Vale a pena conferir.
O alheamento do eleitor
Maria Cristina Fernandes
Valor Econômico
As disputas municipais costumam envolver mais o eleitor do que as presidenciais. Um indicador disso é que a abstenção, os votos em branco e nulos na escolha de prefeitos é quase sempre mais baixa do que nas eleições gerais.
Isso talvez ocorra porque a disputa municipal é menos ideologizada que a presidencial. Julgar o serviço de ônibus que se usa ou o posto de saúde que se frequenta requer menos mediações do que a avaliação de política econômica.
Levantamento do ValorData de todos os resultados eleitorais disponíveis no TSE mostra que nunca se produziu um primeiro turno municipal com tamanho grau de alheamento.
Abstenção, votos em branco e nulos têm motivos diversos. Onde o voto exige mais deslocamentos a abstenção costuma ser maior. Nos colégios eleitorais menos alfabetizados também se colhe um maior grau de votos nulos.
Daí porque nem todo eleitor alheio é alienado ou rebelado. Num país em que o voto é obrigatório, a abstenção justificada, os votos em branco e nulos podem ser uma forma de protesto contra o sistema político, mas nem sempre o são.
Dois fatos, no entanto, favorecem a interpretação de que alheamento e desalento podem ter caminhado mais próximos este ano. O primeiro é que a Justiça eleitoral reportou o menor número de recursos das Forças Armadas requisitados para o transporte de eleitores. E creditou essa redução à melhoria na infraestrutura do país que teria facilitado o deslocamento.
O segundo dado que conspira em favor do desencanto eleitoral é que não há hecatombe no ensino público que justifique o aumento exponencial de votos nulos em algumas capitais.
Tomem-se, por exemplo, Goiânia e São Paulo, duas capitais mais diretamente envolvidas com os personagens dos escândalos que dominaram o noticiário no período eleitoral, a CPI do Cachoeira e o mensalão.
É de Goiás que se originam dois de seus pivôs, Carlinhos Cachoeira e Delúbio Soares. Em relação a 2004, última eleição antes de Cachoeira fazer o grampo que detonaria o mensalão, os votos nulos em Goiânia subiram 220%, e atingiram este ano o maior índice entre as capitais.
O prefeito petista de Goiânia foi reeleito com folga no primeiro turno derrotando o candidato do governador tucano, suspeito, na CPI, de relações com Cachoeira. Não foi apatia que se produziu por lá, mas o contrário. A abstenção foi a menor desde 2000 e uma das mais baixas entre as capitais. Os eleitores fizeram questão de votar e, em número significativo, anular sua escolha.
Em São Paulo, domicílio eleitoral de José Dirceu e José Genoino, personagens cuja exposição tem rivalizado com a dos candidatos, o aumento dos votos nulos em relação à disputa anterior ao mensalão foi de 67%. Ao contrário de Goiânia, registrou a maior taxa de abstenção desde 2000 e uma das maiores do país entre as capitais.
Se o segundo turno confirmar a dianteira de Fernando Haddad se dirá que o mensalão não terá tido impacto. De fato, a coincidência entre julgamento e eleições nas praças dos mensaleiros poderá não surtir o efeito que o procurador-geral da República um dia achou por bem vocalizar.
Eleitor usa voto para julgar a administração pública. A escandalogia da hora não demonstra força para mudar esta regra da democracia. Paulo Garcia é bem avaliado e, por isso, deve ter sido reeleito em Goiânia. Gilberto Kassab (PSD) é um administrador impopular e, por isso, seu candidato tem chances mais reduzidas em São Paulo.
As urnas, no entanto, vão além. Na disputa com a qual o eleitor parece ter mais intimidade, da última eleição pré-mensalão (2004) até hoje, cresceu em 27% o número de eleitores que deixam de votar, anulam ou deixam sua escolha em branco.
Ao proferirem votos com mudanças históricas na jurisprudência a maioria dos ministros se diz motivada pela busca de mais ética na política. O julgamento pode ter afetado o desempenho do PT mas não foi capaz de tirá-lo do clube exclusivo dos partidos que só crescem em número de votos e municípios governados.
A questão mais sensível que emergiu deste primeiro turno não foram os efeitos do julgamento sobre este ou aquele partido. O que a concomitância da escandalogia com as eleições parece ter produzido é o aumento do descrédito do eleitor no poder de seu voto.
A absolvição de Anthony Garotinho da acusação de compra de votos traz dúvidas sobre a permanência das mudanças na jurisprudência do Supremo. Uma busca na sede do PMDB em Campos na véspera da eleição encontrou R$ 318 mil reais em notas de R$ 50 além de uma lista de eleitores com respectivas seções e títulos eleitorais. A despeito de Garotinho ser o presidente do PMDB regional, seu enquadramento na teoria do domínio do fato foi rechaçado pelo Supremo.
O alheamento pode ser uma reação momentânea aos malfeitos de seus escolhidos. Vai que o sistema político se revigora com a perspectiva de depuração. O problema é se, passado o mensalão, se retomar a jurisprudência precedente.
No melhor das hipóteses, a pretendida depuração pode dar lugar ao alheamento eleitoral. Na pior, a uma política que se confunde cada vez mais como um espaço de justiçamento.
Em São Paulo, o voto majoritário rejeitou essa hipótese no segundo turno. Mas o proporcional, que antecipa tendências do eleitorado, abriu espaço na Câmara Municipal para dois ex-comandantes da Rota.
Maria Cristina Fernandes é editora de Política.
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