terça-feira, 3 de maio de 2011

Infância roubada

ROSELY SAYÃO


Pratica-se a insensatez de empurrar as crianças para um futuro que só se pode imaginar como será

UMA JOVEM mulher escreveu pedindo orientação. Ela contou que tem pouco mais de 30 anos, e o marido, quase 70. Juntos tiveram uma filha, hoje com quatro anos. Ela quer saber como preparar a garota para o luto do pai.
Uma outra tem um filho de seis anos que frequenta uma escola em que o primeiro ano do ensino fundamental é tratado de forma cuidadosa, segundo inclusive a orientação do MEC, já que as crianças ainda estão na primeira infância. Apesar de perceber o quanto o filho se desenvolve brincando na escola, ela tem uma dúvida que não a deixa em paz.
Ela pensa que, já que a partir do segundo ano os estudos terão de ser levados com mais seriedade pelo filho, talvez seria melhor a escola cobrar mais das crianças desde o primeiro ano. Por isso, fica na dúvida se não deveria colocar o filho em uma escola que já fizesse isso, mesmo sabendo que o garoto adora ir para a escola atual e que ela colabora bastante para o desenvolvimento de seu potencial.
Essas duas mulheres, que trazem questões aparentemente tão distintas, nos mostram como temos tratado as crianças pequenas.
Temos nos ocupado tanto com seu futuro que esquecemos que elas têm um presente que precisa ser vivenciado, explorado, vivido até as últimas consequências. Aliás, antes de tudo, vamos lembrar que a maneira como vivemos o presente ajuda a desenhar o traçado do futuro.
Será que, porque o destino da criança é crescer, precisamos fazer com que isso aconteça o mais rapidamente possível? Não faz o menor sentido pensar e agir assim. Seria a mesma coisa pensar que, já que vamos mesmo morrer, não faz o menor sentido viver, não é verdade?
Vamos, mais uma vez, tentar aplicar o mesmo raciocínio à vida adulta.
Um profissional sabe que, para alcançar uma meta desejada na carreira, terá de, em um futuro próximo, realizar um trabalho de alguns meses em outro país. Ele sabe também que isso acarretará um afastamento da família por esse período.
Por acaso julgaríamos sensato se ele pensasse que a maneira de amenizar esse tempo de afastamento seria começá-lo a praticar desde já, meses antes de o fato acontecer?
Claro que não. Ao contrário: se pudéssemos dar algum conselho a ele, diríamos o oposto: "Aproveite o convívio familiar o máximo que puder antes de viajar". É ou não é verdade isso?
E por que, justamente com as crianças pequenas, praticamos a insensatez de empurrá-las em velocidade cada vez maior para um futuro que só podemos imaginar como será?
Vai ver a infância nos incomoda, porque mostra que o nosso futuro já não é tão amplo quanto gostaríamos que fosse: já vivemos parte dele.
Ou então já não lembramos mais que a maioria dos adultos chegou onde chegou tendo vivido calmamente a sua infância, sem grandes preparações para o futuro. E isso faz com que a gente tente atropelar a infância de quem hoje é criança.
Ou será que queremos roubar a infância de nossas crianças porque não sabemos o que fazer com elas, porque elas atrapalham a nossa vida presente?
Sim: a filha da primeira leitora citada terá de, algum dia, passar pelo luto da perda do pai. Aliás, da mãe também e de muitos outros entes queridos. Em que ordem?
Não sabemos. Por que, então, começar a matar desde já o seu pai se ele está bem vivo ao lado dela?
O filho de nossa segunda leitora também terá de enfrentar maiores responsabilidades a partir do próximo ano letivo. Então, por que não deixar que aproveite, brincando muito, o último ano da primeira parte de sua infância?
A criança deve ter o direito de ser criança enquanto pode. Deveríamos, todos, defender essa causa.


ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?"
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