sábado, 25 de maio de 2019

Perplexidades

Roberto DaMatta: - O Estado de S. Paulo

Hoje, a questão é constatar como o governo destoa de um estilo politicamente correto de governar

Permita o leitor que o cronista fale de perplexidades. Uma das mais intrigantes é a seguinte: quando um mentiroso irreversível diz que mente ele fala a verdade?

E quando uma coletividade nascida da engrenagem da aristocracia branca estrangeira com escravidão negra também estrangeira, soldadas por mestiçagem e por uma máquina estatal hierarquizada administrada por uma elite absolutamente consciente do seu papel de mandona diz que é igualitária – você acredita?

Uma outra perplexidade é o recorrente projeto das elites de promover o progresso, a riqueza e a democracia do Brasil e, no entanto, o que tenho visto é uma sucessão de ciclos nos quais quem chega ao poder enobrece enquanto o País fica mais acachapado.

A perplexidade atual é constatar como o governo destoa frontalmente de um estilo politicamente correto de governar. As reações a essa desarmonia são sintomáticas de um elitismo feroz, forjado por redes de elos pessoais e simbólicos que mantiveram sua autoridade (e seus lucros políticos e monetários), deixando mudar regimes. Os regimes mudam, mas o núcleo elitista (velho ou novo) permanece na sua matriz aristocrática garantida por leis.

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Dizem que não se governa um país na base do confronto e eu tendo a concordar. Ressalvo, entretanto, que, no Brasil, aprendemos tudo menos a dizer não. Somos da moda e não queremos “ficar mal no filme”. Daí a obrigatoriedade de concordar e compreender as falcatruas dos amigos e dos recomendados que comungam do nosso estilo de vida patriarcal que não permite nome feio ou ponto fora da curva. Tal estilo tem sido sustentado pelo Estado que – eis outra perplexidade – não teve uma raiz democrática, embora seja formalmente um “Estado democrático de direito”.

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Quem foi que inventou o Brasil? Lamartine Babo fez essa pergunta crítica na marchinha carnavalesca História do Brasil, em 1934. Tempos que culminaram numa ditadura. Por que a questão é crítica? Pela simples razão de conduzir às origens. Para nós humanos, nada é mais básico do que o acesso às origens. Deus deve estar acima de tudo porque é o Criador do mundo e dos seus princípios.

Mitos de origem e origens como mitos são a base dos sistemas políticos e sociais. John Adams, Benjamin Franklin, Alexander Hamilton, John Jay, Thomas Jefferson, James Madison e George Washington são os “pais fundadores” dos Estados Unidos da América cuja sociedade tem um lado hiperindividualista. Origem, fundação, descoberta e criação estão sempre ligados a uma dimensão hierárquica ou aristocratizante e a algo divino. A seres e objetos marginais ao nosso mundo rotineiro, mas necessários à sua fecundidade e continuidade.

O Brasil, diz a marchinha, foi inventado por Seu Cabral, dois meses depois do carnaval. Há quem – observando a nossa fúria autodestrutiva – duvide?

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A divisão do poder absoluto e divino dos monarcas foi feita na base de um número mágico. Qualquer semelhança entre a Santíssima Trindade e os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário é mera coincidência, exceto para o antropólogo, mas isso não cabe numa crônica.

O fato é que a divisão republicana foi adotada na América Latina com um forte sotaque real, pessoal e relacional – autoritário – como eu tenho mostrado nos meus livros. As repúblicas latino-americanas não caíram num terreno virgem. Foram proclamadas contra vice-reinados e, no nosso caso, em contraste com um império. Joaquim Nabuco percebeu isso porque conhecia bem o nosso viés personalista, relacional e – não custa acrescentar – elitista e cabotino.

O republicanismo aplicado ao nosso continente elege reis, como dizia Nabuco. Com a diferença marcante do viés messiânico-marxista que, com a Guerra Fria, deu um novo impulso ao caudilhismo pessoal (caso cubano) ou corporativo-partidário (caso brasileiro), apelando para conceitos que remeteriam às origens da ordem social como propriedade, liberdade e opressão.

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Minha última perplexidade foi escrita por Hölderlin – um poeta alemão: “Onde existe perigo, existe esperança”.

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