LUIZ SÉRGIO HENRIQUES
O Estado de S.Paulo
Há muitas décadas corria, na América do Norte, uma expressão que passava por espirituosa e pretendia sintetizar o contraste entre o protagonismo dos Estados Unidos e o caráter muito menor da presença canadense no mundo. O Canadá, segundo tal expressão, sofreria de um mal irreparável: sua geografia era tudo, a história, quase nada. Duplo preconceito, é evidente, contra a geografia e contra um país tão plural, diversificado e original quanto o poderoso vizinho mais ao sul.
De uma certa forma, padecemos de síndrome semelhante, que deu origem a inúmeras expressões de autoironia: o "transoceanismo" das nossas elites, inclusive culturais, deixava-nos de costas para a realidade americana, as ideias e as crenças nos vinham com o último paquete da França e nos custou muito adquirir paulatinamente, a partir da intensa modernização do País no século 20, a noção do nosso enraizamento numa realidade nova e desafiadora, bem distante, muitas vezes, do padrão metropolitano. Custou-nos descobrir, afinal, que geografia é destino - logo, é algo saturado de história, com seus dramas, encruzilhadas e até imprevistas acelerações.
É por isso que já agora nos atingem tão diretamente as peripécias individuais dos nossos vizinhos, as marchas e contramarchas do processo de unificação sul-americana: a necessária integração física do subcontinente, o aumento dos seus fluxos de comércio, a elaboração possível de um ponto de vista original sobre o mundo nesses países, em si tão variados e até estruturalmente desiguais, da América ibérica.
O fato é que por aqui convivem, numa assimetria evidente de tempos históricos, países que, como o Brasil, a Argentina ou o Chile, seria melhor considerar como membros plenos de um "extremo Ocidente", com sociedades e economias que se abriram, de um modo ou de outro, à participação dos setores subalternos; e países que, por sua vez, ainda vivem o acidentado processo de expansão das suas Repúblicas para além do restrito âmbito oligárquico. Um processo que, não raro, ocorre de modo autoritário e conduzido "pelo alto", como, aliás, se deu entre nós, nos anos 30 do século passado, e que agora parece reproduzir-se nos países da "revolução bolivariana", especialmente naquele que se singulariza por altíssimas reservas de petróleo e por uma agressiva liderança carismática, capaz de se arvorar, com alta dose de voluntarismo, em porta-bandeira de resistência ao neoliberalismo e de construção do socialismo no novo século.
Geografia e história se misturam, e não se trata de experimentos conduzidos in vitro ou, para citar expressão sugestiva, não são acontecimentos que possam transcorrer "num ringue convencionalmente regulado". Pode acontecer, por exemplo, que ações positivas de democratização social - ou que apontem nesse sentido - se entrelacem com visões esquemáticas da política e da sociedade. Nem tudo, em nuestra América, é Ocidente, ainda que extremo e periférico, razão pela qual, mesmo em ambientes de esquerda, pode predominar uma sociologia política rudimentar, que vê, de um lado, o presidente e o povo, em ligação imediata e sem restos, e, de outro, o conjunto das mediações sociais e instâncias organizativas, vistas como algo irreparavelmente oligárquico e elitista.
Nascem assim projetos autoritários de mudança social, que mais adiante vão cobrar seu preço - tal como aquele cobrado, no final do século 20, pelo esgotamento e pelo colapso das experiências igualmente autoritárias do antigo "socialismo real". As instituições clássicas da democracia política - o Parlamento, o Judiciário independente - são vistas como um obstáculo à mudança, e daí para sua descaracterização e manipulação, em contextos de autoritarismo eleitoralmente competitivo, vai um passo curto, que costuma atrofiar por décadas o florescimento de uma convivência civil livre e autônoma. A própria ideia de uma sociedade civil plural e articulada, como um valor em si mesmo, como espaço de luta muitas vezes áspera, mas também de permanente recriação de consenso e acordo, se perde em favor da arregimentação militarizada da vida social a partir de cima: do Estado e do seu homem providencial.
Os antigos Estados do Leste Europeu fossilizaram-se num sistema de privilégios, que se tornava visível assim que o olhar crítico ia além da superfície de um certo nível de direitos sociais supostamente universalizados, em troca da passividade política ou de um consenso artificialmente obtido. Faltavam-lhes animação cívica, choque de ideias, possibilidade real de alternância entre grupos dirigentes cada vez mais expostos ao controle dos governados, tanto nos critérios da sua formação quanto no exercício das diferentes instâncias de direção. Naqueles países, o contendor político era, invariavelmente, confundido com o agente externo, com o inimigo de classe, que cabia denunciar e esmagar. Em resumo, faltava-lhes o viço que só pode nascer de uma autêntica dialética democrática.
Muito poucos intelectuais de esquerda - poucos, relativamente -, contemporâneos do erguimento daquele tipo de Estado, souberam ou quiseram apontar os limites "corporativos" da experiência, sua incapacidade de marcar época e se oferecer como alternativa de civilização. Não raro, entregaram-se a exercícios "justificacionistas", como se o atraso relativo de uma sociedade implicasse necessariamente uma política baseada em demiurgos, partido único ou avassaladoramente dominante, bem como em estruturas estatais aquém dos requisitos modernos de liberdade individual e coletiva.
O custo histórico desse erro foi, e ainda é, imenso. E na América Latina, se é que entramos no século 21, a geografia também isolará novos surtos desse tipo, cuja expansividade enganosa só incendeia a imaginação dos sectários.
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