Entrevista / Lilia Moritz Schwarcz
Com linguagem didática e acessível, ‘Sobre o autoritarismo brasileiro’ procura na História as raízes de uma sociedade hierarquizada, violenta, racista e tentada com frequência por soluções antidemocráticas
“Depois de 30 anos lutando por democracia plena colocamos no poder uma família imperial”
“Um país que admitiu a escravidão por tanto tempo não pode ser livre de violência e hierarquias”
Ruan de Sousa Gabriel / O Globo
Depois das eleições de 2018, a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz passou a ser mais ativa no Instagram. Na rede social, ela publica fotos e vídeos, comenta o noticiário e tenta ajudar seus 55 mil seguidores a compreender a confusão política brasileira. Seu novo livro, “Sobre o autoritarismo brasileiro”, que aporta nas livrarias nesta sexta-feira, faz parte desse esforço de levar informações sólidas, coletadas com rigor acadêmico, para um público que se reúne em salas de aula improvisadas nas redes sociais.
No livro, Lilia, que é professora da Universidade de São Paulo (USP) e autora de livros como “Lima Barreto: triste visionário”, passa em revista a História brasileira e mostra como as desigualdades, o patrimonialismo e outros vícios moldaram o autoritarismo brasileiro.
Ao GLOBO, Lilia falou sobre como as redes sociais reforçam as hierarquias e como é ser uma intelectual no Instagram.
• O livro começa com a desconstrução do mito do Brasil pacífico onde todas as raças convivem em harmonia. Por quê?
O objetivo do livro é mostrar como muitas formações do passado têm a ver com o nosso autoritarismo presente. Um dos grandes nós da sociabilidade nacional é a escravidão, que gerou o racismo estrutural que impede a democracia. Nossos autoritários construíram um mito de um país pacífico e sem hierarquias. Mas sabemos que um país que admitiu a escravidão por tanto tempo não pode ser livre de violência e hierarquias. Em períodos autoritários, narrativas históricas são particularmente acionadas. Por isso, me preocupei em politizar esse discurso e tirar dele o véu da neutralidade.
• O livro trabalha com uma dicotomia entre história e memória. Por quê?
Memória e história às vezes andam às turras. A história pode ser oficial, mas é pautada em documentação e pode ser aferida. A memória é subjetiva. Nações são constituídas com base em memória coletiva, que é imaginação e afeto. A memória pode nos alertar, mas também pode ser a memória de um passado de concórdia que não se sustenta. A memória coletiva pode ser um mote de afeto ao país e construir cidadania, mas também pode ser manipulada por governos autoritários que são fundados na emoção.
• Você afirma que a linguagem digital ajudou a amplificar hierarquias e formas de autoridade, produzindo um “populismo digital”. Como ?
A internet teve grande importância para democratizar o saber. O perverso é que, sendo capazes de produzir diferença, inclusão e democracia, as redes sociais têm sido acionadas por governos autoritários para promover maior segmentação e polarização. Usar as redes para apresentar o chefe de Estado como um messias é desvirtuar o potencial democrático delas e fermentar o patrimonialismo, que produz estruturas sociais enrijecidas. É o velho populismo com uma nova roupagem. O que mudou foi a escala. Pelas redes, o populista pode interagir com muito mais gente e atacar a imprensa e as universidades para afirmar que a verdade se concentra apenas nele.
• A perpetuação das famílias políticas é um dos temas do livro. Os três filhos do presidente Jair Bolsonaro são atuantes no governo, embora tenham sido eleitos para cargos legislativos. Isso é uma forma de patrimonialismo?
É uma exacerbação do patrimonialismo que conhecemos muito bem, de famílias como os Sarneys. Os filhos de Bolsonaro se portam como se fossem dignitários de um monarca. Esse personalismo é perverso porque autoriza pessoas a assumir funções para as quais não foram eleitas. Quando tudo é questão de família, qualquer adversário vira inimigo — e corrupto. Nós passamos os últimos 30 anos lutando por democracia plena e colocamos uma família imperial no poder.
• Por que o populismo é com frequência anti-intelectual?
Ataques à imprensa e à intelectualidade são ataques a possíveis críticos. São tentativas de deslegitimar todas as falas que não a do líder, de transformar adversários em inimigos. Quem ataca a academia e seus critérios de avaliação acusa um discurso competente de incompetência. São ataques ideológicos, que recusam o diálogo e os dados, as armas da academia, para nos desautorizar por meio de xingamentos e da negação. Não é só um ataque à academia, mas a todos que veem na educação um grande gatilho para a promoção de um país mais igualitário.
• Como é ser uma intelectual no Instagram?
Em momentos de crise, quando verdades são questionadas, eu me sinto forçada a atuar mais publicamente, o que não me exime dos rituais da academia. Quando entrei no Instagram, eu era muito mais atacada do que agora. Diminuiu depois que eu comecei a responder os comentários com dados. Há espaço para conteúdo nas redes sociais. Eu tento dialogar. Existe um público que foi abandonado nas eleições, porque não se localiza nem de um lado e nem do outro, mas quer informação e não sabe mais onde procurar. É um público jovem, que veio sem a socialização da imprensa escrita. Eu continuo sendo uma acadêmica, mas aprendi que podemos ocupar esse outro espaço. Se não, outros o farão.
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