domingo, 17 de junho de 2018

A multidão e a rua

José de Souza Martins:  Eu & Fim de Semana | Valor Econômico

Um novo cenário de manifestação social e política vem surgindo no Brasil e um novo protagonista do processo histórico: a rua e a multidão. A política já não é feita pelo cidadão, pelo sujeito político que está na Constituição e nas leis. É feita pelo anônimo, pelo indefinido, pelo descaracterizado, pelo negativo e pela negação. Não é feita pela certeza da consciência individual, mas pelo caráter difuso da consciência coletiva, e por quem não assume abertamente o que quer e o que faz. Aquele que, se já não é sujeito da Constituição, pode sê-lo do Código Penal.

Uma das modalidades de ação dessa coletividade inquieta, agressiva e desorientada é a dos linchamentos. Os praticados à noite são mais numerosos e mais violentos do que os diurnos. É claro sinal de que o linchador é tendencialmente o sujeito que quer agir, mas não quer mostrar a cara. É um anticidadão. Sabe que sua ação é criminosa, que pode ser apanhado pela lei, que desrespeita, portanto, o outro e a ordem social, mesmo que tenha motivos para a indignação que é mãe do ódio vingativo.

Já no plano político, nas mais agressivas manifestações de rua da multidão, as máscaras têm dissimulado o medo não confessado dos manifestantes. Por meio delas mostram que não têm coragem de assumir o que querem e o que querem impor aos outros.

O mascarado é a figura emblemática e negativa do novo agente da ação política. Na máscara e no anonimato, a covardia vem se tornando o valor de referência dos que peitam as instituições e impõem à maioria seus desígnios subalternos e a ignorância daquilo que pretendem. A práxis reduzida à ira, ao quebra-quebra, às invasões, à coação, ao impedimento de que o outro se proteja em seus direitos e expresse o seu querer político com base em sua própria consciência e em seu próprio entendimento do que o país carece e pode.

A nova política é a da usurpação de direitos de expressão da diversidade do que somos e a da omissão em relação aos nossos deveres políticos. A política, no Brasil de hoje, deixou de ser um contrato político. Estamos sob a ditadura do afã de riqueza, ainda que por meio da corrupção, do afã de poder e de privilégios econômicos, sociais. São técnicas sociais para calar o outro e reduzi-lo ao nada do conformismo e da sujeição à tirania das minorias intolerantes e autoritárias que pensam com a cabeça do ressentimento e do ódio. Estamos tolhidos pelos freios violentos à tomada de decisões com base na premissa do bem comum e da comunidade de destino.

Hoje, a política da ignorância e mesmo os agrupamentos pseudopolíticos que a praticam agem para dividir o Brasil e instituir o reino dos frágeis e a tirania dos ambiciosos e autoritários. O historicamente possível, a emancipação de todos, a superação de nossas contradições, estão bloqueados pela crescente intolerância antidemocrática. É um fazer política com base em calar a boca do outro. Quem não sabe falar impõe silêncio e censura ao bom senso de quem tem o que dizer, mas teme ameaças e agressões. Começa a ficar difícil distinguir ação política de banditismo.

Tanto a lógica dos linchamentos quanto a lógica do caminhonaço baseiam-se na premissa da irrelevância do outro, da reivindicação de direitos mediante a negação dos direitos dos demais, no mínimo o direito à Justiça institucional, do juiz e terceiro que julga com base em concepções de direito reconhecidas, legítimas e legais. A forma de justiça em que as partes tanto podem ganhar quanto podem perder, tanto podem ter razão quanto podem não tê-la.

Os caminhoneiros, em vez de questionar o governo que governa mal e o Estado e sua política de favorecimento preferencial dos que podem e têm, resolveram punir a sociedade. E por meio dela ampliar muitas vezes o que na verdade é ínfima capacidade de fazer pressão em favor de sua causa. Já os que lincham, ao mobilizar a raiva súbita e o medo de circunstância, disseminam o primado do justiçamento, supondo equivocadamente que justiçamento e justiça são a mesma coisa.

Tanto no caminhonaço quanto nos linchamentos a multidão não tem cara nem reconhece diferenças. Ao não ter cara definida no agredir tampouco pode ter cara para receber os supostos benefícios de seus atos. Suas ações não transformam a sociedade nem criam instituições e leis mediadoras e viabilizadoras dos novos direitos pelos quais anseia.

É significativo que o cenário desse poder alternativo seja a rua (e a estrada). O sociólogo Henri Lefebvre chama a atenção para o fato novo da rua, lugar do transitório e do poder ausente, como lugar do alçamento dos novos sujeitos das demandas sociais. A tirania da rua e da multidão desconstrói a legitimidade do Estado e institui a iniquidade do mando invisível.
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José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê Editorial).

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