- PEDRO MALAN O Estado de S.Paulo - 12/05
A democracia moderna precisa de serenidade para enfrentar seus desafios de forma eficaz
Em 9/11/2003 publiquei neste espaço artigo intitulado Dois livros e um discurso. Os livros eram O Elogio da Serenidade, de Norberto Bobbio, bela defesa dessa virtude tida como não política, “virtude fraca, mas não dos fracos”; e Insultos Impressos, de Isabel Lustosa, excelente trabalho sobre os primeiros anos de nossa imprensa à época da independência. O discurso, por sua vez, era do então deputado Fernando Gabeira, pronunciado no Congresso por ocasião de seu desligamento voluntário do PT, que teve como chamada Sonhei o sonho errado.
Passados 15 anos, volto aos dois livros por razões que espero possam atrair o interesse do leitor que acompanha a falta de serenidade e o nível de agressividade de nossas polarizadas redes sociais, bem como as baixarias dos insultos que ali imperam. Estão a nos faltar mais da serenidade de um Fernando Gabeira e menos do linguajar das redes sociais.
À época, escrevi que acreditava, ou esperava, que ofensas pessoais (ou insultos impressos) gratuitas e inconsequentes tendessem a perder peso relativo no debate em favor de substância, conteúdo e respeito aos fatos – ainda que nunca desaparecessem por completo, porque não existe política sem emoção. Que acreditava, ou esperava, que a serenidade, como postura, atitude, tenderia gradualmente a ser vista como imprescindível e reconhecida virtude – inclusive política. Que acreditava, ou esperava, que o aprofundamento do discurso sobre “sonhar sonhos errados”, estimulado por Gabeira, pudesse ter implicações para o debate político e econômico dos três anos que se seguiriam. E julgava, sim, como julgo hoje, que os temas dos dois livros e do discurso estavam ligados. Por isso a eles volto.
Em Insultos Impressos, Isabel Lustosa nota três circunstâncias daquele momento histórico que fizeram o debate alcançar surpreendentes níveis de violência: “A situação de instabilidade e indefinição política que o país vivia; (...) a democratização do prelo, trazendo para a forma impressa elementos de oralidade no que tinha de mais popular e coloquial; a emergência de quadros da elite brasileira sem hábitos de vida pública anterior que, a partir de sua inserção no debate político, trouxeram para o espaço público, por meio da palavra impressa, atitudes da vida privada”. Como nota a autora, “cada um escrevia e assinava o que bem entendia (...) um processo de liberalização política sem precedentes em nossa história”.
A autora registra que notável orador religioso tinha por hábito anotar nas margens dos textos de seus sermões a serem lidos lembretes do tipo: “Aqui, elevar a voz porque o argumento é fraco”. Não só decibéis mais altos podem compensar a falta de substância. Ofensas pessoais também podem fazê-lo. Assim como críticas genéricas a “tudo isso que aí estava” também podem expressar dificuldades de reconhecer e enfrentar, na prática, com serenidade e determinação, olhando à frente, os inúmeros e inegáveis problemas do presente e do futuro – obrigação de qualquer governo. Particularmente daqueles que tanto se empenharam em estimular sonhos, esperanças e expectativas de rápidas e profundas mudanças.
Aqui entra o “sonhar o sonho errado” de Gabeira. Todos os jornais registraram sua primeira explicação: “Confiei que poderíamos fazer tudo aquilo que prometíamos rapidamente, num período de quatro anos ou imediatamente”. Mas o que Gabeira escreveu a seguir não mereceu, surpreendentemente, tanta atenção: “O sonho foi pior ainda, foi confiar que era possível transformar o Brasil a partir do Estado, quando o dinamismo se encontra na sociedade”.
A primeira explicação de Gabeira tem mais que ver com a velocidade esperada de realização do sonho no tempo. Afinal, a arte da política – ou melhor, do exercício do poder – é começar a fazer o necessário e continuar a trabalhar para tornar possível amanhã aquilo que parece difícil ou mesmo impossível hoje. Sua segunda explicação é, a meu ver, mais relevante e tem por trás a outra visão clássica sobre o poder, que Maquiavel imortalizou como a arte de conquistar, preservar, consolidar e ampliar o poder do Estado. Não como fim em si mesmo, mas para, “a partir do Estado”, realizar “grandes coisas” (a expressão é do próprio), que é o mesmo que realizar grandes sonhos.
Enquanto uma sociedade dinâmica, complexa, heterogênea e desigual, acreditando pouco em si própria, achar que só é possível realizar “grandes coisas” – como, por exemplo, o desenvolvimento econômico e social – fundamentalmente a partir do aparelhamento do Estado, permanecerão vivos entre nós traços de três fenômenos nefastos de nosso passado: o messianismo salvacionista, o voluntarismo explícito e o autoritarismo exercido em nome do povo. Os três incompatíveis com um republicano Estado Democrático de Direito.
Uma democracia moderna precisa, tanto na sociedade quanto no governo, de serenidade para enfrentar seus inúmeros desafios de forma eficaz. A serenidade é uma postura, uma atitude em relação aos outros e às coisas – incluídas as que se deseja transformar. Sem usar a palavra serenidade, Bobbio definiu uma vez o que chamou de maior lição da sua vida: “Respeitar as ideias alheias, deter-se diante do segredo de cada consciência, compreender antes de discutir, discutir antes de condenar. E rejeitar todo tipo de fanatismo”.
Se conseguirmos, como parte de um processo de melhoria da qualidade do debate público informado, reduzir o peso relativo dos insultos digitais (em favor do conteúdo da discussão), valorizar mais a serenidade e a prudência-com-propósito como virtudes políticas e aprofundar mais a discussão sobre sonhar sonhos errados e sobre sua realização “a partir do Estado” ou “a partir do dinamismo da sociedade” (um falso dilema), estaremos contribuindo para continuar mudando, para melhor, um país complexo e difícil como o nosso. Ou, pelo menos, sonhando sonhos certos, o que deveria incluir, seguramente, não ter ilusões sobre as dificuldades de realizá-los.
Economista, foi ministro da fazenda no governo FHC.
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