sexta-feira, 8 de julho de 2011

As estradas do subdesenvolvimento

Fernando Gabeira
O Estado de S.Paulo


Na semana em que os norte-americanos comemoram sua independência, muitos discursos de Abraham Lincoln foram lembrados. Em alguns ele enfatizava a necessidade de defender o país contra dois adversários: a guerra, fator externo; e a ganância, poderosa inimiga interna da República.

Na mesma semana, no Brasil, a presidente Dilma demitia quatro funcionários do Ministério dos Transportes, mas reafirmava sua confiança no ministro Alfredo Nascimento, do PR. A resposta de Dilma deve ter levado em conta que a CGU já colecionava, em dois anos, 18 processos na Valec e 150 no Dnit. O corregedor Jorge Hage chegou a suspeitar que a corrupção estivesse inoculada no DNA do Dnit.

Na última campanha eleitoral, denunciando a corrupção na saúde, pedimos atenção especial para o desvio de verbas que provoca mortes. Um estatuto para a corrupção que mata. O constante superfaturamento na construção e reparação de estradas brasileiras também mata. São centenas de buracos que deixam de ser tapados, novos trechos que não se constroem, sinalização que não se atualiza.

O que impediu Dilma de ter sido mais rápida ao constatar o problema? Por que foi tão superficial no combate? É difícil acreditar que o PR seja um partido inocente e tanto Nascimento como Valdemar Costa Neto, ingênuas vítimas de uma quadrilha que se instalou na cúpula do Ministério. A empresa do filho do ministro cresceu 86.500% de 2005 para cá. Dilma avançou pouco porque não pode rever a política de alianças, responsável em muitas ocasiões pelos ataques ao Tesouro Nacional. Mesmo se uma investigação séria comprovar o esquema, tanto governo como aliados têm a resposta na ponta da língua: reforma política. Em outras palavras, não há saída no horizonte. E o partido indica um novo ministro.

A presença do deputado Valdemar Costa Neto no Ministério, os milhões que podem ter sido desviados, tudo isso significa o preço que pagamos pela conciliação com erros do sistema político brasileiro. Acusado de participar do mensalão, denunciado pela ex-mulher por jogar milhares de dólares em cassinos, Valdemar renunciou ao seu mandato com a intenção de ser candidato de novo.

Naquele momento um jurista afirmava que a renúncia foi uma confissão de culpa e Valdemar não seria reeleito. Não contou com sua astúcia. Ao inventar a candidatura Tiririca, o PR catapultou de novo seu presidente de honra. As sobras de Tiririca eram os votos de que Valdemar precisava. Estava consumada mais uma grande farsa na política: uma candidatura de protesto contra " tudo o que está aí" recolocava um elo perdido do mensalão no centro das decisões sobre estradas do País.

Dilma recebe de herança uma política de alianças construídas no período de crescimento. Lula trabalhou de forma própria com o tema. Ele sempre confiou na sua popularidade. Diria que não havia nada de concreto e passaria a mão na cabeça de todos os envolvidos. No caso de Dilma, é mais difícil ignorar. Percebe que os partidos aliados são como insaciáveis cupins devorando o Orçamento nacional - porque acompanha o desenrolar das obras e o crescimento brutal de seus custos. Alguma coisa teria de fazer . A popularidade depende de condições econômicas instáveis, cambiantes. Não se pode confiar apenas nela.

Isaac Deutscher, na sua biografia de Trotsky, acentuava que as condições históricas não permitem que líderes políticos inteligentes se comportem como tal. Eles não são limitados, mas as circunstâncias e a margem de manobra os obrigam a agir como se fossem. Dilma é presidente de um conjunto de forças formado nas eleições e apoiada numa ampla base parlamentar. Seu partido está feliz e próspero, embora, em certos momentos, possa criticar alguns aliados. Essa condição de vanguarda do atraso é perfeitamente satisfatória para quem, no fundo, está preocupado apenas em continuar no poder.

As estradas do subdesenvolvimento não são apenas as esburacadas e perigosas. São também os percursos mentais que desvalorizam a vida humana. Políticos tornam-se milionários e juntam-se aos grã-finos numa celebração esfuziante do consumo. Por que se importariam com a vida dos viajantes? Se tivessem a transparência dos fascistas espanhóis, com tantos desfalques na saúde e na construção de estradas, a forças dominantes no Brasil poderiam usar o slogan que nasce dessa prática: viva a morte.

Milhares de mortes anônimas, nos hospitais e nas estradas, alimentam essa estranha fusão de emoções de esquerda com o desejo de enriquecer. Abraham Lincoln tinha razão quando definiu a ganância e a cobiça como grandes adversário internos. Suas palavras têm validade ainda hoje, quando se discute o futuro dos EUA. Mas são quase inúteis num período de prosperidade e euforia, em que quase todos sentem a vida melhorar. Nesse momento a cobiça parece um dínamo e a corrupção, apenas um preço a pagar.

Ao contrário do slogan de Tiririca, a situação pode ficar pior. E, desgraçadamente, talvez seja essa a única chance de melhorar. O crescimento econômico é um poderoso lenitivo. Mas qual a sua viabilidade se a corrupção começa a pipocar em áreas estratégicas?

Essa política de alianças não tem futuro. Talvez alguns anos de sobrevida. O caso do Ministério dos Transportes mostra como ela é um entrave ao desenvolvimento. Sucessivos embates por cargos, pequenas chantagens veladas, escândalos de corrupção, o cimento que a une a aliança pode mantê-la em pé, mas sem condições de dar resposta aos desafios do Brasil, neste momento de velozes transformações.

É um jogo arriscado em qualquer momento entregar transportes e energia ao PR e ao PMDB. Exatamente agora que a importância do Brasil cresceu e que o País é alvo de atenção internacional, é temerário. Grandes escândalos não produzem só manchetes, mas danos econômicos numa escala maior. Podem minar a confiança no crescimento brasileiro. Num cenário menos dramático, o crescimento pode prosseguir, debilitado, apesar dos políticos e suas alianças. Mas ainda assim, no mínimo, seria perdida uma grande chance de se ir mais longe.

JORNALISTA 

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