Chico D'Angelo
O Globo
OSistema Único de Saúde (SUS) é um dos maiores patrimônios da cidadania brasileira, mas essa gigantesca obra social não apenas permaneceu inconclusa como, em mais de vinte anos de existência, deixou de receber os necessários reparos e atualizações. Entre as inconveniências do modelo importado do velho Inamps está o pagamento por procedimentos diagnósticos e terapêuticos, um mecanismo que não se ajusta às peculiaridades das maiores causas de mortalidade de nossos dias - os cânceres e as doenças cardiovasculares -, que demandam uma linha de cuidados continuados, distribuída nos diversos níveis de atenção. Além disso, tende a agravar desigualdades regionais, na medida em que perpetua o desequilíbrio em favor dos locais com maior capacidade instalada.
O SUS jamais dispôs de uma política organizada de recursos humanos, de uma carreira capaz de atrair e fixar seus trabalhadores. Parte dessa grave lacuna se deve à ação da Lei de Responsabilidade Fiscal, que, aplicada a um setor intensivo em pessoal, resultou na existência de 30% de empregos precários no setor. A adoção de arranjos paliativos, mesmo quando não enseja irregularidades ou falta de responsabilização pela prestação de serviços, apenas adia o enfrentamento de um dos principais nós estruturais do sistema. É sinal de nossos tempos que jamais se tenha aprovado uma Lei de Responsabilidade Sanitária que, tal como para os que infringem limites financeiros, também punisse os que fogem a suas responsabilidades para com a saúde da população.
É no mínimo má-fé negar o subfinanciamento do SUS, pois o Brasil é o único país do mundo com um sistema público e universal de saúde em que os gastos privados são superiores aos públicos. Entre nós, o gasto público representa cerca de 45% do total despendido e, em países como o Canadá e a Inglaterra, essa participação não é inferior a 70%. No entanto, para se atingir um benefício proporcional aos novos recursos que se fazem tardar, há que se providenciar novos instrumentos para a sua execução.
Com certa frequência, temos conhecimento de denúncias de corrupção, pacientes sem atendimento, profissionais sub-remunerados, condições de trabalho eticamente inaceitáveis etc. Seguem-se os inquéritos, o maior rigor na fiscalização, os diagnósticos minuciosos e as análises que alinhavam conhecidos impasses, sem sugerir a possibilidade de um outro mundo além do beco sem saída. Em que pese a eventual necessidade e o bom propósito dessas iniciativas, não se pode crer na eficiência duradoura do seu impacto. Para ser devidamente tratado, um sistema não deve ser abordado de forma tópica ou pontual, mas de maneira sistêmica. É preciso reconfigurar o SUS de modo abrangente, buscando harmonizar novas propostas com seus princípios fundamentais - um sistema gratuito, universal e equânime, com decisiva participação do controle social.
Bom atendimento em saúde é produto de diferentes fatores, como a permanente atualização tecnológica e o trabalho de recursos humanos capacitados e motivados. Não se conseguirá atingir esses objetivos sem uma profunda transformação dos obsoletos mecanismos de gestão da saúde pública brasileira. Nesse caso, ser ambicioso não é uma opção, mas imposição ditada pela própria grandeza do SUS.
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