Peça de marketing que anuncia a salvação do empreendedorismo das amarras da burocracia
*ÉRICA GORGA, O Estado de S.Paulo
24 de maio de 2019 | 03h00
A festejada Medida Provisória da Liberdade Econômica, a MP n.º 881, de 30/4/2019, é quase uma peça de marketing do governo que anuncia a salvação do empreendedorismo nacional das amarras da perniciosa burocracia estatal. Mas como “em casa de ferreiro o espeto é de pau”, depois de o próprio presidente Jair Bolsonaro interferir brusca e diretamente na política de preços da Petrobrás, provocando perda imediata de valor de R$ 32,4 bilhões para os acionistas da empresa na bolsa de valores, eis que o mesmo presidente, por meio da MP salvadora, proclama o direito, das pessoas naturais ou jurídicas, de “não ter restringida, por qualquer autoridade, sua liberdade de definir o preço de produtos e de serviços como consequência da oferta e da demanda...” (artigo 3.º, III).
Mas não é “chover no molhado”? Isto é, tal direito de livre formação de preços já não era assegurado pelo ordenamento jurídico pátrio? Evidentemente que sim, até aqui “nada há de novo sob o sol”. E não foi o presidente justamente a “autoridade” que se intrometeu na liberdade de preços reproclamada? Como “devagar se vai ao longe”, a pergunta remanescente após a edição da MP pleonástica é se os “novos” dispositivos legais serão aplicáveis às intervenções governamentais na livre formação de preços no mercado, até mesmo no que tange ao cartel do frete, endossado pela equipe de governo da Escola de Chicago.
Já que “quem com ferro fere com ferro será ferido”, poderá, agora, qualquer caminhoneiro se basear na MP para questionar a legalidade da tabela oficial de fretes e pleitear o direito de definir o preço que bem quiser para desempenhar sua atividade econômica? Ou o governo adotará o “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço” e continuará a defender a tabela “oficial” de preços e o pacote especial para caminhoneiros, contrariando a própria MP, que restringe o abuso do poder regulatório para evitar “criar privilégio exclusivo para determinado segmento econômico” (artigo 4.º, III)?
Nesse quesito, o setor agropecuário, fortemente prejudicado pelo cartel do frete, poderia valer-se do “escreveu não leu, o pau comeu” e pleitear isonomia em relação à categoria dos caminhoneiros? O pacote com empréstimos privilegiados a serem postos à disposição pelo BNDES é “saco vazio que não para em pé”, pois não resiste às regras de liberdade econômica recém-declaradas.
Se “onde há fumaça há fogo”, o pedido de Bolsonaro ao presidente do Banco do Brasil para baixar os juros praticados no mercado bancário também derrubou o preço das ações dos bancos na bolsa de valores, caracterizando mais uma desconsideração presidencial aos princípios da MP. Se a intenção do presidente do País é que empresas e empreendedores tenham acesso a financiamento a custo mais baixo, a alternativa usada internacionalmente é repensar, fortalecer e expandir o mercado de capitais nacional, absolutamente incipiente quando comparado ao de outros países em desenvolvimento.
Mas como “a pressa é inimiga da perfeição”, em vez de repensar os marcos regulatórios, que desde 1976 permanecem praticamente inalterados, após várias crises e colapsos do mercado de capitais nacional, a equipe do governo resolveu simplesmente abrir as comportas para que companhias de pequeno e médio porte possam acessar mais velozmente a poupança popular. Nesse intuito, a MP autoriza a Comissão de Valores Mobiliários a dispensar as exigências usuais previstas na Lei das SAs que visam justamente à proteção da poupança popular (artigo 8.º).
Assim, perpetua-se o mercado de capitais “para inglês ver”, que promove liberdade sem nenhuma responsabilidade, não obstante as massivas fraudes e os desastres corporativos recentes nas maiores companhias listadas, como nos casos da Petrobrás, da JBS, da OGX e Vale S.A., que resultaram em completa ausência de responsabilização de empresas e de administradores para reparar os prejuízos bilionários causados a acionistas, investidores e à ordem econômica e financeira. “Desgraça pouca é bobagem” e faz-se vista grossa para os grandes déficits dos fundos de aposentadoria ocasionados por investimentos fraudulentos via mercado de capitais. Em comparação, os Estados Unidos, em resposta às próprias crises de mercado, para resgatar a confiança de investidores, incentivar o empreendedorismo e promover segurança jurídica, editaram dois grandes marcos legislativos, o Sarbanes-Oxley Act, em 2002, e o Dodd-Frank Act, em 2010.
Mas “pimenta nos olhos dos outros é refresco” e as autoridades brasileiras continuam achando natural que as ações de ressarcimento de acionistas e investidores por escândalos corporativos brasileiros ocorram fora do País, onde a poupança popular goza de maior proteção. É o que demonstram inúmeras ações de indenização envolvendo companhias brasileiras e seus administradores nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Holanda e até em Cingapura, a exemplo da ação de responsabilidade por violação de deveres fiduciários de acionistas contra Joesley e Wesley Batista e outros administradores que corre no Tribunal Superior do tigre asiático (Estado, 26/4).
Aliás, não são claras a urgência e a relevância da MP, que presume a boa-fé, pretendendo “recriar a roda” jurídica, mas alija do debate democrático as mudanças na responsabilidade de sócios e administradores de empresas. Como “quem tem pressa come cru”, a equipe do governo erra a mão ao conceituar o desvio de finalidade como a “utilização dolosa da pessoa jurídica” (artigo 7.º), o que contribuirá para o aumento da insegurança jurídica, por exemplo, em casos de ressarcimento de danos ambientais de grande nocividade. É a liberdade sem responsabilidade, que equivaleria a “quem semeia vento, colhe tempestade”?
*DOUTORA EM DIREITO PELA USP, COM PÓS-DOUTORAMENTO NA UNIVERSIDADE DO TEXAS, FOI PROFESSORA NAS UNIVERSIDADES DO TEXAS, CORNELL E VANDERBILT, DIRETORA DO CENTRO DE DIREITO EMPRESARIAL DA YALE LAW SCHOOL E PESQUISADORA EM STANFORD E YALE
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