"Não há nada mais tirânico do que um governo que pretende ser paternal."
Napoleão Bonaparte
Nas duas últimas décadas, a sociedade brasileira obteve avanços significativos nas mais variadas áreas. A economia foi estabilizada, as eleições entraram para a rotina e são um exemplo de organização para o mundo, com o uso da tecnologia a serviço da eficiência. Contrariando os costumes, os governantes passaram a se preocupar com a responsabilidade fiscal. A boa gestão é hoje bandeira nas campanhas eleitorais. Por que então o exercício da política não consegue seguir esse mesmo caminho evolutivo e está indo na trilha oposta, enfrentando crises periódicas que abalam a confiança da opinião pública nos partidos e no Congresso Nacional?
Há pouco mais de trinta anos, em plena ditadura militar, o exercício da política era mais simples. Um efeito perverso resultante do fim do pluripartidarismo. Era uma lógica maniqueísta.
De um lado estavam aqueles que – em graus variados – defendiam a manutenção do regime autoritário, integrantes da Aliança Renovadora Nacional, a Arena. No lado oposto, existia um amplo quadro de lideranças, reunindo de liberais democráticos a comunistas, passando por conservadores que por uma ou outra razão se distanciaram do regime constituído após o golpe de abril de 1964, todos juntos no Movimento Democrático Brasileiro, o MDB.
Não havia muita preocupação com os “antecedentes” de quem aderia à causa democrática. Eram tempos duros, perigosos, mas em preto-e-branco. Valia o raciocínio de Winston Churchill, que, na determinação resoluta para derrotar Adolf Hitler, admitia fazer um pacto até com o diabo. Essa estratégia “vista grossa” teria um nefasto efeito sobre o futuro do sucedâneo do MDB, o PMDB. Se bem que a prática de optar pela quantidade, em detrimento da qualidade, é hoje quase que uma burra unanimidade na política de filiação dos partidos políticos brasileiros.
Ineficiência crônica
A primeira razão dessa ineficiência reside na omissão reincidente em não realizar uma reforma que corrija as deficiências do sistema político brasileiro. Até porque o casuísmo é uma marca histórica brasileira quando se trata de alterações no sistema político-eleitoral. Em geral, elas são pontuais e oportunistas. É a conveniência a serviço do conservadorismo. Essa fragilidade institucional, inclusive, foi utilizada no período pré-1964 para adequar a legislação vigente à crise do momento, como no caso da implantação do parlamentarismo após a renúncia do presidente Jânio Quadros.
Durante os vinte anos do regime militar, o governo e os seus aliados no Congresso Nacional mudavam as regras sempre que as urnas davam um passo maior do que queriam os poderosos da ocasião. E assim foram criadas a figura do senador biônico, as sublegendas e tantos outros artifícios que visavam exclusivamente reduzir pela lei os espaços que a oposição conquistava nas urnas.
A transição democrática brasileira tem características muito peculiares, pois a oposição recorreu ao próprio instrumento institucional criado pela ditadura (o Colégio Eleitoral) para chegar ao poder. A ausência de uma ruptura violenta trouxe vantagens, pois outros países da própria América Latina tiveram de ir ao confronto nas ruas para encerrar seus regimes de exceção.
Por outro lado, muitos dos vícios – alguns que vinham de antes do golpe – permaneceram intocáveis. Problemas que não foram resolvidos pela Constituição de 1988, o que de certa forma comprova a dificuldade que o Congresso tem para construir uma maioria parlamentar que aprove medidas radicais, que promovam um “corte” na própria carne da política.
Provavelmente (e esta é apenas uma conjectura), o impasse entre os defensores do presidencialismo e do parlamentarismo nos tenha legado uma herança equivocada, na qual o parlamento se apresenta como forte, mas depende enormemente da estrutura do Executivo para – usando uma linguagem rasteira – “fazer política”.
Na práxis política atual não há respeito pela História; não há respeito pelo que veio antes; não há respeito pelo que foi herdado de bom dos antecessores. É o que existe de mais velho e retrógrado, travestido de novidade. É a preferência pelo jogo do mais esperto, no qual a trapaça é a única forma de vencer. Assina-se embaixo da máxima nazista de que uma mentira repetida mil vezes se transforma em verdade. Até parece que perdemos a capacidade de nos envergonhar.
Um país não chegará ao desenvolvimento econômico e social apenas com grandes pretensões, que marcam nossa eterna promessa de que o Brasil é o país do futuro. O que precisamos é de grandes planos.
Oportunidades perdidas
Falam que a Constituição de 1988 transformou o Brasil num país de presidencialismo parlamentar, por causa da influência de muitos constituintes parlamentaristas. Tolice. Vivemos sob o regime de um presidencialismo quase imperial. E ainda existem aqueles com coragem – ou seria cinismo? – de defender um terceiro mandato para o presidente da República. Por que não um quarto, um quinto mandato? Por que não resgatamos a Monarquia?
A precariedade da relação entre os partidos políticos e os Poderes da República contribuiu decisivamente para os escândalos que levaram ao impeachment do presidente Fernando Collor de Mello e à reformulação da Comissão Mista do Orçamento – ambos ocorridos no início da década de 1990. Lamentavelmente não serviram como um alerta suficiente para a implantação de reformas profundas e comprometidas com uma agenda mudancista.
Esses dois episódios emblemáticos deveriam ter sido diagnosticados como sintomas de algo mais sério, que crescia no seio da jovem democracia brasileira. O Congresso Nacional precisava urgentemente resgatar as bandeiras políticas que haviam levado milhões de brasileiros às ruas na campanha pelas eleições diretas, uma década antes.
Talvez pareça exagero afirmar isso hoje, mas acredito, retrospectivamente, que um episódio colaborou para a ausência da maioria necessária à aprovação de uma reforma política: a negativa do Partido dos Trabalhadores em participar do governo Itamar Franco, após o impeachment.
Naquela ocasião, o PT acreditava – e as pesquisas mostravam isso – que a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva seria imbatível nas eleições presidenciais de 1994. Um sinal de que essa união de opostos era viável veio no plebiscito de 1993, quando os brasileiros foram às urnas para decidir entre República e Monarquia; entre presidencialismo e parlamentarismo. O plebiscito colocou no mesmo palanque lideranças políticas de campos ideológicos adversários, lutando por um mesmo objetivo. Mantidos a República e o presidencialismo, porém, voltou tudo ao normal.
Na hipótese de o PT ter aceitado compor o governo Itamar, a história brasileira tomaria um rumo completamente diferente, talvez abrindo espaço para aprovar uma reforma que corrigisse distorções como a infidelidade partidária, as legendas de aluguel, as coligações nas eleições proporcionais e implantasse o financiamento público das campanhas. O que falou mais alto foi a agenda eleitoral. Mas no caminho dos planos petistas havia o Plano Real, que calçou a trajetória do então ministro Fernando Henrique Cardoso na direção do Palácio do Planalto.
Enquanto o PT adiava sua chegada à Presidência da República, a reforma política se tornava um “morto-vivo” institucional que, de vez em quando, voltava para assombrar o Congresso Nacional.
Reeleição em pauta
A chegada do PSDB à Presidência da República também representou um alento momentâneo à aprovação da reforma política, pois o partido tinha um perfil parlamentarista, o que indicava uma maior preocupação com o fortalecimento da estrutura partidária e do sistema eleitoral. Mas a agenda do governo FHC era econômica, com o aprofundamento das medidas para estabilizar a moeda e para reformar o Estado brasileiro.
A agenda política só veio surgir na segunda metade do primeiro mandato tucano, com a discussão e posterior aprovação da emenda constitucional que permite a reeleição dos detentores de mandatos executivos: presidente da República, governadores e prefeitos. Mais uma oportunidade era jogada fora.
Nunca fui simpático à reeleição e, diante da inevitabilidade da sua aprovação, preferia que fosse implantada por etapas: começando pela Presidência da República para só depois chegar aos governos estaduais e às prefeituras.
O fato concreto é que ela está aí, funcionando há onze anos e seis eleições. Mesmo sendo pouco tempo para uma avaliação racional, já surgem defensores da sua extinção. Trata-se de uma análise precoce e precária. Melhor do que acabar com a reeleição é aprovar medidas que regulamentem esse instrumento, dificultando o abuso de poder e corrigindo eventuais falhas que passaram incólumes pelo debate acirrado que antecedeu sua aprovação pelo Congresso Nacional.
No segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, o foco continuou sendo a economia. Não havia espaço para a importante agenda da reforma política, e os efeitos nocivos das distorções do sistema político brasileiro ficariam ainda mais evidentes no mandato seguinte, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Não votei em Lula em 2002. Estive com a candidatura de José Serra (PSDB), no primeiro e no segundo turnos. Apesar disso, como a maioria dos brasileiros, acreditava que o Partido dos Trabalhadores aproveitaria sua chegada ao poder para fazer a reforma política, de preferência logo no início do mandato de Lula. Esperança vã.
Hora certa da reforma
A iniciativa de uma reforma política não é de responsabilidade do Executivo. Ela deveria partir do próprio Congresso Nacional, pois é no parlamento que os partidos se encontram melhor representados. É no Congresso Nacional que as virtudes e os defeitos do sistema se tornam evidentes. Mas sem o respaldo governamental é impossível aprovar uma alteração legal desse porte.
Infelizmente, no governo Lula os defeitos chegaram a um nível nunca antes visto na história deste país. E mais: não acredito que uma reforma política tenha sucesso em fim de mandato, como ocorre agora. Essa é uma missão para ser realizada em início de uma nova legislatura. Na quadra atual, é agenda para 2011 – com novo presidente da República, novos senadores e deputados.
O PT, apesar da retórica diluviana do presidente Lula, não inventou as irregularidades e nem a corrupção no Brasil. Mas o partido – por sua história e por sua postura antes de chegar ao poder – representava um alento para quem defendia o combate à corrupção e mudanças em práticas arraigadas.
Não deixa de ser emblemático que o primeiro grande escândalo político do governo Lula tenha sido o do “mensalão”, no qual se revelou, com riqueza de detalhes, que o governo remunerava mensalmente parlamentares que integravam a base aliada. Uma operação que envolvia empresas públicas e empresas privadas com negócios com o governo. Ironia da história: anos antes, Lula soltou a famosa frase afirmando que existiam “300 picaretas” no Congresso Nacional.
O que vimos a partir desse episódio foi a intelectualidade petista e as próprias lideranças do governo defenderem a teoria de que “os fins justificavam os meios” e de que “sempre foi assim”. Valia a pena repetir os erros do passado, contanto que o ex-metalúrgico permanecesse na Presidência da República. Contanto que a “companheirada” continuasse ampliando sua presença na máquina pública federal.
Esse raciocínio cínico foi extremamente pernicioso para a política brasileira. Se o PT – a UDN de “macacão”, como batizou Leonel Brizola – relativizou a ética e a moral, o que restava aos demais partidos, aos demais servidores públicos, em todos os níveis da administração pública brasileira? A correção cedeu seu lugar à esperteza.
Fragmentação avança
Nas últimas três eleições nacionais (2006, 2002 e 1998) ficou evidente que a fragmentação partidária avançou, pouco a pouco, superando inclusive a “inflação” de legendas do final da década de 1980. O único aspecto que mudou para menos foi o número de partidos que apresentaram candidato à Presidência da República. Foram 22 em 1989 e apenas 7 em 2006.
Hoje existem 27 partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral. Destes, 21 conseguiram cadeiras na Câmara dos Deputados no mesmo ano em que Lula conquistou a sua reeleição à Presidência da República. Curiosamente, também foi em 2006 que o PT viu encolher sua bancada de deputados federais, em vez de crescer, como vinha ocorrendo desde 1982.
Uma análise superficial – como tantas que são feitas hoje em dia – apontaria para um cenário positivo, pois o Congresso Nacional seria representativo da “infinita diversidade” da política brasileira. Oponho-me a esse raciocínio simplista. O episódio do “mensalão”, os escândalos envolvendo fraudes na liberação de recursos do Orçamento Geral da União (OGU) e a luta escancarada por cargos em estatais e nos ministérios expõem a face perversa de um sistema que joga o exercício da política na vala comum daqueles que querem apenas fazer negócios e veem os partidos como meros instrumentos para seus planos.
Não tenho dúvida de que a fragmentação partidária representa hoje o maior obstáculo à reforma política, principalmente quando muitas das legendas existentes integram a base de apoio governista. Medidas como o fim das coligações proporcionais, a implantação da cláusula de barreira e o voto distrital misto são interpretados pelos pequenos partidos como medidas que objetivam a sua extinção.
No início da década de 1980, estive em visita oficial à Alemanha – ainda na época chamada de Alemanha Ocidental, devido à divisão imposta pela Guerra Fria. Fui acompanhar as eleições e foi justamente naquela disputa que o Partido Verde obteve sua primeira cadeira no parlamento alemão. Hoje, quase trinta anos depois, o PV exerce um papel decisivo na política alemã. Cito esse exemplo para mostrar que a cláusula de desempenho não é um impedimento ao surgimento de novos partidos, mas uma regra necessária à organização do sistema político brasileiro.
Outra questão relacionada ao sistema eleitoral alemão diz respeito ao voto em lista, pois a Alemanha utiliza o sistema eleitoral distrital misto de correção. O sistema alemão, de acordo com professor Jairo Nicolau, do Iuperj, possibilita ao eleitor votar num candidato no distrito e também num partido para efeito da lista.
Seguindo esse sistema, o PV estabeleceu uma regra ousada, pela qual os primeiros lugares em suas listas eleitorais são reservados às mulheres. Isso permitiu que 58,2% dos deputados dos verdes sejam mulheres. É um percentual acima da média do parlamento alemão (32,2%) e muito superior à média do parlamento da França, por exemplo (12,3%). No Brasil, o número de deputadas federais em 2006 não atingiu 9% das cadeiras da Câmara.
O problema não é o voto em lista, bastante criticado nos últimos meses, mas a forma pela qual os partidos são criados e administrados no Brasil. E esses costumes só mudarão com a determinação daqueles que consideram o mandato político uma honra, um privilégio e não uma vaidade pessoal ou um instrumento para obter ganhos pecuniários.
A fragmentação brasileira criou uma outra distorção ainda mais permissiva e que compromete a relação institucional entre o Executivo e o Legislativo: o surgimento de “bancadas piratas”, que perpassam os partidos e não seguem a orientação partidária, mas o que manda é o “chefe” do grupo. O atual governo não inventou essa prática, mas a forma como montou sua base e distribuiu espaços de poder contribuiu para piorar o que já era ruim.
Papel da oposição
Com um desempenho do governo tão bisonho como esse, o papel da oposição ganha uma importância e uma dimensão só vistas na década de 1960 e 1970 no enfrentamento com a ditadura militar. Não existe respeito pelo contraditório por parte do governo. Essa busca incessante da unanimidade, quem sabe contaminada pelas pesquisas que mostram a aprovação popular, cria um paradoxo: o presidente da República é altamente popular, mas não consegue resistir às pressões fisiológicas de parte da sua gigantesca base parlamentar.
Cabe à oposição deixar claro que democracia e personalismo não combinam. Nunca combinaram. Aí está a História da Humanidade repleta de exemplos de que o messianismo provoca efeitos devastadores sobre o desenvolvimento coletivo de uma sociedade. Aqui vale recorrer a Bobbio:
A soberania popular não pode se basear na mera autoridade do número: a maioria é tão arbitrária quanto o arbítrio individual. A soberania não pode ser senão a soberania do direito, de uma ordem jurídica racionalmente organizada, mediando entre liberdade e organização, entre espontaneidade social e poder.
Em O Futuro da Democracia, ao analisar as diferenças entre democracia representativa e democracia direta, Bobbio faz uma crítica a alguns vícios do parlamentarismo na Itália.
Uma das chagas do nosso parlamentarismo, tantas vezes denunciada e tão pouco medicada, é a proliferação das assim chamadas “leizinhas” (leggine, no original) que são precisamente o efeito da predominância de interesses particulares, de grupo, de categoria, no pior sentido da palavra, corporativos. E se trata exatamente de uma chaga e não de um efeito benéfico, exatamente de um dos aspectos degenerativos dos parlamentos, que deveriam ser corrigidos e não agravados.
O diagnóstico de Bobbio poderia também valer para a atual situação do Congresso Nacional brasileiro, povoado por interesses menores e sem conseguir impor uma agenda positiva.
No caso específico dos interesses de grupo, seria essencial a regulamentação da atividade de lobista, como existe em outros países. Trata-se de uma luta de quase vinte anos do senador Marco Maciel, do DEM de Pernambuco. Até hoje o projeto se encontra parado na Câmara dos Deputados.
De acordo com a iniciativa do senador pernambucano, as pessoas físicas e jurídicas que desejarem influenciar o processo legislativo precisarão ter registros formais na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. As Mesas Diretoras das duas Casas serão responsáveis pela definição da forma e dos limites do trabalho dos lobistas. Esses profissionais deverão ser identificados por meio de documentos, além de registrarem seus serviços e as matérias nas quais vão atuar. Contra ou a favor.
Hoje, por meios tortos, o lobby termina sendo exercido de forma obscura – até por parlamentares que perderam completamente a noção do seu papel representativo. A regulamentação do lobby é uma daquelas medidas essenciais para o bom desempenho da atividade parlamentar, especialmente por ampliar a transparência sobre o que ocorre no âmbito do Congresso Nacional.
A reforma mínima
O comportamento permissivo em episódios recentes contribuiu para o desgaste da política no Brasil, pois passa a imagem de que tudo se acerta nos bastidores, de que tudo “termina em pizza”. O debate político é confundido com a mera briga por espaços de poder no âmbito governamental.
O sistema político brasileiro está submetido à degradação e à execração públicas. A desqualificação moral dos partidos políticos ameaça o próprio equilíbrio entre os poderes da República – essencial para a democracia.
Diante desse cenário, uma reforma política séria deve incluir e aprovar pelo menos quatro pontos: o financiamento público das campanhas eleitorais; a fidelidade partidária; o fim das coligações nas eleições proporcionais e a implantação da cláusula de desempenho.
O financiamento público de campanha é indispensável para evitar a interferência cada vez maior do poder econômico, que corrompe o processo eleitoral.
A proposta de reforma política debatida há alguns anos – que chegou a ser aprovada por uma comissão mista do Congresso Nacional – previa o financiamento público com um custo para a campanha eleitoral de sete reais por eleitor. Hoje, isso representaria um custo de aproximadamente R$ 914 milhões para uma eleição nacional, tomando como referência um eleitorado de 130 milhões de pessoas.
De acordo com números do Tribunal Superior Eleitoral, a campanha do ano passado custou cerca de R$ 2,43 bilhões. A imprensa, por sua vez, calcula que a despesa real representou cerca de cinco vezes esse valor, chegando à cifra de R$ 12,15 bilhões – mais de doze vezes o valor estabelecido no projeto da reforma política.
O financiamento público sozinho não resolve o problema da corrupção e do desvio de recursos públicos para campanhas eleitorais. Problemas semelhantes aos brasileiros ocorrem por todo o mundo, inclusive em nações do mundo desenvolvido.
Outro fator importante é que, isoladamente, nenhuma dessas propostas dará resultados satisfatórios. Por essa razão, é questionável a eficiência da chamada “reforma fatiada”.
A fidelidade partidária é o melhor instrumento para impedir o degradante festival de adesões fisiológicas. Não condeno quem esteja insatisfeito em um lugar e queira ir para outro. Mas, no caso dos partidos políticos, isso deve ser a exceção e não a regra, como tem sido há alguns anos.
De todas as medidas de uma reforma política séria e objetiva, talvez uma única obtivesse resultado efetivo isoladamente. Trata-se da proibição de coligações nas eleições proporcionais. Essas coligações são uma deformidade e uma imoralidade existentes apenas no Brasil, onde se vota em José e se elege João.
No começo do meu mandato, em 2007, apresentei uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) com o objetivo de acabar com essa excrescência.
Se o Congresso Nacional fala de reforma da Previdência, todos se interessam. O Senado e a Câmara dos Deputados recebem milhares de e-mails, milhares de ligações telefônicas. O mesmo se aplica às reformas trabalhista e tributária. Mas a reforma política é vista pela opinião pública como algo de interesse exclusivo dos políticos.
O cidadão não compreende que a reforma política é a “mãe” de todas as reformas, justamente por assegurar o aprimoramento das instituições responsáveis pelo encaminhamento de todas elas. A reforma política, ao contrário do que imagina um desavisado, não interessa apenas aos parlamentares, aos dirigentes partidários. Uma reforma política séria estabelecerá novos instrumentos para que o eleitor-contribuinte-cidadão amplie a interferência sobre seus representantes.
Outro espaço para a degradação do exercício da política reside no Orçamento Geral da União. Sua elaboração, aprovação e execução precisam passar por uma profunda e séria reformulação, que estabeleça obrigações severas para o Poder Executivo.
O parlamento não pode continuar sendo um mero intermediário de verbas públicas, com emendas liberadas às vésperas das votações que interessam ao governo.
As distorções começam na elaboração do orçamento, permanecem na sua aprovação e atingem o auge na hora da liberação dos recursos, quando o dinheiro, que deveria ir para obras prioritárias nos municípios, escorre pelos esgotos da corrupção e dos desvios, muitas vezes com a participação dos ordenadores de despesas do Poder Executivo, indicados pelos partidos políticos.
Resgate possível
A impunidade é a consequência mais nefasta do quadro de degradação da política e dos nossos compromissos políticos, sociais e éticos. Apesar das promessas reiteradas em cada discurso de posse, a cultura da impunidade não apenas permanece entre nós, mas se estabelece em bases sólidas num terreno cada vez mais propício. A impunidade é um cancro que precisa ser extirpado.
Em outros países – e temos diversos exemplos recentes – uma mera suspeita é suficiente para que haja uma renúncia, para que alguém rejeite uma colocação pública. E essa iniciativa não representa uma confissão de culpa, como alguns poderiam dizer. Significa apenas a sensatez de separar o espaço público das pendências privadas. No Brasil dos dias atuais, a certeza da impunidade dá uma força tremenda a quem não age com lisura e correção.
A eleição de Barack Obama nos Estados Unidos mostrou que é possível desmontar equívocos construídos num passado recente. Como diziam seus defensores, na campanha eleitoral do ano passado: sim, nós podemos. No Brasil, as personalidades políticas têm um papel fundamental para definir o país que queremos. Daí ser essencial o resgate do exercício da política como instrumento de vanguarda e de mudança.
Até porque os recentes escândalos envolvendo as despesas do Congresso Nacional para manutenção dos mandatos de senadores e deputados tiveram um efeito devastador sobre as duas Casas. Muitos parlamentares passaram a se questionar sobre a viabilidade de continuar na vida pública – pelo menos aqueles que enxergam o exercício da política como instrumento de transformação.
Quando a sociedade perde as referências na hora de diferenciar os que vivem Da política daqueles que vivem PARA a política, alguma coisa precisa ser feita urgentemente.
Para o bem e para o mal, os instrumentos viabilizados pela tecnologia da informação já exercem um enorme poder de influência sobre o acompanhamento das pautas do Congresso Nacional. Um discurso transmitido pela tv Senado (inclusive por meio da internet) tem repercussão imediata, com eleitores se pronunciando por meio de telefone e e-mails.
Isso não acontecia no passado recente. Um pronunciamento repercutia na “Hora do Brasil” ou na edição dos jornais do dia seguinte. O impacto agora é direto. São pessoas que, do conforto da sua sala, do seu quarto, acompanham em tempo real o que ocorre no Congresso Nacional e têm a possibilidade de interferir diretamente no processo.
Porém, os episódios recentes demonstraram que mesmo esse novo meio de pressão tem limites, pois a opinião pública vale mais para uns do que para outros.
Obviedade que assusta
Há quatro meses, a revista Veja publicou nas suas “páginas amarelas” uma entrevista na qual falei da degradação e da mediocridade que hoje pautam a política em Brasília. Minhas palavras tiveram um impacto surpreendente na opinião pública. Em cerca de quatro mil mensagens que recebi sobre o tema, raras foram aquelas com críticas. A entrevista serviu para quebrar um certo “consenso do silêncio”. Ainda assim, uma parcela se insurgiu contra a entrevista. Desafiaram-me a apresentar nomes, queriam “casos concretos”. Como se isso fosse necessário.
A verdade é sempre inconveniente para quem vive na omissão. Não revelei novidades. Constatei o óbvio. Apenas isso. Fiz uma constatação política que deveria implicar ações corretivas. Uma correção de rumos e de práticas. Na semana seguinte à publicação de Veja pipocaram denúncias sobre a luta política para mudar a direção de fundos de pensão de estatais federais. Estavam ali os nomes e os “casos exemplares” para quem quisesse ver.
O exercício da política não deve ser confundido com um negócio, com uma transação, na qual o que importa é o lucro a ser obtido. Política não deve ser um fim em si mesmo. O seu exercício precisa transcender; precisa almejar algo mais que apenas a conquista do poder. Precisa representar o caminho para mudar o estado de coisas. O poder pelo poder leva ao quadro político degenerado que hoje vemos no nosso país, no qual a esperteza é mais importante do que a inteligência e a correção ética.
Se deputados federais e senadores responsáveis não cumprirem seu papel, serão completamente eclipsados por aqueles que preferem se esconder nas sombras ou estão “se lixando” para o que acha ou deixa de achar a opinião pública.
Qual é a missão do parlamento brasileiro? Aceitar as imposições do presidente da República por meio das medidas provisórias? Aceitar o papel menor de mero atravessador de verbas públicas, que deveriam ser aplicadas sem necessidade de uma “intermediação” política? Passar quatro ou oito anos pensando em como pagará as contas da próxima campanha de renovação do mandato? Não foi para isso que lutamos pela volta das liberdades democráticas, pelo fim do bipartidarismo autoritário, pela independência entre os Poderes.
Mudança pela base
Não será apenas a aprovação de uma nova legislação política e eleitoral que vai mudar práticas. É fundamental outra reforma, esta de ordem moral, de conteúdo ético. E ela começa justamente na Educação. As mudanças na educação e na política têm algo em comum: levam décadas para se consolidar. Mas elas precisam começar em algum momento.
A nossa política educacional, por exemplo, ainda não olhou com a devida atenção para o ensino fundamental. Os olhos, equivocadamente, se direcionam, no máximo, para o ensino médio, enquanto a base é esquecida. O ensino superior é que movimenta o grande debate. Nossa juventude, na educação, só merece atenção quando atinge a idade para fazer o ENEM.
Se o Brasil continuar ignorando a prioridade necessária para as nossas crianças, estaremos comprometendo o maior patrimônio que o país tem para mudar sua realidade. A educação fundamental é a base para o desenvolvimento, para a correção de rumos.
O conjunto de políticas sociais adotado há mais de uma década, com o objetivo de compensar a absurda concentração de renda brasileira, contribuiu para ampliar o mercado de consumo no país. Mas foi insuficiente para assegurar igualdade de oportunidades. Foi insuficiente para mudar a realidade local. Isso só é possível por meio de uma educação pública de qualidade, num esforço que puxe para cima todos os indicadores educacionais – inclusive do setor privado.
O debate sobre a adoção de cotas raciais nas universidades públicas encobre essa omissão. O problema não está em assegurar cadeira nas universidades. A suprema injustiça ocorre lá atrás, na infância, quando crianças e jovens das classes mais pobres não têm acesso a um ensino de qualidade. Assegurar cotas é o mesmo que lavar as mãos com relação à origem do problema. Fica bem na foto defender as cotas, pode até gerar empatia, mas não vai à raiz do problema.
E assim vamos criando uma geração completamente apática para a política. É mais assustador que essa apatia seja até estimulada por um governo que se apresenta como de esquerda, que se diz progressista. Os chamados movimentos sociais, entre eles os que deveriam representar os estudantes, se transformaram em braços políticos do governo, repetindo a trajetória do caudilhismo na América Latina.
Os sindicatos e as organizações não-governamentais, por exemplo, que deveriam ser a vanguarda da sociedade, se transformaram em meros instrumentos da manutenção do statu quo. Tudo muito bem azeitado pelo repasse de recursos públicos, seja por meio de Ministérios, seja por empresas estatais.
Tenho percebido que uma parcela da juventude não está satisfeita com o rumo que a política estudantil seguiu nos últimos anos, ao aderir ao governo e abdicar da independência que marcou a postura desse segmento no passado recente. Esses jovens têm uma visão diferente do futuro do Brasil. Perceberam na batalha para conquistar um emprego e na disputa por uma vaga na universidade que o “país do futuro” não será construído sem a política.
O Brasil só se tornará viável como nação desenvolvida quando os seus partidos políticos e seus representantes no Congresso Nacional estiverem à altura das áreas mais dinâmicas da sociedade. •
Jarbas Vasconcelos é senador pelo PMDB de Pernambuco. Foi deputado estadual (1971-1974), deputado federal (1975-1978 e 1983-1986), prefeito do Recife por duas vezes (1986-1988 e 1993-1996) e governador de Pernambuco reeleito (1999-2006).
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