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.Segredos devassados
A anatomia da Wikileaks, uma organização de ativistas, oferece lições sobre as novas fronteiras da ecologia corporativa
No início de abril de 2010, veio a público material classificado das Forças Armadas norte-americanas: uma filmagem de cenas de guerra ocorridas no Iraque. Em preto e branco, pudemos seguir o piloto de um helicóptero Apache e sua equipe em uma polêmica e sangrenta missão que terminou com crianças feridas e inocentes mortos, inclusive dois jornalistas da agência Reuters. Os tons são primários e as imagens, cruas. As cenas, frias e cruéis, fazem pensar sobre as ambiguidades das situações de conflito armado que se espalham pelo mundo. As sequências parecem emular um videogame, induzindo nosso viciado imaginário a esquecer os dramas humanos envolvidos. A vida parece se encerrar com um simples delete.
A sequência editada foi disponibilizada no website www.collateralmurder.com (assassinato colateral), especialmente criado para esse fim. Por detrás da operação de divulgação estava a Wikileaks (http://wikileaks.org/) e seu ativista mais conhecido, o australiano Julian Paul Assange.
A Wikileaks é uma organização internacional, criada em 2006, que tem o propósito de divulgar vazamentos e submissões anônimas de documentos classificados. Seu alvo são políticos corruptos e instituições turvas. A estrutura da Wikileaks é amorfa e dinâmica. Não há uma sede, staff ou organograma. Sua base tecnológica está espalhada por servidores em diversos países, de forma a garantir a permanência no ar, mesmo diante de ameaças de governos e instituições poderosos. Seus colaboradores são ativistas, jornalistas e especialistas em tecnologia da informação: um exército de anônimos.
Em uma edição recente, a revista The New Yorker publicou um perfil do ativista Julian Paul Assange, que passou a personalizar a organização. Sua trajetória é significativa. O autor, Raffi Khatchadourian, o define como um traficante internacional de documentos confidenciais. Emerge do texto a imagem de um ativista obstinado, moderadamente carismático, enérgico e excêntrico. Assange vive como um nômade, trocando mais de endereço do que de roupa, sempre absorvido por seu trabalho e salvo das pequenas tarefas do dia a dia por colaboradores. Por medida de segurança, o seu endereço eletrônico e o seu número de telefone mudam constantemente, enlouquecendo seus seguidores.
O ativista nasceu em 1971. Seus pais eram libertários. Sua mãe havia deixado sua casa com 17 anos, depois de queimar seus livros escolares. Ela sempre acreditou que a educação formal introduz um respeito doentio à autoridade e mina o desejo natural das crianças pelo aprendizado. Aos 14 anos, Assange já havia mudado 37 vezes. Educou-se em casa, complementando sua voracidade pela leitura e pelo conhecimento com cursos por correspondência e estudos informais com professores universitários.
Aos 16 anos, ganhou um modem e, antes mesmo da explosão da internet, transformou seu micro em um portal. Em pouco tempo, navegava sem fronteiras pela rede existente, ganhando reputação de programador sofisticado, capaz de penetrar nos sistemas mais protegidos: um verdadeiro hacker. Visitas constantes a computadores de empresas e órgãos de governo terminaram por atrair a atenção da polícia, o que lhe custou um processo com 31 acusações e o tirou do ar por algum tempo.
Sua defesa e um processo paralelo para obter a custódia de um filho inseriram Assange no mundo do ativismo, aprofundando seu desgosto pelas burocracias e pela autoridade institucionalizada. Seu inimigo estava escolhido e sua arma seria a informação transparente, à qual acreditava ser capaz de interromper as linhas internas de comunicação das grandes hierarquias, minando-as por dentro.
Dessas ideias, partilhadas com outros ativistas, de seu talento para a informática e de sua capacidade de aglutinar outras ovelhas desgarradas nasceu a Wikileaks. Organizações como essa representam uma fonte perene de pressão contra a turbidez e os maus modos de governos endiabrados e instituições travessas. Ela comprova que uma estrutura relativamente pequena e amorfa, usando o conhecimento e a tecnologia da informação, pode gerar grandes impactos.
A Wikileaks constitui o que alguns manuais de gestão chamam de “organização missionária”, um sistema que se mantém coeso pela força da ideologia ou dos valores que seus membros partilham. Esse é um tipo de organização que costuma ter vida curta, porque seu sucesso leva ao crescimento, e o crescimento leva ao risco de perda da essência que a fez prosperar nos primeiros anos de vida. Porém, o ciclo curto não deve ser lamentado, pois outras organizações nascerão de suas sementes e tomarão seu lugar, a atestar que mesmo na era do conformismo ainda há terreno para o idealismo.
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