A pergunta teima em mexer com a consciência dos mais indignados: pode-se, afinal, esperar por um processo de depuração da vida parlamentar, após a hecatombe que assola a imagem do presidente do Senado e cujos respingos sujam a própria instituição? Ou será que a crise será inconsequente para mudanças prementes nos padrões funcionais e nos costumes parlamentares? A resposta, convenhamos, é complexa e, de pronto, esbarra na lição de Maquiavel: "Nada é mais difícil de executar, mais duvidoso de ter êxito ou mais perigoso de manejar do que dar início a uma nova ordem de coisas. Na verdade, o reformador tem inimigos em todos os que lucram com a velha ordem e apenas defensores tépidos nos que lucrariam com a nova ordem." Sejamos realistas. Há poucos reformadores nos conjuntos parlamentares e há muitos que lucram com a manutenção dos velhos sistemas. Entre os que apregoam mudanças, uns apontam para medidas pontuais e momentâneas, cujo escopo não abriga a matriz das mazelas, e outros há que nem sabem por onde se chega ao caminho das mudanças. Ademais, o afastamento - temporário ou definitivo - de José Sarney da presidência do Senado não constitui, por si só, indicação segura de que uma vida nova nasceria na Câmara Alta.
Sob esse feixe de hipóteses, três vertentes se apresentam como as mais prováveis na esfera das ocorrências futuras: a primeira é de que a atual crise será ultrapassada pela próxima; a segunda, ancorada ainda na banalização, mostra o brasileiro cada vez mais impermeável à barbárie da política; e a terceira, regada a esperança, põe fé na crença de que uma flor pode nascer no pântano. As duas primeiras vertentes são maléficas para o caráter nacional. Comparam-se às maldições de Sísifo e Mané. Basta estabelecer a relação entre elas e a crise política. Condenado a carregar uma pedra sobre os ombros e depositá-la no cume da montanha, o matreiro rei de Corinto jamais iria conseguir o feito. O castigo que os deuses lhe deram no Hades, o mundo dos mortos, era definitivo: recomeçar a tarefa todos os dias por toda a eternidade. De tanto fazer o esforço repetitivo, virou um Mané, aquele esforçado sujeito que, obcecado pela ideia de escapar do fundo do poço, onde caiu, tornou-se insensível a qualquer ajuda externa. Uma pessoa ouviu um barulho, aproximou-se do poço, jogou uma corda e gritou: "Pegue a corda e saia." Irritado, o bronco respondeu: "Não vê que estou trabalhando? Não quero sua ajuda."
O brasileiro tem um pouco de Sísifo e um pouco de Mané. Ao achar que a situação começa a melhorar - com a pedra chegando ao pico da montanha -, vê, de repente, a coisa degringolar. Terá de reiniciar a tarefa de subir com o pedaço de rocha. Um eterno retorno. A repetição do maçante exercício de expectativas frustradas brutaliza seus instintos. Torna-se, assim, impermeável aos eventos que ocorrem ao seu redor, mesmo os mais catastróficos. Vira catatônico. Essa é a carga psicológica que a crise deposita sobre a alma nacional. O ciclo de banalização de escândalos por que passa o País afeta a camada mais densa da sociedade: a confiança. Escorrendo pelo ralo, ela arrasta consigo a força da nacionalidade, o amor à Pátria, o sentimento de inclusão e de identificação com os símbolos nacionais, o orgulho de pertencimento a uma sociedade com padrões éticos e morais. Mas há quem distinga as luzes de um contraponto, um sinal de esperança. Nesse caso, a hipótese leva em conta o eco da tuba de ressonância da mídia. Todas as camadas - com acesso à TV e ao rádio - veem a lama que escorre da arquitetura política.
As conexões formam a química para a flor nascer no lamaçal. Os fios arrepiados do bigode do senador José Sarney afetam outras feições nos espaços nacionais. A gripe que assola a Câmara Alta pega de chofre os atores do palco político da Nação. Essa é a associação que se processa no sistema cognitivo da sociedade. A infalível interlocução das ruas e de parlatórios mais elevados propaga um sentimento, mesmo difuso, de mal-estar generalizado. Cristaliza-se a convicção de que a desobediência às leis e a infração a valores morais e princípios éticos nascem e se desenvolvem na roça dos próprios autores das leis. Tal contrassenso agita os ânimos dos espíritos mais indignados. E, assim, parcela ponderável da sociedade abre o bico em sinal de protesto e indignação. Críticas ácidas saem de esquadrões da classe média, cuja repulsa aos últimos acontecimentos no Senado emerge de forma contundente na mídia, bastando ver as cartas do Fórum dos Leitores deste jornal.
Portanto, da sensação de que está sempre vendo as mesmas coisas e da constatação de que os tonéis da corrupção estão locupletados o brasileiro extrai a argamassa para aumentar a sua descrença no sistema político. Dessa operação, por uma combinação de fatores - escândalos em profusão, repercussão na mídia, atores impunes, corporativismo -, desenvolve-se um mecanismo de repulsa e ações organizadas se expandem nas redes sociais, como demonstra o movimento "fora, Sarney", que agitou, na semana passada, os miniblogueiros do twitter. A deterioração do sistema político - que provoca incomensurável dano às próprias instituições - faz florescer ondas de indignação. Essa é a flor no pântano, cuja propagação obedece a um movimento centrífugo, do centro para as margens, ou seja, das classes médias para os habitantes da base da pirâmide.
Vale lembrar o preceito da ciência política pelo qual as grandes mudanças da História são produzidas quando os favorecidos e apaniguados do poder não têm a capacidade para transformá-lo em força, enquanto os que dispõem de pequeno poderio aproveitam essa capacidade ao máximo para convertê-la em força crescente. É o que estamos começando a ver por aqui. Se falta vontade do andar de cima, sobra revolta do andar debaixo. Como no jogo de xadrez, o peão pode ganhar força superior à do bispo.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação
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