sábado, 30 de julho de 2011

'Há certa comunicação social irresponsável' - António Guterres

Catarina Alencastro
O Globo 

Entrevista: António Guterres

Alto comissário para refugiados da ONU acredita que populismo político na Europa aumenta hostilidade a imigrantes

O ex-primeiro ministro português António Guterres comanda uma verba anual equivalente a R$5,1 bilhões para ajudar o total de 25,2 milhões de refugiados atualmente no mundo que estão sob a proteção do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). O alto comissário da ONU desembarca em Brasília na semana que vem para reunir-se com autoridades do governo do Brasil - que vem aumentando suas doações ao órgão. Nesta entrevista concedida pelo telefone, de Genebra, ele se diz convencido de que o atentado na Noruega é um alerta contra as campanhas anti-imigração, defende que a Europa deixe suas portas abertas para refugiados, fala sobre a dificuldades da Somália e classifica como "generosa" a política brasileira relacionada ao tema.



O senhor acredita que o duplo atentado na Noruega vai afetar a discussão sobre a política de imigração e refugiados na Europa?

ANTÓNIO GUTERRES: Nós temos preocupação de que a Europa mantenha suas fronteiras abertas e assuma sua responsabilidade em matéria de refúgio. Temos assistido ao sentimento em alguns países europeus da emergência do fenômeno de populismo político, há uma certa comunicação social irresponsável que tem desencadeado reações negativas em relação aos imigrantes, mesmo manifestações de racismo e xenofobia, como tivemos uma trágica na Noruega.

A intensificação do fluxo migratório do mundo árabe para a Europa pode gerar novos conflitos como o que ocorreu na Noruega?

GUTERRES: Espero sinceramente que não. O número de pessoas que cruzaram da Líbia para a Europa é muito reduzido, apenas cerca de 2% dos líbios vieram para a Europa. Portanto, não há nenhuma razão para alarme no quadro europeu. Eu não prevejo que este movimento (xenófobo) venha a intensificar-se muito fortemente. O que aconteceu na Noruega, uma tragédia de enormes proporções, tenho esperanças de que seja também um grito de alerta: que leve os europeus a compreenderem que campanhas contra os estrangeiros são coisas que têm por vezes consequências junto daqueles que são loucos de criação de um clima negativo em relação à imigração.

O que o Acnur está fazendo para ajudar os famintos da Somália?

GUTERRES: Junto com nossos parceiros e outras agências estamos fazendo o possível para garantir que essas pessoas tenham finalmente a assistência e proteção devidas. Há cerca de 200 mil novos refugiados que cruzaram a fronteira da Somália fugindo do conflito e da fome e que se recolheram no Quênia, na Etiópia e no Djibuti. Num desses campos de refugiados (Dolo Ado, na Etiópia), os índices de subnutrição aguda são de 50% e de subnutrição aguda severa de 28% nas crianças com menos de cinco anos, quando na África o índice de subnutrição aguda severa é de 1%. Estamos perante uma tragédia humanitária sem precedentes. Eu falei com mães que tinham perdido três filhos no caminho, tendo andado de duas a três semanas a pé até encontrarem segurança e assistência.

A milícia al-Shabab tem impedido a entrada de ajuda humanitária em regiões sob seu comando?

GUTERRES: Há vários atores que têm podido agir nessas zonas, como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha e o Comitê Norueguês para Refugiados. Portanto alguma ajuda humanitária tem sido possível, mas completamente desproporcional à dimensão trágica do drama.

Os campos do Quênia e da Etiópia estão superlotados, e há denúncias de que a ONU tentava transferir refugiados para um campo do Quênia onde não há as menores condições básicas. Como são as verdadeiras condições nesses campos?

GUTERRES: Essa questão é um simples mal-entendido. Nós estamos com campos altamente congestionados, temos cerca de 400 mil pessoas numa área que foi prevista para 90 mil, e ao fim de muito tempo foi possível obter autorização do governo queniano para utilizar uma zona de expansão dos campos com duas áreas, info 2 e info 3. O info 3 ainda não está de fato estruturado, só que as necessidades são tantas e o congestionamento é tal que a nossa decisão foi a de avançar para ocupar essas duas extensões, que agora foram postas à nossa disposição para tentar descongestionar ao máximo a situação trágica em que temos muita gente na periferia dos campos, em áreas muito piores que aquelas que agora estamos utilizando.

O Brasil tem um papel importante no mundo na questão do asilo?

GUTERRES: É importante reconhecer que hoje o Brasil é um dos países do mundo que têm a legislação mais perfeita em matéria de asilo, é um país que tem tido uma política muito generosa de acolhimento não apenas dos refugiados que chegam ao Brasil, mas também reassentamento de refugiados vindos de zonas onde é muito problemática a sua proteção. O Brasil foi pioneiro, graças ao prestígio internacional do Brasil e seu reconhecido equilíbrio, foi possível pela primeira vez fora do mundo árabe reassentar palestinos que estavam em situação trágica na fronteira entre o Iraque, a Síria e a Jordânia para o Brasil.


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