DRAUZIO VARELLA
FOLHA DE SÃO PAULO
Guardei a imagem do olhar de pavor do rapaz e com a frase do motorista: "Deviam ter atirado para matar"
ESTA SEMANA quase morri congelado no Sul. Em São Paulo faz frio, mas não ficamos com os pés amortecidos como se pertencessem ao caixa do supermercado, nem com as mãos analfabetas e nem com os lábios entorpecidos feito bêbados.
Domingo último, viajei com uma equipe de TV para Chapecó, no oeste de Santa Catarina, como parte das gravações de uma série sobre hepatites que irá ao ar em duas semanas no "Fantástico", da TV Globo. A intenção foi mostrar um programa de vacinações contra a hepatite B, muito bem conduzido naquela cidade.
Chapecó, Foz do Iguaçu, Cascavel e Passo Fundo formam o chamado polígono das hepatites, região povoada por descendentes dos imigrantes italianos que trouxeram na bagagem o vírus da hepatite B.
Previsto para chegar pouco depois da meia-noite, o avião aterrissou às 4h, de modo a cumprir o ritual de flagelos a que são submetidos os infelizes como este que vos escreve, forçados a viajar pelos ridículos aeroportos brasileiros.
Depois da batalha habitual para recuperar o equipamento na esteira e das 30 colisões com carrinhos alheios, conseguimos escapar incólumes daquele inferno. No trajeto para a van que nos esperava, percebi que minha roupa não suportaria aquele gelo polar.
Quase sem dormir, na segunda-feira gravamos o dia inteiro, esfregando as mãos e batendo os pés no chão. Na hora do almoço tentamos comprar luvas e meias de lã nas lojas do centro, mas não deu certo; disseram que ainda era cedo para o lançamento da coleção de inverno.
No fim da tarde seguimos para Vacaria, no Rio Grande do Sul. As cidadezinhas que a estrada atravessava pareciam fantasmas, nenhuma alma viva nas ruas iluminadas com luz mortiça. Lugares aprazíveis para quem gosta de se suicidar.
Com um grau acima de zero, às 22h, Vacaria era um cemitério. Na praça da igreja de pedra que conheci muitos anos atrás, a grande surpresa: um táxi parado com o motorista dentro, o único ser humano visível em mais de 300 quilômetros.
O mundo amanheceu coberto de gelo -a temperatura chegara a quatro graus negativos-, mas havia sol e nenhuma nuvem no céu. Cenário encantador para ser admirado através da janela; insuportável para quem precisava fazer parte dele.
Sem almoço, viajamos para pegar o avião de volta em Caxias do Sul. Jamais imaginei encontrar tanto aconchego no interior de uma van exposta ao sol.
A vegetação das serras gaúchas é menos diversa do que a da Amazônia e da Mata Atlântica. Nas encostas, há paredões de rochas e árvores que sobem por cima deles até os cumes, mas fazem falta as trepadeiras e os cipós que armam a festa bagunceira das florestas tropicais, quentes e carregadas de umidade. Nos vales, rios estreitos e caudalosos refletem a luz do sol enquanto correm cheios de pressa para desaguar não sei aonde.
Vínhamos nas curvas dessa paisagem que convida à reflexão, quando um carro em alta velocidade nos ultrapassou em manobra tão arriscada, que se o motorista da van não fosse experiente teríamos ido precipício abaixo.
Antes que nos recuperássemos do susto, um carro da Polícia Rodoviária fez o mesmo.
Um minuto mais tarde demos de cara com uma cena cinematográfica: o carro que nos fechou acabara de capotar, dois policiais saltaram da viatura com os revólveres na mão, e um rapaz bem jovem saiu com o rosto ensanguentado pela janela do carro com as rodas que ainda giravam no ar.
Contra a ordem de parar, ele correu em nossa direção, mas do outro lado da pista. Um dos policiais atirou. Não tínhamos como nos esconder, a estrada estava bloqueada: na frente pelo carro capotado, atrás pelos que chegavam. Torci para que o rapaz fosse experiente e se entregasse logo, mas ele demorou para acreditar que iria morrer.
Por sorte, a experiência que lhe faltou, sobrou para os policiais que o perseguiram aos gritos, sem dar o segundo tiro, até que ele ajoelhasse com os braços para cima bem do lado da van.
Seguimos em frente. Fiquei com a imagem do olhar de pavor do rapaz com o rosto ensanguentado e com a frase do motorista: "Deviam ter atirado para matar".
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