João Ubaldo Ribeiro
Estadao
Vocês também devem ter lido a respeito da utilização de celulares como forma de pagamento ou transferência de dinheiro. Já está chegando, ou vai chegar em breve. Quando eu era menino e lia tudo o que podia, achei lá em casa um livro velho, com ilustrações sombrias, sobre os males da fraqueza nervosa, que eu não sabia o que era, mas de boa coisa não se tratava, a julgar pela cara franzida e meio tresvariada estampada na capa. Impressionava também a visão de um velhote, sentado de pijama na beira da cama com o cabelo desgrenhado, aparentemente desperto de um pesadelo. A legenda explicava que, depois de uma certa idade, muitos indivíduos (e indivíduas, segundo a gramática da República) padecem de aflições noturnas, ansiedades, dispneias, disúrias, discinesias, dispepsias e inúmeras outras condições molestosas, que não raro induzem a fundos estados melancólicos e, por vezes, até mesmo ao passamento prematuro - os textos de antigamente eram caprichados.
Faz pouco tempo, eu não tinha queixa, mas acho que estão começando a pintar umas aflições noturnas, há indícios de que a fraqueza nervosa já se encontra em processo de instalação. Foi essa notícia do celular que me chamou a atenção para o problema. Não o celular em si. Não tenho celular e já me costumei a ser a atração turística da mesa e objeto de comentários sociofilosóficos. Não só não tenho, como não quero ter. Não por nada, somente porque é mais uma geringonça de que na verdade nunca precisei e da qual passarei a depender perdidamente, depois de alguns dias. Uma repórter encarregada de fazer entrevistas sobre comunicações resolveu me ouvir e, quando eu lhe disse que não tinha celular, recusou-se a acreditar. Durante alguns segundos, acho que ela ficou pensando que, na Bahia, celular tinha outro nome, o único que eu conhecia, só podia ser. E desligou meio desconfiada, sem se conformar.
O que me afetou foi o que li a respeito dos celulares e pagamentos, ou melhor, do que o futuro nos reserva, a nós, terceiridadistas (resignemo-nos a "terceira idade", pois que não há mais jeito, e recebamos com um sorriso dúbio "atroz idade" e "indigna idade", mas reajamos a bengaladas contra "melhor idade" e "feliz idade"). Na matéria que vi, várias especialistas se manifestavam sobre a novidade. Operação facílima para pagar qualquer conta, transferir qualquer quantia. Teclam-se alguns botões no celular e a transação está feita. A inovação é bem recebida por todos, de consumidores a comerciantes. Mas, como sempre, há aspectos não tão alvissareiros. As autoridades do setor manifestaram alguma reserva quanto à adoção talvez precipitada do mecanismo, pois sua segurança requeria certas cautelas e habilidades. Em mãos vulneráveis, podia facilmente ser explorado por hackers criminosos e outros espertalhões. "Nossa preocupação principal", disse lá o entendido, "são os idosos e as pessoas de baixa instrução. Esses provavelmente precisarão de cuidados especiais ou atendimento diferenciado".
Pronto, meu caro coevo, minha distinta coetânea. Estamos ingressando em nova categoria estatística e administrativa, talvez ainda não batizada, embora logo deva aparecer o eufemismo oficial adequado. Deficientes cognitivos diversos? Geroanalfabetos? Excluídos por critérios etarioeducacionais? Não sei, mas, com a falta do que fazer que parece grassar em alguns dos incontáveis órgãos que cada vez mais nos dizem como devemos nos comportar, não somente em público como em casa, em que devemos acreditar, do que devemos gostar, como devemos falar e até como devemos entender o que lemos, acho que precisamos estar preparados para receber mais proteção por parte do Estado. Talvez, se o idoso e o analfabeto quiserem usar o celular para transações financeiras, precisem, para seu próprio bem, tomar um curso especial para a categoria e, depois disso, mediante requerimento ao Ministério da Fazenda, obter a Carteira Nacional de Movimentação Financeira para Idosos e Analfabetos, que os habilitará à realização de pagamentos simples.
Tudo razão para aflições noturnas. Agora compreendo aquele livro profético e até gostaria de tê-lo aqui, para uma consulta. Ainda não me levantei sobressaltado no meio da noite, mas não é preciso, é fácil fazer previsões assombradas sobre o que está por vir. Os idosos, como adverte todo dia algum comentarista de entonações sinistras, cada vez aumentam em número e já começam a causar uma série de problemas. Deixá-los trabalhar mais tempo antes da aposentadoria não resolve, porque atravanca o mercado de trabalho para os jovens. Sustentá-los é uma carga cada vez maior para a previdência social. O sistema de saúde também sofre, sobrecarregado por uma demanda que não para de crescer. Não é impossível que se conclua que representam um custo impossível de pagar e o correto é morrerem pela pátria, como está nos hinos.
Além disso, surgem boatos alarmistas inquietantes. Zecamunista, ele mesmo também da confraria idosa, andou denunciando uma conspiração multinacional para matar a velharia, através de estratagemas diabólicos, como epidemias artificiais. E, o que é pior, tudo para abastecer de matéria-prima o mercado de comida de cachorro dos Estados Unidos, da Europa e do próprio Brasil. Não botei fé, embora tenha ficado meio cabreiro, pois nunca se sabe de nada, neste mundo de hoje. Mas ele acabou me tranquilizando.
- Esqueça aquilo que eu falei - disse ele. - Não vão mais armar o esquema da comida de cachorro.
- Ah, eu sabia que era invenção, não iam fazer isso com os velhos.
- Não é por causa dos velhos - disse ele. - É por causa dos cachorros. As sociedades protetoras de animais declararam que essa comida ia fazer mal aos cachorros e ameaçaram boicote. Mas aguardemos os acontecimentos.
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