quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O jogo do contente


 Roberto Luis Troster
O Estado de S. Paulo


A televisão passa uma vi­são deslumbrante do mundo do crédito no Brasil. Dia sim, dia tam­bém, há anúncios de reduções de taxas e de melhorias nas condições. As imagens são de enxurra­das de dinheiro cada vez mais ba­rato. Jornais mostram entrevis­tas e reportagens reforçando o re­lato. É o fruto de uma ofensiva, iniciada pelo governo há seis me­ses, com dois objetivos: estimular a atividade econômica com mais empréstimos e aumentar a concorrência no setor financeiro.

Há capacidade ociosa na oferta de crédito, o volume está na meta­de de seu potencial e sua utiliza­ção promove o consumo, o inves­timento e a inclusão e melhora a competição entre instituições fi­nanceiras e a eficiência da intermediação. Vitoriosa, a cruzada es­timularia os bancos a empresta­rem mais a um custo mais baixo, e isso pode acelerar o crescimento do País por muitos anos.

É fato, a escolha do objetivo foi acertada e oportuna, o siste­ma financeiro nacional pode fa­zer diferença no País num mo­mento em que o mundo está em crise. Todavia, a estratégia utili­zada está equivocada. Após seis meses, os problemas de crédito continuam, as dificuldades não foram superadas. O que preocu­pa é que, fazendo o jogo do con­tente, se está dilapidando a oportunidade de corrigir as distor­ções na intermediação.

Ainadimplência, que deveria es­tar num nível mínimo, em razão do baixo desemprego, está num patamar elevado: o dobro da mé­dia mundial e aumentou desde o início da ofensiva. Em cada 5 famí­lias, 1 tem contas atrasadas; e 1 em cada 11 famílias não tem como pa­gar suas contas. Esse endivida­mento, por um lado, bane toma­dores de crédito do sistema e, por outro, aumenta o risco de empres­tar aos demais, por causa da pro­pagação da morosidade para toda a economia.

Em setembro, o cartão de crédi­to cobrava juros de 228% e o che­que especial, de 150%, segundo a Anefac, ou 140%, de acordo com o Banco Central. São taxas obvia­mente insustentáveis. Em seis me­ses, o volume de concessões caiu e 3/4 da expansão do crédito fo­ram dos bancos federais. Mais de 1/3 do crescimento do crédito pes­soa física se deve a consignado de funcionários públicos, parte com extensão de prazos.

O resultado da cruzada em seis meses foi que o custo médio para pessoa física baixou de 109% para 96% ao ano. Apesar de todos os esforços e anúncios, continua um despautério. O Banco Central aponta valores menores, por ex­cluir a modalidade cartão de crédi­to, que é a mais usada pelos brasi­leiros. Mesmo assim, são as taxas mais altas do planeta.

A redução observada reflete a ação dos bancos públicos, que, apesar de terem uma margem lí­quida da ordem de 10%, consegui­ram diminuir suas taxas em mais de 50% e continuar lucrativos. É uma proeza de engenharia financeira que, quando detalharem co­mo, será destaque em livros e re­vistas de banking do mundo intei­ro, mas que teve pouco impacto nos preços dos financiamentos no País por causa da estrutura do sistema financeiro nacional.

Existe uma dispersão elevada de taxas em razão da segmenta­ção do mercado de crédito em pro­dutos e em instituições. Ilustran­do: dois produtos que têm riscos semelhantes, cartão de crédito e empréstimo pessoal, apresentam as taxas médias cinco vezes maio­res uma em relação à outra. No crédito pessoal, a taxa média das dez instituições que cobram mais é 20 vezes maior que das dez que cobram menos.

Essa radiografia demonstra que a concorrência via preço fun­ciona mal no mercado financeiro brasileiro, tanto para produtos co­mo para instituições. Mesmo se os bancos públicos conseguissem avançar ainda mais na sua proeza, baixando suas taxas, o efeito final continuará pífio em razão da seg­mentação, que é conhecida na lite­ratura especializada como uma falha de mercado. Há outras quatro no sistema financeiro nacional que atravancam a expansão dos financiamentos: a instabilidade da oferta, a vulnerabilidade dos to­madores, o superendividamento e a cunha de intermediação.

Mercados, para funcionarem de forma competitiva e promove­rem a eficiência, têm como pré-re­quisitos condições de transparên­cia, responsabilidade (inibir a venda de gato por lebre), mobilidade, políticas de inclusão e de prote­ção, custos de transação, estabili­dade, dinâmica e regras de nego­ciação que devem ser adequadas para cada contexto e época. No Brasil, elas apresentam disfun-ções que podem ser corrigidas.

A arquitetura para uma inter­mediação financeira conveniente é tarefa complexa para qualquer país. O Canadá, a Dinamarca e a Suíça conseguem ter as relações crédito-PIB mais altas do mundo sem dificuldades, em razão de es­truturar suas instituições correta­mente; a Islândia conseguiu resol­ver seus problemas rapidamente, a um custo razoável, com uma es­tratégia inteligente; já os Estados Unidos gastaram muito para um resultado proporcionalmente pe­queno. E o Brasil?

O sistema bancário vai conti­nuar sólido, rentável e crescendo num ritmo malemolente nos pró­ximos anos, aquém de seu potencial e com baixa legitimidade. Se fizesse as correções necessárias, poderia ter uma atuação diferen­te, preservando a lucratividade da intermediação e aumentando sua contribuição ao crescimento do País; mas não vai. É triste afirmar, mas, apesar da cruzada do gover­no, a dinâmica do crédito vai con­tinuar anêmica.

Não é a primeira vez que Brasí­lia promete corrigir os problemas com a concorrência. É verdade que nunca foi com tanta intensida­de. Lamentavelmente, é uma trama que se repete: medidas com impactos pontuais são comemo­radas como grandes realizações, a intermediação continua igual e, depois de um tempo, o tema pas­sa ao esquecimento. O ponto é que bancos e governo insistem no jogo do contente com promessas vãs, as mudanças transformadoras não ocorrem e o Brasil perde.
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