Roberto Luis Troster
O Estado de S. Paulo
A televisão passa uma visão deslumbrante do mundo do crédito no Brasil. Dia sim, dia também, há anúncios de reduções de taxas e de melhorias nas condições. As imagens são de enxurradas de dinheiro cada vez mais barato. Jornais mostram entrevistas e reportagens reforçando o relato. É o fruto de uma ofensiva, iniciada pelo governo há seis meses, com dois objetivos: estimular a atividade econômica com mais empréstimos e aumentar a concorrência no setor financeiro.
Há capacidade ociosa na oferta de crédito, o volume está na metade de seu potencial e sua utilização promove o consumo, o investimento e a inclusão e melhora a competição entre instituições financeiras e a eficiência da intermediação. Vitoriosa, a cruzada estimularia os bancos a emprestarem mais a um custo mais baixo, e isso pode acelerar o crescimento do País por muitos anos.
É fato, a escolha do objetivo foi acertada e oportuna, o sistema financeiro nacional pode fazer diferença no País num momento em que o mundo está em crise. Todavia, a estratégia utilizada está equivocada. Após seis meses, os problemas de crédito continuam, as dificuldades não foram superadas. O que preocupa é que, fazendo o jogo do contente, se está dilapidando a oportunidade de corrigir as distorções na intermediação.
Ainadimplência, que deveria estar num nível mínimo, em razão do baixo desemprego, está num patamar elevado: o dobro da média mundial e aumentou desde o início da ofensiva. Em cada 5 famílias, 1 tem contas atrasadas; e 1 em cada 11 famílias não tem como pagar suas contas. Esse endividamento, por um lado, bane tomadores de crédito do sistema e, por outro, aumenta o risco de emprestar aos demais, por causa da propagação da morosidade para toda a economia.
Em setembro, o cartão de crédito cobrava juros de 228% e o cheque especial, de 150%, segundo a Anefac, ou 140%, de acordo com o Banco Central. São taxas obviamente insustentáveis. Em seis meses, o volume de concessões caiu e 3/4 da expansão do crédito foram dos bancos federais. Mais de 1/3 do crescimento do crédito pessoa física se deve a consignado de funcionários públicos, parte com extensão de prazos.
O resultado da cruzada em seis meses foi que o custo médio para pessoa física baixou de 109% para 96% ao ano. Apesar de todos os esforços e anúncios, continua um despautério. O Banco Central aponta valores menores, por excluir a modalidade cartão de crédito, que é a mais usada pelos brasileiros. Mesmo assim, são as taxas mais altas do planeta.
A redução observada reflete a ação dos bancos públicos, que, apesar de terem uma margem líquida da ordem de 10%, conseguiram diminuir suas taxas em mais de 50% e continuar lucrativos. É uma proeza de engenharia financeira que, quando detalharem como, será destaque em livros e revistas de banking do mundo inteiro, mas que teve pouco impacto nos preços dos financiamentos no País por causa da estrutura do sistema financeiro nacional.
Existe uma dispersão elevada de taxas em razão da segmentação do mercado de crédito em produtos e em instituições. Ilustrando: dois produtos que têm riscos semelhantes, cartão de crédito e empréstimo pessoal, apresentam as taxas médias cinco vezes maiores uma em relação à outra. No crédito pessoal, a taxa média das dez instituições que cobram mais é 20 vezes maior que das dez que cobram menos.
Essa radiografia demonstra que a concorrência via preço funciona mal no mercado financeiro brasileiro, tanto para produtos como para instituições. Mesmo se os bancos públicos conseguissem avançar ainda mais na sua proeza, baixando suas taxas, o efeito final continuará pífio em razão da segmentação, que é conhecida na literatura especializada como uma falha de mercado. Há outras quatro no sistema financeiro nacional que atravancam a expansão dos financiamentos: a instabilidade da oferta, a vulnerabilidade dos tomadores, o superendividamento e a cunha de intermediação.
Mercados, para funcionarem de forma competitiva e promoverem a eficiência, têm como pré-requisitos condições de transparência, responsabilidade (inibir a venda de gato por lebre), mobilidade, políticas de inclusão e de proteção, custos de transação, estabilidade, dinâmica e regras de negociação que devem ser adequadas para cada contexto e época. No Brasil, elas apresentam disfun-ções que podem ser corrigidas.
A arquitetura para uma intermediação financeira conveniente é tarefa complexa para qualquer país. O Canadá, a Dinamarca e a Suíça conseguem ter as relações crédito-PIB mais altas do mundo sem dificuldades, em razão de estruturar suas instituições corretamente; a Islândia conseguiu resolver seus problemas rapidamente, a um custo razoável, com uma estratégia inteligente; já os Estados Unidos gastaram muito para um resultado proporcionalmente pequeno. E o Brasil?
O sistema bancário vai continuar sólido, rentável e crescendo num ritmo malemolente nos próximos anos, aquém de seu potencial e com baixa legitimidade. Se fizesse as correções necessárias, poderia ter uma atuação diferente, preservando a lucratividade da intermediação e aumentando sua contribuição ao crescimento do País; mas não vai. É triste afirmar, mas, apesar da cruzada do governo, a dinâmica do crédito vai continuar anêmica.
Não é a primeira vez que Brasília promete corrigir os problemas com a concorrência. É verdade que nunca foi com tanta intensidade. Lamentavelmente, é uma trama que se repete: medidas com impactos pontuais são comemoradas como grandes realizações, a intermediação continua igual e, depois de um tempo, o tema passa ao esquecimento. O ponto é que bancos e governo insistem no jogo do contente com promessas vãs, as mudanças transformadoras não ocorrem e o Brasil perde.
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