quinta-feira, 22 de julho de 2010

Os caçadores e o elefante

Para isto precisamos de deputados com um mínimo de cultura, visão social e histórica a fim de projetar suas decisões para o futuro. Se eles não conseguem vislumbrar por falta de preparo é porque a culpa foi de quem os colocou lá para representar os interesses da sociedade.

Pergunto se alguém que participou do último pleito terá o cuidado de procurar saber como votou o seu deputado, se é que ele lembra. Como estava no exterior não votei em ninguém, mas claro está que descubrirei quem aprovou para sanção esta peça genuína da insensatez humana. A propósito, acho até que possa ter sido eleção por liderança, ferramenta comum para temas polêmicos quando os líderes percebem não ter base que sustentem a vontade do Executivo, daí eu ter convicção de que o sistema atual legislativo é falho, pois permite existir excrecências como a que segue.

Estamos, em meu ver, em um franco caminho de dissolução dos valores da sociedade por erosão de nossos valores básicos e fundamentais. O que se propõe agride a atual CRFB de 1988, nessa hora a miríade de pleiteantes de aumentos e melhores condições utilizando-se da "isonomia" e igualdade entre os cidadãos nada falará.

Onde estarão as demais instituições venerandas de nossa pátria, dentre elas a Igreja, pois militares são subordinados à Lei e ao CMT Supremo que sancionou esta excrecência, daí cumpra-se e dá-se suporte para sua efetivação, infelizmente.

Os arautos do Plano Nacional de Direitos Humanos não conseguiram seus intentos junto ao STF, foram ao tribunal internacional de DH na OEA, agora, também na tática de se erodir a sociedade pelas beiras produz este instrumento legal....




Os caçadores e o elefante

Demétrio Magnoli - O Estado de S.Paulo
Dois dias atrás, no meio da tarde, em cerimônia no Palácio do Itamaraty, Lula sancionou a primeira lei racial da História do Brasil. São 65 artigos, esparramados em 14 páginas, escritos com o propósito de anular o artigo 5.º da Constituição federal, que começa com as seguintes palavras: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza." O conjunto leva o título de Estatuto da Igualdade Racial, uma construção incongruente na qual se associa o princípio da igualdade ao mito da raça, que veicula a ideia de uma desigualdade essencial e, portanto, insuperável.

O texto anticonstitucional, aprovado em 16 de junho por um acordo no Senado, é uma versão esvaziada do projeto original. No acordo parlamentar suprimiram-se as disposições que instituíam cotas raciais nas universidades, no serviço público, no mercado de trabalho e nas produções audiovisuais. Pateticamente, em todos os lugares, exceto no título, o termo "raça" foi substituído pela palavra "etnia", empregada como sinônimo. Eliminou-se ainda a cláusula que asseguraria participação nos orçamentos públicos para os "conselhos de promoção da igualdade étnica", órgãos a serem constituídos paritariamente nas administrações federal, estaduais e municipais por representantes dos governos e de ONGs do movimento negro.

Mas o que restou é a declaração de princípios do racialismo. A lei define uma coletividade racial estatal: a "população negra", isto é, "o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas". Dessa definição decorrem uma descrição racial do Brasil, que se dividiria nos grupos polares "branco" e "negro", e a supressão oficial das múltiplas identidades intermediárias expressas censitariamente na categoria "pardos". Implicitamente, fica cassado o direito de autodeclaração de cor/raça, pois o poder público se arroga a prerrogativa de ignorar a vontade do declarante, colando-lhe um rótulo racial compulsório. O texto funciona como plataforma para a edificação de um Estado racial, uma meta apontada no artigo 4.º, que prevê a adoção de políticas raciais de ação afirmativa e a "modificação das estruturas institucionais do Estado" para a "superação das desigualdades étnicas".

A fantasia que sustenta a nova lei consiste na visão do Brasil como uma confederação de nações-raças. Nessa confederação o princípio da igualdade deixaria de ser aplicado aos indivíduos, convertendo-se numa regra de coexistência entre coletividades raciais. Os cidadãos perdem o estatuto de sujeitos de direitos, transferindo-o para as coletividades raciais. Se o Poder Judiciário se curvar ao esbulho constitucional, estudantes ou trabalhadores da cor "errada" não poderão apelar contra o tratamento desigual no acesso à universidade ou a empregos arguindo o princípio da igualdade perante a lei, pois terão sido rebaixados à condição de componentes de um grupo racial.

Nos termos do estatuto racial, que é um estatuto de desigualdade, a "população negra" emerge como uma nação separada dentro do Brasil. O capítulo I fabrica direitos específicos para essa nação-raça no campo da saúde pública; o capítulo II, nos campos da educação, da cultura, do esporte e do lazer; o capítulo IV, nas esferas do acesso à terra e à moradia; o capítulo V, na esfera do mercado de trabalho; o capítulo VI, no tereno dos meios de comunicação. O pensamento racial imagina a África como pátria da "raça negra". A nova lei enxerga a "população negra" como uma nação diaspórica: um pedaço da África no exílio das Américas. O capítulo III determina uma proteção estatal particular para as "religiões de matriz africana".

A supressão do financiamento público compulsório para os "conselhos de promoção da igualdade étnica" e dos incontáveis programas de cotas raciais na lei aprovada pelo Senado refletiu, limitada e parcialmente, o movimento de opinião pública contra a racialização do Estado brasileiro. Uma vertente das ONGs racialistas interpretou o resultado como uma derrota absoluta - e pediu que o presidente não sancionasse o texto esvaziado. Surgiram até vozes solicitando uma consulta plebiscitária sobre o tema racial, algo que, infelizmente, não se fará.

O Ministério racial, que atende pela sigla enganosa de Seppir, entregou-se à missão de alinhar sua base na defesa do "estatuto possível". Para tanto reuniu pronunciamentos de arautos do racialismo, como o antropólogo Kabengele Munanga, uma figura que chegou a classificar os mulatos como "seres naturalmente ambivalentes", cuja libertação dependeria de uma opção política pelo pertencimento ao grupo dos "brancos" ou ao dos "negros". Na sua manifestação o antropólogo narrou uma fábula sobre os caçadores mbutis, da África Central, denominados pigmeus na época da expansão imperial europeia.

Os caçadores de Munanga almejam abater um elefante, mas voltam para a aldeia com apenas três antílopes, "cuja carne cobriria necessidades de poucos dias". As mulheres e crianças, frustradas, contentam-se com tão pouco e não culpam os caçadores, mas Mulimo, deus da caça, a divindade desse povo monoteísta. Os caçadores voltarão à savana e, um dia, trarão o elefante.

A fábula é apropriada, tanto pelo seu sentido contextual como pelas metáforas que mobiliza. Ela remete a um povo tradicional, fechado nas suas referências culturais, que serviria como inspiração para a imaginária nação-raça diaspórica dos "afro-brasileiros". Os caçadores simbolizam as lideranças racialistas, que já anunciam a intenção de usar o estatuto racial para instituir, por meio de normas infralegais, os programas de cotas rejeitados no Senado. O elefante representa o Estado racial completo, com fartas verbas públicas para sustentar uma burocracia constituída pelos próprios racialistas e dedicada à distribuição de privilégios.

Munanga não falou das guerras étnicas na África Central. É que o assunto perturba Mulimo e prejudica a caçada.
SOCIÓLOGO, É DOUTOR EM GEOGRAFIA HUMANA PELA USP. E-MAIL: DEMETRIO.MAGNOLI@TERRA.COM.BR

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