José de Souza Martins*: - Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Já faz alguns anos que o mundo está acossado por urgências. As pressas são dramáticas nos países do Terceiro Mundo, e muito intensas no Brasil. Algumas são cabíveis, outras não. Elas vão dando origem a um Quarto Mundo, o dos que não têm pressa porque lhes são negadas as condições de tê-la. Os seres humanos descartados, os de direitos sociais mutilados, os da nova fome, a de direitos, a de acesso às promessas da modernidade, a das coisas que humanizam um ser humano.
Essa é uma pressa reordenadora das relações sociais, medida exclusivamente pela precedência do ganho fácil, do lucro apressado, do trabalho barato. Produtora de uma humanidade sem tempo, cuja vida já não é regulada pelos valores da civilização e do espírito, como foi nos tempos de nossos avós e até no tempo de nossos pais.
Há uma nova pobreza no mundo, a pobreza de tempo para a vida e, simultaneamente, a abundância de tempo dos desempregados, tempo inútil porque não serve para nada. É o daqueles cujas habilidades profissionais saíram de linha.
São os seres humanos cuja miséria os torna clientes e consumidores dos restos dos que vivem na abundância descabida de comida, de objetos, de privilégios. O que cai da mesa dos fartos.
Na tolice enganadora das médias, vai tudo bem. Entre uma criança faminta e uma criança obesa, a média é a de que as duas estão bem, quando ambas estão muito mal. Aquilo que uns comem demais outros comem de menos. Há mais comida no lixo de cidades como São Paulo do que na mesa de milhões de pobres. E esse não é o erro principal. O erro principal é o de falta de culpa e de consciência de responsabilidade social por parte daqueles que são vitimados pelo excesso de tudo.
Os mesmos erros políticos e empresariais que causam essas patologias sociais, produzem, também, a opressão das urgências verdadeiras e falsas que pesam sobre a vida de todos os brasileiros, como agora. Tudo ficou falsamente urgente, mesmo as iniquidades das políticas oficiais. Se a reforma da previdência não for aprovada já, o país afunda, dizem. Mas ninguém diz que, se os privilégios de políticos e os ganhos descabidos, e nem sempre honestos, do capitalismo especulativo e não produtivo persistirem, aí, sim, o país afunda de vez.
A sociedade da urgência vem se desenhando no Brasil já faz muito tempo. Seu caráter patológico e suas anomalias só começaram a chegar à consciência das pessoas comuns nas últimas décadas, sem chegar, também, à consciência dos que se acham incomuns. Não estou falando de pobres e ricos. Estou falando de ricos que são pobres de espírito e de pobres que, por sê-lo também, não sabem que são escravos dos que os iludem para neles mandar.
Nem tudo no mundo se explica pelas concepções indigentes de um materialismo antidialético, anti-histórico e antissocial. É preciso buscar nas ciências humanas a explicação para as barbaridades sociais e políticas que nos vitimam. E ciência é muito mais do que os rótulos pseudoconceituais do Manifesto Comunista.
Às vezes, uma criança tem mais consciência dessas desigualdades de ritmos de desenvolvimento do que os adultos. Não faz muitos anos, com um grupo de amigos, estava na Vila de Paranapiacaba, no Alto da Serra, em Santo André, SP, antiga vila de ferroviários da São Paulo Railway. Fotografávamos ruas e casas do que foi o primeiro posto avançado da modernidade tecnológica e social no Brasil.
Duas meninas, de uns 10 anos de idade, de bicicleta, tentavam puxar conversa. Uma delas me disse: "Sabe, moço. Aqui na vila não tem gente rica. Só gente normal. O pai da minha amiga é rico. Mas minha amiga é normal". Uma sociologicamente rica compreensão vivencial das diferenças sociais, bem diversa da ideologização que deformou e, em novos parâmetros, continua a deformar nossa consciência social na nova alienação que nos estão impondo.
Justamente, em Paranapiacaba, em 1866, inaugurou-se entre nós o tempo dos minutos, até então inúteis e desconsiderados, o tempo da pressa e das urgências. Devido ao trem e aos seus horários quebrados e peculiares, os minutos passaram a ser uma referência na vida cotidiana das pessoas, até então habituadas à regulação da temporalidade cósmica e calma das estações do ano.
O sociólogo Max Weber analisou as consequências da concepção de progresso na sociedade moderna, a das urgências e da negação da finitude, o homem comum mergulhado na insegurança da morte provável, a modernidade da pressa.
Quando a economia e as razões de suas urgências se tornam razões de Estado e razões da vida, as coisas se complicam em todos os campos. Desde a vida pessoal até a vida coletiva. A gente se olha no espelho e não se reconhece: tornamo-nos apenas o cadáver do possível.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano”.
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