ARNALDO JABOR
O Estado de S.Paulo
Muita gente chega para mim e diz: "Como é? Não vai fazer outro filme?" "Sei lá", respondo. E penso: "Que cinema? Comercial, metafísico, político, experimental? O quê?" Às vezes, me dá vontade de filmar alguma coisa tênue, poética, não mergulhada no labirinto de produção e distribuição. Nos anos 60, buscávamos um cinema essencial, o chamado "específico fílmico", que estaria talvez nos filmes de Eisenstein, ou em Murnau, ou em Dreyer, sei lá. Os cinéfilos pensavam: "Qual é a alma do cinema? O que é o cinema?" Isso me faz lembrar uma famosa frase do grande cineasta fundador Humberto Mauro que, aliás, já contei aqui nesta coluna. E repito.
Na verdade, tenho saudades do cinema, sim, justamente na época atual, em que as imagens inundam nossos olhos e ouvidos. Mas, tenho saudades de outro cinema, da fragilidade dos filmes antigos e da ideia do "objeto único" a que eles almejavam. Pouco antes de sua morte, conversei com Louis Malle sobre isso, no Rio - falamos do sonho, da utopia dos anos 60, alimentada pelo Cahiers du Cinéma, pelos círculos de fumaça dos "Gitanes" sem filtro, saudades do frisson culto das cinematecas.
Atualmente, a 'cinefilia' soa quase como um vício sexual; talvez tenha sido. Há um mundo secreto, próprio do cinema, que só alguns ainda conhecem. Hoje o cinema é nu. Está exposto nas lojas, feiras e bancas de jornais, está nos hotéis, na ponta dos dedos dos insones, está nas TVs, está rodando bolsinha nas ruas. Mas, se eu reclamo desta profusão, dizem: "Ah, qual é a tua, cara? Isso é bom para o cinema, aumenta a difusão no mercado, etc. e tal.!" Talvez, talvez, mas tenho saudades da sala escura, do cinema segredo, do cinema dos pobres tímidos e solitários, do cinema como realidade alternativa que analisávamos noite adentro nos bares. Como era bom esperar um filme do Fellini, e o novo Antonioni, e o novo Godard... Não chego a ser um cinéfilo puro. Falta-me o gosto arquivista, o detalhe das fichas técnicas remotas, o mundo das fofocas de Hollywood. Mas tive e tenho amigos que me calam de respeito. Cinéfilo era, por exemplo, o Manuel Puig, o escritor e roteirista argentino que morou no Rio. Ele sabia tudo de qualquer filme. Outro dia, li um artigo sobre os últimos dias de Puig em Cuernavaca, no México. O relato era uma cena digna dos melodramas B que ele amava. Em sua vida, Puig tinha adotado dois "gays" jovens que ele chamava de suas "filhas". Uma delas era Yasmin, "filha" dele com o Ali Khan -, pois Puig brincava com a fantasia de ser a Rita Hayworth; a outra, (esqueci o nome) era "filha" dele (dela) com Orson Welles.
Pois bem, uma noite, velando por sua agonia, à beira do leito do hospital, a "Yasmin" achou que Puig já estava em coma. Mas, na esperança de uma melhora, resolveu testar os sinais vitais de sua "mãe". Segredou-lhe: "Mamãe... ontem eu vi Stella Dallas do King Vidor na TV... chorei tanto..." Eis que a "mãe" Puig balbuciou-lhe do leito: "É... a Barbara Stanwyck está ótima... mas o John Boles nunca me emocionou muito." Yasmin, a bichinha cinéfila, caiu em prantos e ligou eufórica para a "irmã": "Mamãe está melhorando!"
Nesta época, o cinema ainda tinha a tal "alma" que hoje desapareceu nos supermercados e videoclubes. Por isso, me lembrei do Humberto Mauro, que conheci já velhinho. Quando ele fazia seus filmes dos anos 20/30 nos fundos de quintal em Cataguazes e, depois, na Cinédia, todo amigo que ele encontrava na rua dizia para ele: "Humberto, meu querido, você precisa ir no meu sítio filmar a cachoeira que tenho lá! Você vai ver que cachoeira!" E o Humberto Mauro ficava com aquilo na cabeça: "Por que querem que eu filme cachoeiras?" Toda hora era isso: "Rapaz, eu vi uma cachoeira incrível pra você filmar num lugar assim, assim!" Humberto Mauro não entendia por quê. Um dia, ele deu uma palestra num cineclube do interior quando, na volta, já na estação, atrasado para pegar o trem, um dos garotos agarrou-o pelo paletó e suplicou-lhe que decifrasse o grande enigma: "Seu Mauro, afinal de contas, diga, qual é a 'essência', a 'alma' do cinema?" E o velho Mauro, em meio à fumaça da locomotiva, teve a grande intuição e deu-lhe a resposta inapelável: "Cinema, meu filho, é cachoeira! É cachoeira!" Esta frase ficou famosa entre os então "amantes da Sétima Arte". E ela me remete a outra definição, do filósofo Henri Bergson, a quem os irmãos Lumière mostraram sua recente invenção: "Creio que o cinematógrafo será útil para sabermos, no futuro, como os antigos se moviam..."
Talvez seja esta a "essência" do cinema: registrar a morte comendo a vida. Hollywood é um lancinante cemitério de estrelas. São beijos e olhos e corpos embalsamados no tempo da película. Fred Astaire dança no ar do nada, James Dean anunciava a morte em sua melancolia trágica. Sei como dói amar uma morta - eu que me apaixonei por Brigitte Helm em Metrópolis e amei as pernas perfeitas de Louise Brooks e Cid Charisse, na necrofilia da sala escura.
Por isso, a ideia de cachoeira é a metáfora melhor. Só o movimento tem de ser filmado. Só as cachoeiras devem ser retratadas na busca de alguma verdade. A grande desilusão do século 20 foi a tentativa de capturar a vida incessante em fórmulas que a esgotassem.
Não há uma realidade que se congele. Buscá-la, tanto no cinema quanto na ideologia e política, é fracasso certo.
Hoje, vemos que quanto mais aberta a máquina do mundo, mais vazia e misteriosa ela se torna. A fome de decifrá-la, digitalizá-la, descrevê-la não a condensa nem explica; ao contrario, dá em tragédia. Hoje, tanto no fanatismo do Oriente, quanto na monolítica massificação ocidental, vemos este perigo e desejo.
Na verdade, somos uma cachoeira olhando a outra e nossas ações têm este fracasso fundamental: por mais que olhemos no fundo das coisas, nunca veremos fim ou início. A cachoeira é a melhor definição do cinema ou da vida.
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