O ESTADÃO
Pulamos da era do animal para a era da máquina, pilotando carros e jet skis como num rodeio. A diferença é que o cavalo age com inteligência, mesmo quando o cavaleiro é burro
Repetidos acidentes, até fatais, por uso de veículos por pessoas inabilitadas recebem entre nós o rótulo de "fatalidade". Mas há fatalidades previsíveis, que podem ser evitadas e não o são. Alguém é responsável por elas. A adoção de equipamentos e instrumentos que dependem de maturidade e habilitação para ser manejados deu-se no Brasil como uma espécie de salto do passado ao futuro, sem passagem pelo presente da ressocialização e da reeducação para seu uso. Pulamos da era do cavalo para a era da máquina, dirigindo máquina como quem dirige cavalo. A diferença é que o cavalo é um animal que age inteligentemente, mesmo quando o cavaleiro é burro. No caso da máquina, se falta prudência, maturidade e habilitação, não só o usuário corre risco. Também a sociedade o corre. Nesse risco temos vivido. Basta fazer um recorte temporal, mesmo num curto período, para que nos defrontemos com uma coleção de casos recorrentes.
A morte da menina de 3 anos de idade na praia, em Bertioga, atingida por um jet ski desgovernado, pilotado por um moleque de 13 anos, foi apenas um dos casos de uso irresponsável de máquinas mortíferas nos dias do carnaval. Na represa de Guarapiranga, dois jet skis se chocaram e um dos pilotos, de 20 anos, ficou ferido. Os dois pilotos, maiores de idade, não tinham habilitação, só concedida a quem tenha 18 anos completos. Em novembro, numa lagoa de Ribeirão Preto, dois jet skis, dirigidos por um adolescente de 15 anos e por um homem de 28 anos, se chocaram. O homem morreu. Nenhum dos dois tinha habilitação, concedida pela Marinha.
Não só na água a síndrome de Superman produz vítimas. No Rio Grande do Sul, na praia do Quintão, nestes mesmos dias de folia, um jovem de 18 anos dirigindo um carro entrou numa rua interditada aos veículos pela realização do desfile de carnaval local e atropelou 17 pessoas, das quais 9 foram hospitalizadas. Em fevereiro de 2011, um carro entrou propositalmente sobre os ciclistas de uma demonstração do movimento Massa Crítica, numa rua de Porto Alegre, atropelando vários. Nove foram hospitalizados, com ferimentos leves. No caso de Bertioga, não houve nem mesmo a prestação de socorro à vítima. A família do atropelador deixou o local de helicóptero.
O País continua regido por uma cultura da transgressão, própria de uma sociedade de senhores e de escravos. Nela, diferentemente do que ocorre em sociedades civilizadas, o outro é irrelevante; relevantes são o sentimento de superioridade em relação aos demais e a esperteza para escapar das formalidades da lei. Herdamos essas concepções da sociedade colonial, que por ser fundada na desigualdade era também fundada no pressuposto de que o ter e o mandar sobrepõem-se ao ser. Passou o tempo, e o advento da sociedade moderna - e com ela o da classe média e da ascensão social -, em vez de disseminar o cidadão e a igualdade, difundiu a aspiração da afirmação da desigualdade em nome dos valores retrógrados do antigo regime. A lei mudou, na letra e na forma, mas o egoísmo consumista e moderno revigorou costumes e mentalidades.
Há deturpação e crime na licença que usuários se dão de dirigir bêbados um carro ou dirigir um jet ski como se fosse um cavalo num rodeio, o que é próprio de uma sociedade em que nem sempre é a função do objeto que determina seu emprego, mas o abuso, o prazer mórbido de transgredir, a ilusão de poder que dele decorre. Incorporamos os meios e confortos da modernidade, mas não suas funções sociais e, portanto, não as regras de civilidade nelas pressupostas, o preço a pagar.
O caso de Bertioga é particularmente grave porque envolve duas crianças. O atropelador, nos procedimentos para protegê-lo das consequências do crime que cometeu, recebe a feia lição de que mesmo o assassinato pode ser contornado. Mas carregará para o resto da vida a consciência de que tirou a vida de outra criança. Os especialistas que se manifestaram já deram a entender que ele não será punido, o que se compreende. De fato, ele não é um infrator; infrator é quem lhe colocou nas mãos a máquina mortal, sabendo que se tratava de uma ilegalidade e que havia risco para terceiros e para o próprio. Quando muito, os responsáveis indenizarão a família da vítima, como já aconteceu em casos parecidos. Tudo se resolverá na mesquinha lógica mercantil que dissemina de maneira irresponsável a cultura do consumo sem freio, mesmo que seja colocando instrumentos de violência nas mãos de imaturos. Pais e parentes se tornaram acólitos e servos dessa cultura de ostentação, entulhando suas vidas e a de seus filhos com instrumentos que, no limite, matam. Afirmam prestígio na exibição de signos de status à custa de crianças e jovens, até dos próprios filhos, pondo-lhes nas mãos ferramentas de homicídio. A indulgência da lei e dos tribunais acaba fechando o círculo vicioso da impunidade, que consagra a injustiça e não dá ao transgressor a oportunidade de expiar seu delito. Viverá com a alma manchada pelo sangue alheio.
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