sexta-feira, 18 de maio de 2012

Repensando a responsabilidade do Estado

Jessé Torres Pereira Junior

Correio Braziliense


Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

O direito chama de responsabilidade a obrigação secundária que se substitui a outra obrigação, primária, que, prevista na Constituição, nas leis ou nos contratos, não foi cumprida. O conceito desafia melhor compreensão quando aquele que deixou de cumprir a obrigação primária for o Estado, seus agentes ou parceiros. Daí nasce, também para eles, o dever de responder pelos efeitos danosos do descumprimento, que tanto se apresentam no campo civil (perdas ou diminuições patrimoniais, bem como lesões morais, que deverão ser indenizadas), administrativo (desatendimento a princípios e normas reguladoras dos serviços públicos, que devem ser restaurados) ou penal (condutas que configuram crime, cuja resposta é a sanção privativa da liberdade ou restritiva de direitos).

Raro é o dia em que o noticiário jornalístico do século 21 não veicula matérias sobre os danos e decepções causados pelo não funcionamento ou o funcionamento reputado defeituoso de serviços destinados ao atendimento da população, seja os prestados diretamente pelos poderes do Estado, seja aqueles cuja execução delega a particulares, mediante concessão, permissão ou outras espécies de parcerias.

O noticiário traduz, de um lado, e estimula, de outro, cultura de cobrança cada vez mais intensa, dirigida às autoridades estatais e paraestatais, por todas as mazelas e frustrações que afligem o cotidiano da prestação dos serviços públicos nas sociedades contemporâneas. A tal ponto que as estatísticas das demandas levadas ao Judiciário em maior número apontam, em posição destacada, as ações cujos autores exigem da administração pública, de seus agentes, delegatários e parceiros, a reparação dos danos ou a adoção de medidas que os previnam, sob os mantras da censura à impunidade e da isonomia no tratamento devido a todos.

Nas entrelinhas dos pleitos indenizatórios e punitivos, aninha-se a esperança — ou a desesperança — de a responsabilização total vir a ser o caminho para forçar-se, pelo temor das consequências, atuação mais eficiente por parte daqueles entes e seus agentes ou parceiros, obrigando-os a planejar as ações, especificando-lhes prévia e transparentemente os resultados de interesse público a produzir, bem como a controlar e avaliar a respectiva execução a custos razoáveis, de modo idôneo e probo.

Diante desse cenário, que reflete as expectativas da cidadania republicana, o direito público tem formulado, nos sistemas jurídicos ocidentais, três fundamentais indagações de que fluem inúmeras outras, por ora sem resposta uniforme e tranquilizadora para a ordem jurídica: 1. Seria a responsabilidade do Estado um polivalente (preventivo e redistributivo) instrumento de engenharia social? 2. Uma responsabilidade total das administrações públicas, por todos os fortuitos que acompanham os riscos próprios das atividades que realizam, constituiria erro histórico tão grave quanto o antigo princípio da irresponsabilidade do Estado, que, aqui e ali, ainda resiste à superação pela abrangente responsabilidade? 3. A haver limites, quais seriam e como sistematizá-los e distingui-los, cientificamente, com reconhecimento supranacional?

Não há sociedade pretensamente civilizada que não esteja a confrontar-se com essas indagações em maior ou menor escala. A brasileira deve aproveitar as reiteradas oportunidades que o comportamento do Estado e de seus agentes, em casos concretos ocorridos em todas as esferas e hierarquias, tem oferecido para repensar-se o tema da responsabilidade, redefinindo conceitos éticos e jurídicos, preenchendo lacunas normativas, removendo obstáculos procedimentais, afastando hesitações.

E sem perder de vista que grande número das ações judiciais de responsabilização do Estado é proposto por iniciativa do Ministério Público ou de particulares hipossuficientes sob a assistência da Defensoria Pública, órgãos do próprio Estado que ganharam novas competências e atribuições na Constituição de 1988.

Por via reflexa, o contribuinte é onerado triplamente: custeia o necessário funcionamento de instituições públicas de controle e mediação — como o são, também, os tribunais judiciais e de contas; arca com superfaturamentos e desperdícios na execução de obras e serviços planejados de modo inadequado ou realizados/prestados com desvios de improbidade; paga a conta de condenações do Estado à prevenção ou à reparação de danos gerados pelo defeituoso funcionamento dos serviços públicos. Só por isso o tema já deveria ocupar prioridade na agenda da sociedade e do Estado. Essa dolorosa situação — como demonstram recentes estripulias e audaciosos acumpliciamentos de agentes supostamente representantes da vontade de uma e da presença de outro — exige enfrentamento imediato e sem trégua.
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