trabalho analisado e referendado por outros 90 mil. Dizem eles que são necessárias transformações radicais em nossos modelos energéticos, para evitar que a concentração de partículas poluentes na atmosfera terrestre ultrapasse 450 partes por milhão até o ano 2050, de modo a evitar que a temperatura planetária suba além de dois graus Celsius (já subiu 0,8 grau). Se não houver êxito nesse esforço, os chamados “eventos climáticos extremos” – que já se estão acentuando – aumentarão muito mais e provocarão graves efeitos no mundo: mais furacões e ciclones, mais inundações e secas extremas, maior elevação do nível dos oceanos, atingindo as áreas costeiras (onde vive 40% da humanidade).
Para evitar que os desastres climáticos se acentuem – eles já atingem mais de 200 milhões de pessoas por ano e provocam prejuízos também da ordem de centenas de bilhões de dólares – será preciso mudar radicalmente os atuais modos de viver no planeta, principalmente as matrizes energéticas, que hoje repousam fundamentalmente em energias derivadas do petróleo, do gás natural e do carvão mineral, os chamados combustíveis fósseis. E isso exigirá, segundo a Agência Internacional de Energia, investimentos de us$ 15 trilhões, dos quais parecemos muito distantes.
Com a agravante de que o ritmo de consumo desses combustíveis cresce exponencialmente em alguns países “emergentes”, principalmente China e Índia (embora também estejam investindo em energias renováveis).
A China, que já se tornou a maior emissora de gases poluentes, ultrapassando os Estados Unidos, argumenta que precisa prover de energia elétrica mais de 100 milhões de pessoas que dela não dispõem. E para isso precisa de carvão mineral. A Índia usa o mesmo argumento: tem 400 milhões de pessoas sem energia e sua fonte mais abundante, lá, é o carvão. Além disso, China e Índia argumentam que seu consumo de energia per capita é muitas vezes menor que o dos Estados Unidos, Europa e Japão. E perguntam: o problema das emissões está nos países que fabricam certos produtos ou nos países que os consomem? Os Estados Unidos consomem mais de 30% da produção industrial chinesa.
O Brasil, por causa de desmatamentos e queimadas, principalmente, está entre os cinco maiores emissores de poluentes no mundo. Já emitia mais de um bilhão de toneladas anuais no único inventário que produziu, em 2004 (referente ao ano de 1994). Mas, nesse total, perto de 75% das emissões se deviam a mudanças no uso da terra, desmatamentos e queimadas. O restante, às áreas de indústria e transporte, principalmente. As informações mais recentes dizem que a participação de desmatamentos, queimadas e mudanças no uso do solo nas emissões ficaram em 76,3% das emissões em 2005. Mas ainda não foi divulgado o segundo inventário, prometido para este ano. Sir Nicholas Stern, conceituado ex-economista-chefe do Banco Mundial, consultor do governo britânico para a área do clima, estima que as emissões brasileiras estejam hoje entre onze e doze toneladas anuais por pessoa – o que significaria cerca de dois bilhões de toneladas anuais.
Alinhando-se a outros países emergentes e dezenas de outros, o Brasil tem-se recusado a assumir compromissos obrigatórios no âmbito da Convenção do Clima. Com dois argumentos: 1) a responsabilidade histórica e maior é dos países industrializados, que emitem muito mais e há mais tempo, desde o início da Revolução Industrial; 2) se adotasse compromissos obrigatórios de redução, eles poderiam afetar seu crescimento econômico.
O primeiro argumento é verdadeiro – mas não exclui os demais países, que também têm uma parte da responsabilidade e já estão ultrapassando os industrializados no montante de emissões. Além disso, o Brasil precisa lembrar-se de que, nas discussões do Protocolo de Kyoto, em 1997, apresentou proposta de que cada país deveria assumir responsabilidade de redução de emissões proporcional à contribuição que já tenha dado para a concentração de gases na atmosfera e às emissões atuais; isso é calculável e viável. A proposta foi aprovada em princípio, mas sujeita a novos estudos científicos – que até agora não foram finalizados.
Quanto ao segundo argumento, a redução de emissões só afetará negativamente o crescimento econômico se insistirmos num modelo predatório de recursos e insustentável energeticamente.
Quando se aproximava a realização da Convenção do Clima em Copenhague, em dezembro de 2009, o Brasil alterou sua posição. A Lei de Mudança Climática aprovada pelo governo federal propôs como objetivo reduzir entre 36,1% e 38,9% as emissões brasileiras, calculadas sobre o patamar a que chegariam em 2020 tomando por base as emissões de 2005. Segundo o ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, em exposição no Senado federal, essas emissões em 2005 são calculadas em 2 205,3 milhões de toneladas anuais, com aumento de 48,4% sobre 1994, quando eram 1 484,9 milhão, e de 61,7% sobre 1990, quando estiveram em 1 362,3 milhão de toneladas. A proposta brasileira de reduções voluntárias – e não compromissos obrigatórios, fiscalizáveis pelos demais países e organismos internacionais – deixaria o País com pouco mais de 1,9 bilhão de toneladas em 2020, com cerca de dez toneladas por habitante/ano (se até lá a população não crescer muito).
Um dos ângulos mais difíceis do problema brasileiro está na emissão de metano pelo gado bovino, fonte importante de emissão. Cada boi emite 58 quilos de metano por ano (medição da Embrapa Meio Ambiente) em seu processo de ruminação de alimentos – o que significa, no total, mais de dez milhões de toneladas por ano. Como o metano tem uma taxa de equivalência de 21 em relação ao carbono, essas emissões do gado bovino significam mais de 210 milhões de toneladas equivalentes de carbono – e constituem problema relevante.
O assunto chegou a ser discutido em fóruns paralelos na Convenção do Clima, onde lideranças da pecuária brasileira afirmaram estar convencidas de que será preciso mudar o panorama – abandonando o sistema de criação de gado em grandes áreas com pequeno rendimento por hectare e maior concentração nos sistemas de confinamento. Além da esperança em novas tecnologias que possam reduzir o teor de metano nos alimentos, com aditivos químicos, mistura de óleo de peixe e outras. Além disso, o Brasil está argumentando no ipcc que a equivalência metano/carbono precisa ser revista, pois o metano permanece menos tempo na atmosfera.
Na reunião de Copenhague, não houve avanço importante em direção a mudanças, apesar do reconhecimento da gravidade do quadro. Chegou-se apenas a uma declaração das partes, sem efeito prático. E tudo foi deixado para a nova reunião, prevista para dezembro próximo, em Cancún. O próprio secretário-geral da onu, Ban Kimoon, já tem dito não acreditar que se chegue no México a um acordo que regule a área após 2012, quando termina a vigência do Protocolo de Kyoto (que estabeleceu redução de 5,2% nas emissões dos países industrializados sobre as de 1990 – e que ainda não foi cumprido). Porque para chegar a um novo acordo – na direção de obter compromissos de redução de emissões que cheguem até a 80% das atuais em 2050 – será preciso, primeiro, aprovar um roteiro para a discussão (que ainda não existe) e em seguida chegar a consensos mínimos entre as partes.
Com tantos interesses divergentes entre países industrializados, emergentes, G-77, países mais pobres, países-ilhas (já ameaçados de desaparecimento pela elevação do nível dos oceanos) – sem falar na predominância das lógicas financeiras nos países e empresas de cada um em cada setor – o consenso tem-se mostrado impossível. E em convenções da onu, ele é indispensável para aprovar qualquer resolução.
Mas as advertências se renovam. No final de maio, a Administração de Informações sobre Energia, dos Estados Unidos, informou que as emissões mundiais de carbono, resultantes da queima de petróleo, gás natural e carvão devem subir 43% até 2035 e chegar a 42,4 bilhões de toneladas – se não houver acordo para redução.
Não bastasse tudo isso, a questão está ainda relacionada com o problema de recursos naturais e consumo. Os relatórios do pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) têm assinalado que os países industrializados, com menos de 20% da população mundial, concentram quase 80% do consumo de recursos no mundo. E se todos os países consumissem como norte-americanos, europeus ou japoneses, seriam necessários mais dois ou três planetas para suprir os recursos. Da mesma forma, eles concentram a renda: as três pessoas mais ricas – que neles vivem – detêm, com seus ativos, o equivalente ao produto bruto anual dos 48 países mais pobres, onde vivem 600 milhões de pessoas. Pouco mais de 250 pessoas, com ativos superiores a us$ 1 bilhão cada uma, juntas têm o equivalente à renda anual de mais de 40% da humanidade, mais de 2,5 bilhões de pessoas. Seria possível acrescentar que em cada país não-industrializado esse quadro se repete, comparando a renda dos segmentos mais ricos com os de menor renda.
O Brasil já é um dos países que mais sofrem com mudanças do clima. Já tivemos furacão e tornados, temos tido desastres com inundações, deslizamentos de encostas e topos de morros, perdas de safras, etc. Estudos recentes – Economia da Mudança do Clima no Brasil – de onze institutos universitários de pesquisa mostram que, dependendo de circunstâncias, em 40 anos o Brasil poderá perder r$ 3,6 trilhões em suas safras, por problemas climáticos. Outros países poderão ter o mesmo problema, agravando inclusive o quadro da fome no mundo, que já afeta perto de um bilhão de pessoas.
Repensar a energia
Para que haja mudanças importantes no Brasil, que contribuam para avanços no clima, será preciso repensar também a questão da energia. O País tem insistido nos últimos anos no caminho de implantar mega-hidrelétricas, principalmente na Amazônia, ao custo de muitos bilhões de reais. Mas também com altos custos ambientais e sociais, como é o caso das usinas do rio Madeira e da projetada usina de Belo Monte. Além disso, nos últimos leilões de energia, tem dado forte participação a usinas termelétricas, altamente poluidoras, com o argumento de que é preciso compensar o atraso devido às exigências na área ambiental – de modo a impedir que o País sofra novo “apagão”, como em 2001.
Não entram em discussão, entretanto, outras possibilidades, outros estudos. Um deles, da Unicamp, wwf e outras instituições, mostra que o Brasil poderia economizar 30% da energia que consome com programas de eficiência energética e conservação – tal como fez em 2001, sem nenhum prejuízo para a sociedade. Poderia ganhar outros 10% com redução de perdas nas linhas de transmissão de energia, onde elas estão hoje em pelo menos 15% (o Japão perde 1%). E ainda 10% com repotenciação de antigos geradores de hidrelétricas que têm hoje baixo rendimento e poderiam aumentá-lo a custo muitas vezes menor que o da implantação de novos geradores em novas usinas.
Na mesma linha, as possibilidades de outros formatos de geração de energia. Há estudos que mostram a possibilidade de, com a implantação de coletores solares numa área equivalente a um quarto do reservatório da hidrelétrica de Itaipu, produzir tanta energia quanto nessa usina. Também com a energia eólica as possibilidades são minimizadas, embora seu potencial seja no mínimo maior que todo o consumo nacional hoje. E sua participação na matriz nacional é mínima, sob o argumento de que se trata de energia cara – sem fazer todas as comparações necessárias, que incluam os custos ambientais e sociais de outros formatos.
Tem-se avançado na questão do etanol, embora faltem certos cuidados que criam vulnerabilidades. Como o zoneamento ecológico-econômico para deixar fora da área de interdição o Cerrado e até as bordas do Pantanal – onde ela não deve ocorrer mas está acontecendo. O setor também é vulnerável quanto às condições de trabalho dos cortadores de cana em muitas áreas.
Já a questão da participação da energia nuclear na matriz energética continua polêmica. Os defensores não conseguem remover os argumentos de que se trata de energia cara, perigosa e sem destinação para seus resíduos. Ainda assim, aprovou-se a implantação da usina Angra 3 e planejam-se várias outras, inclusive no Nordeste. A implantação de usinas desse tipo à beira-mar deveria ser encarada com muita cautela, tendo em vista o processo de elevação das águas oceânicas, já em curso em muitas partes do mundo, inclusive no litoral brasileiro, diz o professor Carlos Nobre, que coordena a política científica do clima no Brasil. É preciso lembrar que, no nosso caso, os resíduos altamente radiativos são mantidos dentro das usinas, sem destinação final equacionada (que também não foi encontrada ainda em nenhuma parte do mundo).
E ainda será preciso tratar da questão da destinação da nova energia – já que as megausinas da Amazônia, principalmente, terão a maior parte da que gerarem destinada à produção de eletrointensivos, sobretudo alumínio e ferro-gusa, na maior parte para exportação. Trata-se de questão que se insere no âmbito de problema já registrado pelo pnud em seus relatórios sobre o desenvolvimento humano no Brasil, onde mostra que países industrializados transferem para outros países, sem nenhuma remuneração adicional, custos sociais e ambientais. É o caso dos eletrointensivos, onde os altos custos financeiros da produção (a energia representa cerca de metade do custo total) levaram países industrializados a transferir grande parte de sua produção para países como o Brasil. O caso de Tucuruí, na década de 1980, exemplifica a questão: decidiu-se por inundar uma área de mais de 2 700 km2, sem sequer retirar a madeira (vinte anos depois começou a ser retirada por mergulhadores com motosserras...); desalojaram-se dezenas de milhares de pessoas; disseminou-se a malária; criaram-se aglomerados urbanos de trabalhadores nas obras carentes de infraestruturas; e passou-se a fornecer energia às produtoras de eletrointensivos com mais de 50% de subsídio sobre a tarifa paga pelos demais consumidores, praticamente todos fora da Amazônia; ao fim do contrato de vinte anos, o Tesouro Nacional exigiu da Eletrobrás que pagasse alguns bilhões de dólares referentes a esses subsídios – mas acabou-se lançando o prejuízo nas contas de todos os consumidores no País.
As discussões poderiam ir ainda mais além, com a questão do desmatamento na Amazônia e no Cerrado para alimentar siderúrgicas. Mas não é preciso. Todas essas questões colocam a necessidade de uma ampla discussão com a sociedade a respeito da matriz energética nacional e das melhores alternativas. As políticas não podem continuar atendendo apenas a interesses de setores específicos. É preciso dar prioridade aos interesses maiores da sociedade. À necessidade de transformações em função dos grandes problemas planetários. E da inserção urgente de uma estratégia desse setor em uma macroestratégia nacional moderna.
O privilégio da água
Não há discussão hoje mais frequente que a da “crise da água”. Há mais de duas décadas vêm a onu e seus organismos advertindo que será essa a mais grave crise dos nossos tempos. Temos hoje no mundo mais de um bilhão de pessoas sem acesso a água potável de boa qualidade. Mais de 40% da humanidade (mais de 2,5 bilhões de pessoas) não dispõem de saneamento básico; mais de um bilhão de pessoas defecam todos os dias ao ar livre. Até meados deste século, a crise envolverá dois terços da humanidade – diz a onu – nos conflitos em disputa de água, até guerras.
Também no Brasil o quadro é grave. Quase 10% da população, quase vinte milhões de pessoas, não recebem água encanada em suas residências. Cerca de 50% da população (quase cem milhões de habitantes) não têm suas casas ligadas a redes de esgotos (parte deles conta com fossas sépticas). Dos esgotos coletados, menos de 30% recebem alguma forma de tratamento – o restante é despejado in natura nos rios e no mar e é a causa principal das doenças veiculadas pela água, que respondem por 60%das internações pediátricas na rede pública de saúde e por 80% das consultas na mesma faixa.
Essa poluição por falta de saneamento é também a causa principal da “situação crítica” diagnosticada pela Agência Nacional de Águas em todas as bacias brasileiras, da Bahia ao Rio Grande do Sul. É também responsável pelo quadro preocupante encontrado pela ana em pesquisa recente em mais de dois mil municípios brasileiros, na qual constatou que dois terços deles enfrentarão graves problemas de abastecimento em prazo muito curto. Ainda assim, outros estudos mostram que o desperdício de água nas redes públicas das principais cidades brasileiras chega a 45% do que sai das estações de tratamento. Mas até há pouco não havia um único sistema de financiamento para reparação e conservação de redes – só para novas barragens, novas adutoras e novas estações de tratamento (o bndes parece haver quebrado a regra, começando a financiar recentemente a reparação e conservação).
Ainda é possível acrescentar que o Brasil é parte do problema diagnosticado pelo pnuma, de cem milhões de toneladas anuais de nitrogênio usado como fertilizantes nas lavouras e que chegam às águas dos oceanos, onde estimulam a proliferação de algas – e é essa a causa principal da perda da biodiversidade marinha em muitas regiões.
Tudo isso evidencia a necessidade de o País repensar sua estratégia nessa área e incluí-la na macroestratégia dos novos tempos. Se temos o privilégio de quase 13% das águas superficiais do planeta (sem contar os aquíferos subterrâneos), temos de lembrar que essa água é distribuída desigualmente entre as regiões, com quase 80% na região amazônica – onde estão menos de 20% da população. Com um estado, Pernambuco, já em situação crítica (consome mais de 20% da água superficial) e outros próximos disso. E com praticamente todas as grandes cidades já com o problema de precisar buscar água a grandes distâncias e elevados custos, muitos deles enfrentando conflitos com os municípios das bacias de onde retiram ou pretendem retirar água.
Com uma problemática dessa envergadura, o planejamento oficial prevê a “universalização” do saneamento para um prazo de vinte anos, aplicando no setor cerca de r$ 10 bilhões anuais – só que o desembolso efetivo tem ficado muito abaixo disso.
Em algum momento irá à mesa de negociações internacionais também a chamada “exportação virtual de água”, questão já levantada nos relatórios das conferências sobre água promovidas pela onu. Ali se lembra que produzir um quilo de carne bovina exige o uso de quinze mil litros de água em todas as fases do processo, desde a formação do pasto, a alimentação e dessedentação de animais, a limpeza de instalações, etc. Um quilo de carne suína exige oito mil litros; carne de aves, oito mil litros; um quilo de cereais, de mil a mil e trezentos litros. A argumentação que se começa ouvir é a de que principalmente países industrializados, que não dispõem de território nem recursos hídricos para produzir carnes e grãos que consomem, recorrem à importação – mais uma vez, entretanto, sem considerar nem remunerar os custos ambientais e sociais embutidos.
O desperdício no lixo
Resta ainda – por fazer parte da questão do consumo e desperdício de recursos – o problema dos resíduos. Não há dados recentes e precisos sobre a quantidade produzida no País. O levantamento de 2002 pelo ibge acusou 230 mil toneladas de lixo domiciliar e comercial coletadas diariamente no Brasil – o que significaria mais de oitenta milhões de toneladas anuais (fora o que não é coletado, polui e assoreia rios, entope redes de drenagem e piscinões).
O primeiro problema está no desperdício de recursos, pois um estudo da unesp, em Indaiatuba (sp), mostrou que 91% dos resíduos que vão para aterros ou lixões seriam reaproveitáveis ou recicláveis. Mas reciclagem em usinas no Brasil pouco passa de 1% do total. E a situação só não é muito mais grave porque cerca de 800 mil catadores de lixo encarregam-se de encaminhar a empresas recicladoras cerca de 30% do papel e papelão descartados, mais de 20% do plástico e do vidro. Estudo recente do ipea sobre boa parte do lixo levado para aterros e lixões calculou em mais de r$ 8 bilhões o desperdício de materiais recicláveis (o que equivaleria a mais de duas vezes o orçamento anual do Ministério do Meio Ambiente em 2007).
Mas há outros ângulos: os resíduos da construção civil equivalem a pelo menos o dobro dos resíduos domésticos – e também não são reciclados. Pelo menos metade do lixo recolhido vai para lixões a céu aberto, onde contamina lençóis freáticos e polui a paisagem e a qualidade de vida da vizinhança. As prefeituras já pagam hoje em média r$ 80,00 por tonelada coletada, segundo o ipea – o que, se for multiplicado por 230 mil toneladas/dia, significa quase r$ 20 milhões diários ou mais de r$ 7 bilhões anuais. Com a agravante da forte participação das empresas do setor no financiamento de campanhas eleitorais e no noticiário sobre corrupção em órgãos públicos.
Um dos ângulos das questões imensas geradas por esse sistema está em que quase todas as capitais brasileiras estão hoje com seus aterros sanitários esgotados – São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Belém, Recife, entre muitas outras. E não há espaços adequados para receber novos aterros, que são muito difíceis – pois exigem áreas extensas, lençol freático profundo (para não ser contaminado), sistema viário amplo, ausência de moradores nas vizinhanças, ventos favoráveis (para não espalharem odores). O risco é de só se conseguirem áreas muito distantes, caras, com o custo do transporte muito onerado – além de conflitos com outros municípios.
Está em fase final no Congresso projeto de Política Nacional de Resíduos Sólidos. Tem princípios interessantes – mas ainda não define instrumentos práticos, nem recursos. Mas inclui um princípio que precisa ser levado à prática: dar preferência a cooperativas de catadores nas soluções, para estimular a geração de trabalho e renda.
Cenários à vista Parecem ser essas as grandes questões para uma agenda brasileira essencial, a ser considerada pelo próximo governo.
É preciso agora que a sociedade e a comunicação pressionem para que os candidatos nas próximas eleições, em todos os níveis, se manifestem sobre elas. Porque a partir daí é que se pode construir uma macroestratégia nacional, em momento agudo e decisivo: a crise econômico-financeira que o mundo enfrenta exigirá transformações profundas. E elas trarão para o centro do palco as chamadas questões ambientais – que na verdade são o mundo concreto em que vivemos e que não podemos esquecer.
Privilegiado pelas condições naturais mencionadas, o Brasil pode assumir lugar muito importante nas discussões e negociações desse novo tempo. •
Washington novaes é articulista do jornal O Estado de S. Paulo, comentarista e consultor da tv Cultura de São Paulo. Foi secretário de Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia do Distrito Federal (1991/1992), consultor da Agenda 21 brasileira e dos relatórios sobre desenvolvimento humano no Brasil (pnud), além de sistematizador do I Relatório Brasileiro para a Convenção da Biodiversidade
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