Ana Maria Machado - O Globo
Talvez o mais estranho seja constatar como a greve começou de repente e se alastrou sem que os órgãos de segurança tivessem detectado
‘Sétimo dia da greve dos caminhoneiros. O país continua com paralisações em todas as rodovias. Não há mais tiroteios, assaltos, explosão de caixa eletrônico, roubo de cargas, bala perdida. O Brasil que eu quero para o futuro é um Brasil sem gasolina”.
O comentário postado nas redes sociais pretendia ser uma piada. Meio sem graça, talvez. Mas chamou a atenção, com clareza, para uma das inúmeras esquisitices desse movimento que virou um tormento ao paralisar o país e deixar a população refém de um bando de irresponsáveis. Pois é, a sensação geral foi de que a violência urbana diminuiu enquanto durou o protesto dos caminhoneiros. Ou os bandidos dependem diretamente de combustíveis para agir, ou a cobertura do crime ficou em segundo plano porque surgiu um assunto mais interessante como pauta midiática.
Aliás, a mídia não estava mesmo sendo capaz de ver qualquer violência — a não ser na distorção apresentada pelos números trazidos pelo governo. Centenas de repórteres, talvez milhares pelo Brasil afora, estavam num mutirão cobrindo os protestos pelas estradas e só no nono dia foi possível começar a perceber que havia caminhoneiros impedidos à força de trabalhar, embora quisessem, ou sofrendo ameaças de todo tipo. O que houve? Os jornalistas só ouviram porta-vozes parciais? Decidiram amplificar a voz oficial do movimento sem observar por conta própria o que ocorria? Acreditaram piamente que havia unanimidade sem intimidações truculentas? E que não havia brutamontes em cena?
Essa foi só mais uma esquisitice entre tantas estranhezas e bizarrices — a começar pela facilidade em chamar de greve um estranho protesto com fundamentos justos misturados de cambulhada a reivindicações estapafúrdias (tipo intervenção militar), em algo que nem era um movimento de assalariados contra patrões por melhores condições de trabalho, nem tinha interlocutores claros para negociar. Bizarro.
E bizarramente veio a escalada, em total irresponsabilidade, causando prejuízos incalculáveis, sem qualquer limite — já que entre nós não se compreende que o sagrado e democrático direito à greve (fundamental e exigindo respeito) possa existir sem se apoiar na criminosa atuação de piquetes que instauram a lei do mais forte e a imposição da truculência, a substituir e dispensar qualquer argumentação ou tentativa de convencimento racional.
Mas talvez o mais estranho seja constatar como tudo começou de repente e se alastrou como fogo em capinzal seco, sem que os órgãos de segurança tivessem detectado. Tanto assim, que de início o presidente estava participando de solenidade para promover automóvel e dizendo que aquilo era o fato mais importante do dia. A Abin não percebeu o que estava se armando e seu risco? Ou percebeu e não informou? Ou informou e ninguém deu a mínima? Difícil saber o que é mais esquisito e bizarro. Qualquer hipótese é altamente preocupante.
Em seguida, há outro degrau de estranhamento. Não havia nenhum plano para enfrentar uma situação desse tipo? Para o aeroporto de Brasília ter combustível foi preciso um imenso comboio de caminhões-tanques vir escoltado de Minas, devagarzinho, em dias pela estrada. A Latam encontrou uma alternativa mais rápida e usou um avião carregado de querosene para reforçar seu estoque na capital. Em horas.
E o que dizer da bizarra apoteose de Papai Noel? Uma pesquisa constatou que 87% da população apoiava a “greve”, recusava a possibilidade de preços alinhados com custos e concordava com o subsídio mas não sabia que fazia isso nem se dispunha a pagar. Passou na cabeça de alguém perguntar sobre a origem dos recursos que cobrissem a despesa, já que não se consegue que o Bom Velhinho dê conta da situação? Ao menos para, didaticamente, recordar que não há almoço grátis e seria conveniente pensar a respeito. Ainda mais em ano de eleição. De onde deve vir a grana? Vamos suspender pensões de filhas de militares? Atrasar pagamento de aposentadorias ou desvinculá-las do salário mínimo? Deixar de garantir universidade gratuita? Cortar o Fies? Reduzir drasticamente o número de cargos comissionados? Igualar a previdência dos servidores à dos outros? Pedir emprestado? Aumentar impostos? Imprimir cédulas sem lastro?
O jeito é mesmo apelar para Papai Noel — como outra postagem bizarra na internet:
“O Brasil que eu quero para o futuro é um país que terá feito as reformas estruturais necessárias. Com isso terá um desenvolvimento à altura de seu potencial e um Congresso decente. Assim, pode até ser parlamentarista e ter alguém com a competência de um Pedro Parente como primeiro-ministro.”
A vantagem é que, se não der certo, é fácil substituir — sem precisar ficar meses para votar um impeachment ou repetindo “Fora Fulano”.
Bizarro, né? Sabe quando pode acontecer? No dia de São Nunca. Escalar o paredão desde o fundo do abismo para sair dele leva uma eternidade. Tarefa para gerações. Mesmo se 87% forem a favor — claro, desde que não custe nada, não dê trabalho e Papai Noel dê uma mãozinha.
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Ana Maria Machado é escritora
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