DENIS ROSENFIELD
O GLOBO
No contexto de julgamento do mensalão e das eleições municipais, dois fatos da maior importância passaram despercebidos. Um, a suspensão indefinida da Portaria 303 da AGU, que, finalmente, regulamentava as condicionantes do julgamento da Raposa Serra do Sol. A outra é uma decisão do ministro Marco Aurélio, relativa a uma área determinada, no município de Lábrea, no Amazonas, tornando válidas as condicionantes da Raposa Serra do Sol para esse e outros casos.
A portaria da AGU regulamentava as condicionantes do Supremo. No dizer do próprio ministro Luiz Adams quando de sua promulgação, ela preenchia uma lacuna importante, trazendo segurança jurídica para o país. No entanto, as pressões dos movimentos sociais, da Igreja, da Funai, do Ministério Público Federal e de certos setores do PT foram de tal monta que o governo se viu forçado a recuar.
O recuo não deixa, porém, de ser ambíguo. E isso porque a portaria que revogou a portaria 303 declara explicitamente que ela voltará a valer tão logo o Supremo julgue os embargos. De um lado, o governo reafirma a validade das condicionantes; de outro lado, suspende a sua aplicação sine die.
Note-se que a regulamentação do acórdão do STF relativo ao julgamento da Raposa Serra do Sol não foi até hoje feita, passados longos 5 anos de insegurança. Certamente, o Supremo não julgará os embargos ainda este ano, postergando tudo para o ano que vem, se é que essa questão voltará a entrar em pauta no próximo ano. Nesse meio tempo, a Funai está acelerando a identificação e demarcação de terras indígenas, como se a nossa Suprema Corte nada tivesse decidido.
No entanto, os movimentos sociais não estão contentes, com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o MST e várias ONGs nacionais e internacionais apregoando que a portaria seja simplesmente revogada, não tendo mais nenhuma validade. Isso significa dizer que o acórdão do Supremo nada vale!
Convém assinalar que a regulamentação das condicionantes do Supremo não atende somente aos problemas do agronegócio, mas também aos interesses do governo. O agronegócio convive há muito com a insegurança jurídica relativa às questões indígenas. Os interesses do governo estão sendo, por seu lado, fortemente atingidos, pois as ações da Funai contrariam os projetos governamentais de construções de hidrelétricas na região Norte do país.
Pode-se, nesse sentido, dizer que a suspensão da portaria contraria o próprio governo, uma espécie de tiro no próprio pé, pois o setor energético será um dos mais atingidos a curto prazo. As contradições internas ao governo terminam por inviabilizar as suas próprias ações. A polêmica envolvendo a construção de Belo Monte é apenas a parte mais visível desse iceberg.
Além do setor energético e do agronegócio, convém assinalar que em muitas áreas do país são pequenos e médios empreendedores rurais que estão sendo ameaçados. Na grande maioria dos casos, são pessoas que possuem títulos de propriedade ou posse há muito tempo, em áreas que não eram consideradas indígenas quando da promulgação da Constituição de 1988.
Com a validação da portaria da AGU e o respeito às decisões do STF, o caminho estaria aberto para que uma solução definitiva e equitativa para todos fosse tomada, contemplando os indígenas, e os não índios.
Uma solução equitativa consistiria em comprar terras para populações indígenas que eventualmente necessitem, por exemplo, por crescimento demográfico em algumas regiões do país.
Outros projetos governamentais e do setor privado são igualmente atingidos. Todo o processo de construção de estradas e de ferrovias em áreas que são supostamente indígenas segundo os movimentos sociais, as ONGs nacionais e internacionais e a Funai deveriam ser suspensos, à espera de outra decisão do STF, como se isso fosse ainda necessário.
Do ponto de vista da soberania nacional há problemas de monta envolvidos, pois muitas das terras indígenas identificadas, demarcadas e homologadas são ricas em minérios. A Funai e essas ONGs procuram fazer com que mesmo o Exército não entre nessas áreas, com problemas especialmente graves nas faixas de fronteira.
Por outro lado, o ministro Marco Aurélio, em 21 de setembro de 2012, a partir de uma ação impetrada pelo advogado Rudy Ferraz, em nome do município de Lábrea, Amazonas, deferiu uma liminar vetando a ampliação da terra indígena em questão, além de considerar que o desrespeito da Funai às condicionantes do Supremo também atingia o direito de o município ser consultado em todas as fases do processo. O ministro Marco Aurélio estabeleceu um limite bastante claro às ações da Funai e do Ministério Público abrindo a via para que outros municípios, empresas e empreendedores rurais sigam o mesmo caminho.
No caso do julgamento em questão, para se ter uma ideia do caráter arbitrário da Funai e do Ministério Público Federal, já se tratava da terceira ampliação dessa terra indígena, em flagrante desrespeito à decisão do STF. Com a ampliação referida, a terra indígena Kaxarari compreenderia 145.889 hectares para 240 índios!
O ministro Marco Aurélio, em sua sentença, chega a mencionar que a Funai, por suas ações, produz "insegurança jurídica", criando um "potencial risco de conflito fundiário entre índios e produtores rurais", com "inegável prejuízo aos investimentos em atividades produtivas praticadas há décadas, à ordem do território e às finanças do ente federativo reclamante". E tudo o que o país menos precisa é de um acirramento de conflitos.
A solução está à vista, porém tudo indica que os criadores de problemas vivem precisamente desses. A corajosa atitude do ministro Marco Aurélio baliza com toda a clareza a necessidade de que a insegurança jurídica reinante chegue ao fim, no respeito à ordem constitucional, às decisões do próprio STF, pois, só assim, uma decisão equitativa que contemple todas as partes poderá ser tomada.
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