segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Civilização virtual


 ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA
O GLOBO

O ciberespaço é um rebatimento do mundo real, sem instituições, sem os interditos civilizatórios que domesticam a fera que dorme em cada um


Nos anos 60 os astronautas buscavam vida em outros planetas. Meio século depois é aqui mesmo que se descobre um outro tipo de vida: a incorpórea população que habita o ciberespaço.

As ideias, como as gerações, envelhecem e morrem. Maneiras de sentir e de ver o mundo têm prazo de validade. Confundidas com um trivial choque de gerações, as transformações profundas que estão em curso constituem uma mudança de era. São o sintoma da emergência de uma civilização desconhecida.

Em menos de duas décadas as tecnologias que revolucionaram a comunicação deram ao mundo uma forma inédita cujas consequências são de difícil apreensão, em particular pelas gerações que estão a cavaleiro entre esses dois tempos, antes e depois da internet. O mundo virtual tornou-se parte da vida real e já não é possível separá-los ou estabelecer, entre eles, uma hierarquia. A vida de cada um gira cada vez mais em torno de duas pequenas telas: o computador e o celular. Quem mergulha nestas telas cai, como Alice, do outro lado do espelho.

Testemunha-se qualquer fato onde quer que ele se passe. A globalização não é mais um conceito abstrato, é uma experiência cotidiana, irreversível, de um mundo vivido virtualmente. Quem não fala digital nativo passa seu tempo correndo atrás de tecnologias que, mal acabamos de dominar, já mudaram e cobram, em tempo, o preço do próprio tempo que elas prometiam nos poupar. Imigrantes no futuro, não estamos bem situados para entender essa civilização recém-descoberta. Tampouco sua incorpórea população, aderida alegremente ao seu múltiplo e lúdico fazer, entende a si mesma, já que não parece propensa a grandes interrogações sobre o sentido das coisas.

Paradoxo: essas tecnologias que supostamente nos aproximam do que é longínquo nos afastam dos mais próximos. A internet e os celulares nos oferecem tudo, salvo pessoas em carne e osso. O SMS economiza a viva voz como os twitters economizam os pensamentos. Conversamos com alguém do outro lado do mundo, vemos sua imagem, mas não sentimos o calor de sua presença.

Atropelando direitos, ignorando autores, Google age como uma superpotência e contra esse poder avassalador já se insurgem Estados como França e Alemanha. O ciberoráculo responde a qualquer questão, salvo de onde viemos e para onde vamos.

O mundo se expande e encolhe ao mesmo tempo. Arte e política se submetem ao novo modo de viver. No país de Proust um concurso literário desafia escritores a um conto de 140 toques. Políticos comprimem em frases amputadas receitas para salvar seus países do caos

Na ausência de comunidades reais como as famílias ou companheiros de um projeto político ou religioso que nos ultrapassa, quando os laços de pertencimento se esgarçam amplia-se o mercado das relações virtuais, a rede de amigos que se contam em milhares, virtualidades deletáveis em um clique indolor. Facebook — jogo divertido de comunicação sem relação — ultrapassou a cifra de um bilhão de usuários. O conceito qualitativo de amizade, privilégio durável de uns poucos escolhidos, nessa nova civilização dilui-se no quantitativo efêmero.

O ciberespaço abriga zonas de sombra. A identidade de sua população é improvável, lábil, cambiante. Pode ser e não ser. Qualquer um pode ser muitos, se desdobrar em quantas vidas adote. Um nunca acabar de encontros pode se dar entre personagens ficcionais, cada um escrevendo o romance de uma vida. No ciberespaço quem é o Outro com quem nos relacionamos sem que tenhamos por ele responsabilidade?

As balizas de tempo e de espaço não vigoram no ciberespaço. O lugar do interlocutor é indefinido, o tempo pode ser inventado, relativizando essas dimensões com que sempre trabalhara o pensamento na construção da ideia mesma de real.

Essa população que se delicia no anonimato se quer também inimputável, sem lei, sem superego, sem tabu. Em boa hora o Congresso brasileiro acordou para este problema, aprovando projetos que penalizam crimes praticados na Rede. Outros, em pauta, propiciam a discussão sobre os limites ao vale-tudo nessa terra de ninguém.

O ciberespaço é habitado por nós mesmos, desmaterializados, é um rebatimento do mundo real, sem instituições, sem códigos de moral ou ética, de relacionamento entre pessoas, sem os interditos civilizatórios que domesticam a fera que dorme em cada um.

Esse inventário de perplexidades é herdeiro de um tempo em que estas questões eram relevantes. Daqui para frente ainda encontrarão eco nos espíritos ou parecerão cada vez mais anacrônicas e desprovidas de sentido?
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