quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

INFERNO E PARAÍSO




EDITORIAL
FOLHA DE S. PAULO


Por certo, existe o Carnaval. Mas a ideia de que o Brasil é uma espécie de paraíso onde pouco se trabalha corresponde, em boa medida, a um preconceito, quando se tomam em comparação os padrões vigentes nas sociedades europeias, por exemplo.
Já se a métrica for a realidade de países asiáticos, não há razão para tomar como especialmente infelizes as declarações do empresário taiwanês Terry Gou, presidente da Foxconn, a respeito da operosidade dos brasileiros.
O Brasil -país em que a empresa de componentes eletrônicos planeja investir uma soma bilionária para fabricar telefones e tablets- tem grande potencial, disse Terry Gou numa entrevista à TV taiwanesa. Mas os brasileiros "não trabalham tanto, pois estão num paraíso", acrescentou o investidor.
A frase, relatada pelo correspondente da Folha em Pequim, Fabiano Maisonnave, insere-se entre outras ressalvas feitas pelo empresário quanto à possibilidade de o Brasil tornar-se fornecedor internacional de componentes eletrônicos.
Quaisquer que sejam os seus julgamentos sobre o Brasil, as declarações do empresário embutem um paradoxo típico da era globalizada. Refletem o clássico modelo da ética do trabalho -antes associada aos países anglo-saxônicos, agora proeminente nas economias do Oriente. Ocorre que, na sociedade de consumo contemporânea, a esse modelo veio sobrepor-se outro -o da ética empresarial.
Nem sempre os modelos coincidem. Haja vista as frequentes denúncias a respeito de superexploração de mão de obra nas economias asiáticas, que já se voltaram, por exemplo, contra empresas de artigos esportivos e agora ganham projeção no mundo da informática.
A tal ponto que a Apple, preocupada com o impacto moral negativo em sua imagem, instituiu um sistema de inspeções de fornecedores para precaver-se de acusações dessa ordem. A própria Foxconn, de Terry Gou, foi objeto de severas reportagens e denúncias a respeito.
É de perguntar em que medida a globalização dos mercados -e dos próprios hábitos culturais- permitirá, no futuro, a coexistência entre regimes "infernais" e "paradisíacos" nas relações de trabalho. Sob crescente pressão pública, é possível que noções como a de Terry Gou venham, aos poucos, parecer bem menos modernas do que os produtos que fabrica.
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