Fernando Henrique Cardoso- Valor Econômico
Os brasileiros se deparam com uma escolha crucial nas próximas eleições gerais, inclusive para a Presidência, em outubro.
É necessária uma convergência de líderes democráticos capazes de encurtar a distância entre a sociedade e a política, reconstruindo a confiança de cima para baixo, ou de outra forma o Brasil vai se juntar a outras democracias em desintegração, como a Venezuela, que se inclinaram para falsos profetas e demagogos que persuadiram a população de que a única solução para a crise está no relacionamento direto de um líder forte com as massas.
Caso se dê a segunda alternativa, a democracia representativa, a liberdade e os interesses públicos vão estar ameaçados.
Desafios estruturais do Brasil
O Brasil enfrenta uma série de problemas estruturais e de curto prazo. A dificuldade de um país de renda média em sustentar seu nível de prosperidade é agravada pelo fato de que o país é industrializado, mas ainda não está totalmente integrado às redes internacionais de produção e comercialização. Uma grande parte do dinamismo econômico do Brasil nas últimas décadas veio do aprofundamento e da expansão do mercado interno. Ainda se carece, no entanto, de uma capacidade sólida para exportar bens industrializados.
Apesar do forte crescimento visto entre o fim da Segunda Guerra Mundial e os anos 80 e de alguns períodos favoráveis esparsos posteriores, o ritmo de expansão do PIB do Brasil em 2017 foi de apenas 1%, fraco em comparação ao mundial. A produtividade média da economia brasileira continua inferior à das economias desenvolvidas. Em 1990, o PIB per capita no Brasil equivalia a 13% do registrado nos Estados Unidos; hoje, é de 15%. Em contraste, em 1990, o da Coreia do Sul estava em 27% do patamar americano e, agora, equivale a 38%.
No Brasil e em outros países, as transformações radicais nos meios de comunicação (internet e mídia social) e nos modos de produção (automação e inteligência artificial) modificaram profundamente a sociedade e a forma como as pessoas adquirem informações e se conectam entre si. Uma das consequências dessas mudanças tectônicas tem sido o sentimento generalizado de que as instituições políticas – os partidos, o Congresso e toda a arquitetura da democracia representativa – não são mais capazes de atender as demandas de um conjunto de cidadãos bem conectado e informado.
Políticas mal orientadas e crise moral
A esses fatores estruturais, é preciso agregar dois graves riscos. Primeiro, as políticas econômicas mal orientadas adotadas nos últimos anos do governo do ex-presidente Luiz Inácio “Lula” da Silva e ao longo dos mandatos de sua sucessora, Dilma Vana Rousseff, quase faliram o Estado com gastos fiscalmente imprudentes.
Segundo, os sistemas econômico e político do Brasil se deparam com uma crise moral estarrecedora. Investigações do Judiciário trouxeram à tona uma rede sistêmica de corrupção entre o governo, os partidos políticos e empresas privadas e estatais. Privilégios e clientelismo substituíram a competição como motor da vida econômica e política.
Promotores e magistrados na chamada Operação Lava-Jato têm revelado que o dinheiro usado para financiar ilegalmente partidos políticos veio de contratos superfaturados com organizações públicas, cujos diretores foram indicados pelo governo para operar exatamente esse tipo de negócio. Longe de ser uma simples questão de fundos secretos de campanha, o que veio à luz foi um sistema organizado para desviar recursos públicos para o benefício de empresas e partidos, assim como, muito frequentemente, os bolsos de políticos individuais.
Crises morais combinadas a estagnações econômicas – o desemprego está hoje em 13% – são uma receita letal para qualquer sociedade.
Diante da indignação do público e do fogo cruzado das acusações de grupos políticos em conflito, tornou-se impossível reconhecer que nem todos os casos de corrupção são iguais, que este ou aquele líder político não fez mau uso de fundos de campanha para benefício pessoal, que algum outro pode ter cometido crime, mas não seu partido, e assim por diante. Aos olhos de um público inflamado, todos os políticos parecem ser um bando de malfeitores culpados de roubo. Tanto a classe política quanto o governo perderam credibilidade e legitimidade.
Nenhuma revolução aconteceu no Brasil. Estamos testemunhando, no entanto, condições revolucionárias nas quais vingadores se preparam para cortar as cabeças dos fortes e poderosos e são saudados pelas massas. Se a história serve de guia, o fim do jogo costuma ser a chegada de algum líder trazido pela providência, o salvador carismático ou homem forte que chega para pôr fim à anarquia na terra.
Esses são os riscos que pairam sobre as próximas eleições. Com Lula inelegível por estar preso sob acusações de corrupção, os diferentes segmentos da esquerda, privados de seu líder natural, sentem-se eleitoralmente inseguros. A direita vem pedindo a restauração da ordem a qualquer custo, incluindo a restrição de liberdades democráticas. Jair Bolsonaro, um ex-oficial militar de extrema direita, acusado de usar uma linguagem sobrecarregada racialmente contra comunidades indígenas e afrodescendentes do Brasil, atualmente lidera as pesquisas.
Um corpo político fragmentado sem confiança nas instituições
As sensibilidades políticas remanescentes estão fragmentadas, incapazes de se aglutinar em torno às partes desconectadas do centro político, realmente apenas um amálgama de alguns com um ponto de vista arcaico ou outros mais liberais ou vagamente social-democratas que dão valor às instituições da democracia e sabem que a principal ameaça é a desigualdade.
A grande gama de grupos políticos está organizada em nada menos do que 26 partidos políticos com representação no Congresso, a maioria dos quais dificilmente merece ser chamada de “partido”. São mais conglomerados de indivíduos cujo único objetivo é saquear os bens do Estado.
Compreensivelmente cético, a esta altura o corpo político não sabe se vale mesmo a pena votar.
Nisso, o Brasil não é exceção. Nossa sociedade, assim como outras, foi estilhaçada pelos próprios avanços da modernidade: a melhora na mobilidade social, o advento da era da informação e a ascensão de políticas de identidade de gênero e raça. Tudo isso rompeu a coesão das velhas divisões de classe e dos partidos e ideologias que as representavam na era anterior.
Uma perspectiva obscura
Não há saída? Estou convencido de que em situações como essa, um ponto de vista comum sobre o futuro é a única mensagem que pode unir a sociedade.
As demandas sociais estão ligadas às necessidades básicas da população: a busca por empregos, a luta contra a desigualdade, e as reclamações sobre a incapacidade do Estado de proporcionar de forma eficiente segurança, moradia, transporte, saúde e, acima de tudo, ensino. Em tempos de crise, os líderes políticos precisam traduzir um conjunto comum de valores – o espírito da liberdade, a igualdade de oportunidades e o respeito à dignidade humana – em ideias e propostas concretas que toquem as mentes e corações da população.
Eles precisam se dirigir a pessoas que não fazem mais parte de uma massa amorfa. Cada eleitor tem acesso a informação, tem consciência de seus direitos e quer que o governo atenda suas necessidades. Esse “reencantamento” da vida pública precisa andar de mãos dadas com o esforço para controlar as finanças públicas e promover o investimento produtivo, sem o qual não há criação de emprego.
Todos que dão valor à democracia e liberdade sabem o que precisa ser feito. Da mesma forma que em outros lugares, entretanto, as velhas correntes predominantes estão fora de sintonia com as novas realidades, e novas alianças políticas ainda não encontraram uma voz convincente em comum com o conjunto da população.
O risco de retrocesso coexiste com a perspectiva de renovação. A sociedade brasileira, impulsionada por transformações econômicas e sociais e por novos valores, está em movimento. Esse processo de mudança não é tão visível quanto as atuais polarizações políticas. Em muitos campos, o ritmo de mudança na sociedade é mais veloz do que o das instituições. Há, portanto, motivos para esperança – se encontrarmos a vontade política para transformar nossas instituições em sincronismo com as aspirações do público. (Valor Econômico – 11/06/2018)
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Fernando Henrique Cardoso foi presidente do Brasil de 1995 a 2002. Ele é integrante do Conselho do Século 21, do Berggruen Institute.
Este texto foi produzido pelo “The WorldPost”, uma parceria entre o Berggruen Institute e o “The Washington Post”.
Tradução de Sabino Ahumada
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