domingo, 26 de maio de 2019

Por que a regulamentação econômica pode ser muito ruim para a sociedade?

 - OG LEME  INSTITUTO LIBERAL


Regulação ou regulamentação significa imposição de regras, normas ou leis. Ela se dá, então, por via legislativa ou administrativa. Desregulamentação corresponde à redução ou eliminação das normas existentes. No caso brasileiro, propor uma redução das regras vigentes equivale a reconhecer que elas superabundam entre nós, aumentando desnecessariamente os custos de transação, engessando os mercados, deformando a estrutura de estímulos e desestímulos para produzir, desalentando a iniciativa privada, comprometendo a eficiência média da economia e, consequentemente, o bem-estar material dos brasileiros.

É sabido que não há possibilidade de vida grupal ou social sem um conjunto de regras de conduta, sejam elas formais ou informais. Trata-se de um fato de validade universal, independente da história, geografia, etnia, cultura e do nível de renda. Ele se impõe entre virtuosos e pecadores, valem tanto para o Exército da Salvação como para qualquer “máfia” ou grupo de detentos.

É igualmente sabido que qualquer tipo de ordem concebida como conjunto de normas de conduta é melhor do que a anomia, isto é, a ausência de normas. Mas é forçoso reconhecer que alguns tipos de ordem social podem ser melhores que outros, especialmente se o critério de avaliação se baseia não apenas na sobrevivência do grupo ou país, mas também na sua capacidade de oferecer a seus membros melhores condições de vida e maior longevidade. Critério de avaliação equivalente é o da capacidade que tem essa ordem social de ensejar aos membros da comunidade “a busca individual, em segurança, da felicidade”. É equivalente porque são exatamente as sociedades propiciadoras dessa condição as que caminham no rumo da prosperidade. Não se trata de hipótese ou ato de fé, mas de realidade histórica fundamentada em evidência empírica.

Conforme se disse antes, não há possibilidade de vida grupal num vácuo normativo (estado de anomia). Mas tampouco há sobrevivência social satisfatória com excesso de regulação. Da mesma forma que a vida individual necessita de de água para sobreviver, mas também pode acabar por excesso dela, a sobrevivência social se torna precária com excessos regulatórios que entorpecem e degradam a ação humana.

Deve haver, então, um grau ótimo de ordenamento que, além de assegurar a sobrevivência social, possa oferecer às pessoas as melhores condições possíveis de vida. A história nos tem ensinado que esse ponto ideal é encontrado quando o governo e sua contrapartida, o processo político de decisões coletivas, se limitam a fazer aquilo que o mercado e sua contrapartida, o processo de decisões individuais, não são capazes de fazer a custos sociais suportáveis.

Num país onde os problemas econômicos são em sua grande maioria solucionados pelo mercado, caberia ao governo apenas algumas importantíssimas tarefas: administrar a lei, manter a ordem pública, zelar pela segurança, desempenhar funções diplomáticas e cuidar dos problemas envolvendo externalidades e bens públicos. Nos casos de externalidades e bens públicos, há diferenças entre custos e benefícios sociais e individuais, de maneira que, deixados a cargo do mercado, há a possibilidade de haver menos oferta de certas coisas do que o desejável (por exemplo, saúde pública e segurança) e mais de outras (por exemplo, poluição).

Essa divisão de atribuições entre o mercado e o setor público pode ainda ser ampliada a favor do segundo, quando os direitos de propriedade não são bem definidos ou eficazes e quando são elevados os custos de transação. Em tais casos pode haver razão para a regulação pública, desde que exercida com sensatez e sabedoria, porque ela é uma agressão aos direitos de propriedade e onera os custos de transação. É preciso muito cuidado, portanto, para que o remédio não se transforme em veneno.

Os custos de transação são o valor que excede o preço do bem ou serviço comprado, representado pelo que se gasta na obtenção de informações sobre a coisa transacioniada, dos recursos consumidos na negociação entre as partes envolvidas na transação e, finalmente, no custo de tornar os contratos efetivos.

Isso é o que diz a teoria econômica fundamentada na razão e nos fatos. Mas nem sempre os seres humanos agem de acordo com as boas lições da economia. Se em boa parte do século XIX a economia mundial se aproximou do bom receituário de Adam Smith, fundamentado pela responsável liberdade dos agentes econômicos e no livre intercâmbio das nações, a maior parte do século XX sucumbiu ao estatismo, ao intervencionismo governamental, à substituição do mercado pelo arbítrio dos detentores dos poderes coercitivos do Estado. Mas antes que o século e o milênio terminassem, ruíram várias das desastrosas experiências no campo da engenharia social (o construtivismo de Hayek) com o frcasso do nazismo, do fascismo e do comunismo.

Não obstante, continua de pé a advertência do Prêmio Nobel James Buchanan: “o socialismo morreu, mas o espírito do Leviatã continua vivo”. Isso significa não mais a substituição completa do mercado pelo planejamento central, não mais a substituição da propriedade privada e da economia de mercado, mas as duas instituições passam a ser “orientadas” ou “conduzidas” pelo governo, por meio de vários tipos de instrumentos, entre os quais os da regulação econômica. A regulação econômica é uma das formas mais sub-reptícias e insidiosas de agressão à propriedade privada: finge-se manter a propriedade privada, mas os titulares desses direitos são obrigados por força da lei ou de decreto a usar seus ativos de acordo com a vontade das autoridades.

A justificativa para esse tipo de violência não varia muito: a correção de “falhas de mercado” (como se o governo não as tivesse e em grau maior), proteção ao meio ambiente e às espécies em extinção, proteção aos menos possuídos (empregados e mulheres), redistribuição de rendas, incentivo ao crescimento econômico etc. Parte dessa onda intervencionista é baseada em boas intenções, parte é apenas demagogia.

É oportuno citar um exemplo de uma boa intenção desastrada. No final da década de 1980, os ativistas do ambientalismo estavam procurando convencer as autoridades responsáveis pelo suprimento de água do risco de carcinomas produzidos pelo uso do cloro. Na época, as autoridades peruanas, que se viam às voltas com uma crise orçamentária, aproveitaram-se da ideia de acortar a despesa com o uso do cloro na água para evitar o mal maior do câncer e, assim, contornar uma crise financeira. A desastrada decisão contribuiu para a disseminação acelerada da cólera na América Latina nos anos 1991-1996, causando a contaminação de 1,3 milhão de pessoas e a morte de 11 mil. O relato dessa custosa ocorrência está num artigo de H.I. Miller e G. Cronko, “The Perils of Prevention”.

Provavelmente estão cheias de boas intenções as pessoas que defendem o salário mínimo e procuram “proteger” o trabalho feminino. Isso não basta, porém, para evitar que o salário mínimo prejudique o trabalhador menos qualificado (exatamente o mais carente) nos tempos de crise; ou para impedir a discriminação contra a mão de obra feminina que resulta do seu encarecimento que a suposta “proteção” produz.

As bem intencionadas tentativas nos Estados Unidos de melhorar a segurança dos motoristas com regulamentos que obrigavam as montadoras a adotar uma série de inovações acabaram encarecendo os automóveis. Com preços mais altos, os usuários passaram a estender o prazo de renovação de seus carros, com o consequente envelhecimento da frota. Carros mais velhos equivalem a mais poluição atmosférica, que foi a triste consequência de mais uma boa intenção.

As experiências com regulamentação para impedir a extinção de espécies animais têm sito mal-sucedidas, especialmente quando esses animais são de propriedade comum. Os países africanos que admitem a propriedade privada de elefantes e dão eficácia a esse direito têm visto seu estoque de elefantes crescer. Os países em que a propriedade de elefantes é comum não têm conseguido frear a queda do estoque desses animais na base da regulação.

A existência de direito eficaz de propriedade é fundamental no caso de externalidades, de preservçaão ambiental e de manutenção de espécies animais. Nos Estados Unidos, houve praticamente extinção dos búfalos, que eram propriedade comum; houve, por outro lado, generosa expansão do rebanho bovino, que é de propriedade privada. Estão universalmente ameaçadas de extinção as baleias e as tartarugas, de propriedade comum; continuam, crescendo os estoques de galinhas e perus, de propriedade privada.

Mas há regulamentos gerados por boas intenções e que eventualmente dão certo, por assim dizer. Mesmo quando a regulação parece haver atingido seus objetivos, seu custo social pode ser altíssimo se resultar em excesso burocrático e elevação dos cursos de transação. O economista peruano Hernando de Soto publicou um livro (El Otro Sendero) há alguns anos que se tornou mundialmente famoso pela percuciente análise que faz da economia informal no Peru. O autor mostra, por exemplo, que para a obtenção de um alvará para o funcionamento de uma fabriqueta de roupas de “fundo de quintal” são necessários quase 300 dias naquele país. Esse alvará pode ser obtido em 3 dias em, por exemplo, Tampa, na Flórida (EUA).

O sistema tributário brasileiro já foi chamado de “manicômio tributário” pelo falecido jurista Alfredo Augusto Becker. Desde a sua morte, a situação piorou: hoje, temos mais de 60 tributos regulamentados por uns 6 mil diplomas legais, conforme estudo recente do jurista Cândido Prunes, a ser publicado na revista Think Tank.

Talvez o setor da economia brasileira mais seriamente afetado por uma regulação exorbitante e insensata seja o do mercado de trabalho, poluído por pseudodireitos, mutilado na sua flexibilidade e tornado artificial e desnecessariamente dispendioso, a ponto de onerar em mais de 100% as folhas de pagamentos com benefícios trabalhistas. Um dos resultados é a perda da competitividade dos produtos brasileiros no mercado mundial.

O espaço disponível não comporta mais exemplo, mas os citados bastam para ilustrar os problemas criados por uma regulamentação exagerada:

1 – Engessamento ou perda de competitividade dos mercados;

2 – Deformação do sistema de preços e da cadeia de estímulos e desestímulos, com a consequente perda de eficiência econômica;

3 – Entorpecimento da iniciativa empresarial;

4 – Estímulo à corrupção devido ao aumento dos poderes da burocracia e do próprio processo político;

5 – Expansão da economia informal;

6 – Aumento dos custos de transação (o chamado ‘custo Brasil’);

7 – Comprometimento da capacidade de competir no mercado mundial;

8 – Agressões continuadas a direitos de propriedade;

9 – Degradação da ética (dos ‘bons costumes’) pela prática do “jeitinho” e da corrupção decorrentes das necessidades de driblar as dificuldades criadas pelos regulamentos;

10 – Institucionalização do cinismo, juntamente com a degradação das instituições.

Essa relação que envolve custos econômicos morais e institucionais não esgota provavelmente a capacidade deletéria da regulação exacerbada, mas certamente é suficiente para convidar-nos, a nós brasileiros, a pensar seriamente na revisão saneadora dos regulamentos vigentes. Leva-nos a considerar seriamente a urgente necessidade de desregulamentar a nossa vida social e econômica. Desregulamentar não significa obviamente a pura e simples eliminação dos regulamentos atuais, mas a sua adequação a um processo econômico do mercado que dependa do setor público apenas para as tarefas em que as decisões privadas individuais se mostram inapropriadas.

Artigo retirado do livro de crônicas Og Leme, um liberal, editado pelo Instituto Liberal em 2011.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

GEOMAPS


celulares

ClustMaps