quarta-feira, 27 de junho de 2018

O golpe do voto impresso

Fernando Limongi Valor Econômico


STF perdeu a chance de pôr uma pá de cal sobre as suspeitas

No início desse mês, por meio de uma decisão liminar, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu a impressão dos votos na eleição de 2018. Como de costume, o STF adiou a decisão definitiva e, ao fazê-lo, deixou de se pronunciar sobre o que estava de fato em jogo, a saber, se procedem ou não as suspeitas sobre as urnas eletrônicas. Os ministros parecem não ter se dado conta da seriedade da questão que tinham diante de si.

Aprovado na reforma eleitoral de 2015, o artigo da lei posto no limbo é de autoria do deputado Jair Bolsonaro e visa, segundo seu autor, contribuir para a lisura do processo eleitoral. A premissa do artigo, portanto, é a de que restam dúvidas sobre a apuração dos votos no Brasil. Para ser mais claro: os defensores do voto impresso não confiam nas urnas eletrônicas. Não confiam é, na verdade, um eufemismo, estão certo de que as urnas abrem brechas para fraudes.

A despeito dessa certeza, os defensores do voto impresso nunca apresentaram provas ou fatos objetivos em defesa de sua tese. O argumento é tortuoso: como as urnas não são auditáveis, não há certeza que os votos dados são os contados. E por que não se dá essa certeza? Ora, porque assim se deixaria a porta aberta para a fraude. Mais um passo e se chega à conclusão de que a oportunidade seria necessariamente aproveitada. Assim, da suspeita se deriva a certeza. As garantias oferecidas pelo sistema são desconsideradas de forma olímpica. Vale a teoria da conspiração, que Bolsonaro reafirmou: a decisão do STF provaria o que vem dizendo faz tempo, que há um conluio entre TSE e Datafolha para fraudar as eleições de 2018.

Em suma, o movimento Voto Impresso é capitaneado por quem quer desacreditar os resultados. Sua precursora foi Ana Prudente, candidata derrotada ao Senado pelo PTC, em 2006. O movimento nasceu patrocinado por candidatos inconformados com o pequeno número de votos que recebiam. E ganhou força nas redes sociais após a eleição de 2014.

Naquele ano, um ato para "demonstrar a insatisfação com os resultados das urnas" foi convocado para a semana seguinte ao segundo turno, em Brasília. Em São Paulo, mais atilados e efetivos, os Revoltados On-line, percebendo que demonstrar insatisfação com resultados eleitorais seria inócuo, foram direto ao ponto e convocaram um ato para pedir a "anulação das eleições". Manifestações similares foram convocadas para outras capitais.

De todos os atos, o de São Paulo foi o único que reuniu gente o suficiente para virar notícia. Lobão, devidamente enrolado na bandeira nacional e em cima de um carro de som, deu veio à criatividade para exigir "a recontabilização dos votos". O perito Ricardo Molina, outro com direito ao uso da palavra, recorreu a seus conhecimentos científicos para decretar: "As urnas são fraudáveis. Qualquer um que não é analfabeto sabe disso."

Molina tem mil e um usos para seus conhecimentos técnicos. Trata-se do mesmo perito que se prontificou a sustentar que as gravações da conversa entre Michel Temer e Joesley Batista seriam montagens, que o presidente não teria dito "tem que manter isso aí, viu".

Voltando à manifestação, o deputado Eduardo Bolsonaro (atualmente no PSL-SP, à época, filiado ao PSC) apresentado como "alguém de uma família que vem lutando muito pelo Brasil", aproveitou a oportunidade para lançar a candidatura paterna às eleições de 2018. Garantiu que Bolsonaro pai "teria fuzilado Dilma Rousseff se fosse candidato" em 2014. Expôs, em seguida, a escala de valores da família: "Voto no Marcola, mas não em Dilma. Pelo menos ele tem palavra."

Naquela mesma semana, ao entrar com pedido de auditoria das urnas, o PSDB deu ouvidos a essas vozes e a esses valores. A petição apresentada se baseou em "denúncias das mais variadas ordens, que se multiplicaram após o encerramento do processo de votação nas redes sociais." Trocando em miúdos, a base do pedido eram "fake news" espalhadas pelos inconformados com os resultados.

O senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB) bem que tentou explicar os objetivos de seu partido, mas o máximo que conseguiu foi fazer um jogo de palavras: "Isso não é para contestar o resultado dessas eleições, mas para checar ponto a ponto todo o processo de credenciamento das urnas eletrônicas, das modalidades de fiscalização e apuração dos resultados para que tenhamos maior segurança quanto à lisura das apurações."

Aécio Neves, tempos depois, em conversa gravada por Joesley Batista, diria, entre umas e outras, que o objetivo era encher, se vingar do PT. Mas a irresponsabilidade não parou ali, pois o partido obteve os dados e a autorização do TSE para fazer sua auditoria. A conclusão, após dez meses de trabalho e um custo estimado de R$ 1 milhão, foi a de que não havia indícios de que a eleição fora fraudada.

Mas o partido não se fez de rogado e para salvar a cara, seu relatório trouxe a seguinte pérola: "Sem a regulamentação do voto impresso, a transparência das eleições será comprometida, pois, como dito anteriormente, o respeito a um sistema democrático se dá quando adotamos mecanismos de verificação que tranquilizem o eleitor quanto à lisura do processo eleitoral como um todo." Ou seja, mesmo sem encontrar indícios de fraude, o PSDB manteve sua disposição para apoiar as visões fantasiosas dos que, quando derrotados, questionam a 'lisura do processo eleitoral'.

Não há razão objetiva ou fato que dê base à 'intranquilidade' que alimenta o movimento pelo voto impresso e que o PSDB resolveu encampar. Fora a intolerância e a irresponsabilidade dos derrotados, nada sustenta a suspeição sobre as urnas eletrônicas e a apuração dos resultados.

O STF perdeu a oportunidade de pôr uma pá de cal sobre essas suspeitas infundadas, afirmando com todas as letras que tal suspeição tem nome: golpe.
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Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap.

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