quarta-feira, 23 de maio de 2012

O futuro do Mercosul





RUBENS BARBOSA
O ESTADÃO 


O Alto Representante do Mercosul, Samuel Pinheiro Guimarães, publicou, na revista Austral, da UFRGS (janeiro/junho de 2012), ensaio em que pretende examinar o futuro do Mercosul e faz considerações mais amplas sobre as circunstâncias em que o grupo regional foi criado, sua evolução nos últimos 20 anos, as dificuldades atuais e o impacto da China.

Na esperança de que seja iniciado um efetivo debate sobre a situação atual e as perspectivas do processo de integração sub-regional, vou-me limitar a comentar alguns aspectos factuais de suas ideias sobre o Mercosul que, parece-me, merecem reparos, pela imprecisão ou pela distorção motivadas por considerações alheias à realidade.

Ao questionar os objetivos e as razões da criação do Mercosul, Guimarães assinala que em 1991, quando foi assinado o Tratado de Assunção, o pensamento neoliberal, representado pelo Consenso de Washington e pela supremacia dos EUA, era hegemônico; que o Mercosul foi criado para ser um esquema de liberalização comercial como uma etapa de um processo virtuoso de eliminação das barreiras tarifárias ao comércio e plena inserção no comércio internacional; que em 2012 a situação mudou completamente, afetando as perspectivas de integração regional e do Mercosul, na medida em que isso depende da vinculação cada vez maior de suas economias e políticas, o que justificaria uma guinada nos objetivos do processo de integração.

Todo o artigo de Samuel Pinheiro Guimarães está construído como se tudo o que existia antes de 2003 fosse fruto da submissão dos governos aos ditames de Washington e só depois tivessem ocorrido gestos e medidas em defesa da soberania dos países-membros.

O objetivo inicial do tratado é a liberalização do comércio entre os países-membros, com o objetivo de se chegar, numa segunda etapa, a uma integração econômica. A visão politicamente distorcida nos últimos dez anos fez esse objetivo ser perdido, com retrocesso em todas as áreas e uma ênfase indevida nas áreas políticas e sociais. Além da perda do sentido original, prevaleceu a visão de que o Mercosul deveria ser um bastião antiamericano, em torno do qual todos os países da região se reuniriam para lutar contra as investidas do "Império" na América Latina. Colocados diante da opção Mercosul/EUA, o resultado não poderia ser outro: os demais países escolheram fazer acordos com os EUA. Só não fizeram isso o Mercosul e os bolivarianos.

Guimarães defende a ampliação geográfica do Mercosul ao conjunto da América do Sul, a pretexto de ser essa expansão a única maneira de fortalecê-lo econômica e politicamente. Como a Venezuela está prestes a aceder ao Mercosul sem cumprir nenhum compromisso assumido no protocolo de adesão, nem o da Tarifa Externa Comum, os outros países teriam o mesmo tratamento e ingressariam por motivação política, criando outra significativa distorção comercial e uma ainda maior disfunção do grupo.

As assimetrias, acredita Guimarães, resultaram de grandes diferenças de infraestrutura física e social, de capacitação de mão de obra e de dimensão das empresas, o que levaria os investimentos privados a não poderem distribuir-se de forma mais harmônica no espaço comum. Na sua opinião, o Tratado de Assunção não levou em conta essas supostas assimetrias - que existem em qualquer bloco -, o que teria provocado muitas exceções e regimes especiais, à margem e contra a liberalização prevista. Os Estados maiores - no caso, o Brasil apenas - deveriam generosamente contribuir com "financiamentos assimétricos" para compensar essas diferenças.

O Mercosul, contudo, nunca foi pensado como um mecanismo de correção de assimetrias, e sim como instrumento de inserção competitiva dessas economias no mercado internacional, e é sob esse ângulo que deve ser avaliado. A ideia de assimetria, aceita sem análise crítica pelo Brasil, é contrária à simples realidade do comércio internacional, baseado justamente na diferença entre os países; ela justifica a extrema complacência com as medidas restritivas, ilegais, contrárias ao Mercosul e à OMC, e sua redução passou a exigir compromissos financeiros que recaíram, na quase totalidade, sobre o Tesouro brasileiro.

Segundo Guimarães, a estratégia e as políticas de desenvolvimento implementadas pela China são um dos fatores que criam um ambiente propício à adoção de medidas para tornar o Mercosul um organismo para promoção do desenvolvimento econômico. O engano aqui é mais grave: o suposto modelo chinês não é reproduzível em nenhum outro lugar, menos ainda no Mercosul, e a China, longe de pretender uma relação igualitária, repete o mesmo padrão de comércio Norte-Sul, rejeitado pelo autor do ensaio.

Guimarães pretende que o Mercosul seja um organismo de promoção do desenvolvimento econômico dos Estados isolados e em conjunto. Como se sabe, nenhum mecanismo setorial de política comercial pode servir como alavanca de desenvolvimento. A gradual transformação do Mercosul num organismo que se propõe a promover o desenvolvimento econômico dos Estados-membros, inspirada e apoiada pelo então secretário-geral do Itamaraty, levou o grupo a adotar uma atitude introvertida, refletida no protecionismo ilegal, e defensiva em relação à globalização, deixando a liberalização comercial em distante segundo plano. Enquanto a Ásia, por um lado, realiza uma ampla integração produtiva com acordos de livre-comércio entre China, Japão e Coreia do Sul, entre a Asean e os EUA, e começa a se desenhar um acordo comercial entre a União Europeia e os EUA, o Mercosul, de seu lado, só assinou três acordos comerciais (com Israel, Egito e Autoridade Palestina), sem maior relevância para o Brasil.

Foi essa visão equivocada que levou o Mercosul à crise institucional. Temo que, contra o interesse nacional, seja difícil hoje retomar o projeto inicial.
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