Luiz Sérgio Guimarães
Valor Econômico
"John Maynard Keynes"
Paul Davidson. Tradução de Maria Palma. Actual. 344 págs., R$ 75,00
Quase como um mantra destinado a elevar o nível de percepção da plateia, o economista Mário Henrique Simonsen invariavelmente iniciava suas longas e brilhantes explanações sobre a economia brasileira com a advertência: "Hoje iremos tratar de aspectos de curto e médio prazo da economia, já que, como dizia Keynes, a longo prazo todos estaremos mortos". Outro ex-ministro da Fazenda, Delfim Netto, gosta de lembrar que uma das principais metas de qualquer política econômica expansionista é despertar "o espírito animal" dos empresários. Nem Simonsen nem Delfim podem ser considerados "keynesianos" autênticos. Mas, na formulação de suas políticas, sempre utilizaram as ideias do lorde inglês, mesclando-as, para exasperação dos keynesianos de carteirinha, com os postulados da teoria econômica clássica. A irritação tem uma razão muito simples. Como mostra o pós-keynesiano Paul Davidson em seu livro, a teoria de Keynes (1883-1946) se pretende "revolucionária", não foi concebida para corrigir aspectos falhos da economia clássica, mas para destruí-la. Dois séculos depois de lançados os fundamentos da economia clássica por Adam Smith e David Ricardo, ela permanece intocada em seus axiomas básicos, envoltos hoje, para desespero dos seguidores de Keynes, numa impenetrável floresta de símbolos matemáticos, por meio dos quais almeja o status de ciência exata. Keynes fracassou? A batalha ainda não foi decidida.
Este livro de Davidson é destinado ao público leigo e aos estudantes de economia. Davidson abandonou a pretensão de mudar a cabeça dos economistas profissionais. Para estes, reservou apêndices técnicos cuja leitura desaconselha aos demais. As universidades treinam os estudantes segundo os postulados da economia clássica. Nelas, as disciplinas ditas keynesianas ensinam, segundo ele, quase nada do legítimo Keynes. Mas qual é o Keynes verdadeiro?
Dois séculos depois de lançados seus fundamentos, a economia clássica permanece intocada em seus axiomas
Há três divisões entre os próprios keynesianos, cada uma reivindicando a herança genuína. Os keynesianos ortodoxos postam-se à esquerda dos pós-keynesianos e estes à esquerda dos novos-keynesianos. Mas a diferença entre eles é mais de grau do que de essência. A receita é a mesma, muda apenas a dose do remédio, cuja fórmula-base consiste em elevados gastos públicos e baixa taxa de juros.
O livro de Davidson pode ser lido, portanto, do ponto-de-vista dos pós-keynesianos, hoje a corrente mais numerosa e aguerrida. Seus expoentes são, além do próprio Davidson, Hyman Minsky e Jan Kregel. Defendem que os mercados são ineficientes em sua missão de se autoequilibrarem. Livres de amarras, não conseguem alcançar e manter o pleno emprego que conduz à prosperidade. Por isso, o governo deve agir para estimular a demanda agregada, forjando um ambiente que incentiva os empresários a realizar investimentos.
As ideias de Keynes foram, de acordo com Davidson, uma tentativa de sanar duas falhas crônicas do sistema capitalista regido pelas regras da economia clássica: a incapacidade de proporcionar emprego a todos que o queriam e eram qualificados para trabalhar com salários correntes; e uma distribuição arbitrária e desigual de rendimento e de riqueza. E uma coisa tinha muito a ver com a outra: políticas de pleno emprego seriam capazes de reduzir a desigualdade de rendimento. Hoje, isso parece óbvio. Mas quando Keynes escreveu sua "Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda" a proposta transpirava heresia.
Na época, a desigualdade era justificada pelas escolhas morais, sociais e psicológicas dos indivíduos. Deixado livre aos seus próprios mecanismos de ajuste, o mercado teria condições de prover a riqueza adequada a cada um dos seus atores. Keynes não acreditava na possibilidade de se estabelecer uma igualdade completa. Mas seria necessário suavizar "inclinações humanas perigosas". "É melhor que um homem tiranize seu extrato bancário do que seus concidadãos", escreveu na "Teoria Geral". Depois da I Guerra Mundial, décadas de taxas de desemprego persistentemente acima de 10% na Inglaterra convenceram Keynes de que algo havia de errado no laissez-faire de Adam Smith. Mas, para Keynes, o extremo oposto do laissez-faire - a abolição do mercado - não era igualmente aceitável. Por dez anos ele trabalhou na elaboração de uma teoria, inteiramente nova, que se colocasse como alternativa tanto ao laissez-faire quanto ao socialismo. "A alternativa tinha de mostrar quais medidas o governo, juntamente com as forças de mercado, poderia tomar para acabar com o desemprego", diz Davidson.
Nem laissez-faire nem abolição de mercado, mas governo e mercado juntos contra o desemprego, era a proposta de Keynes
Keynes tentou derrubar três axiomas que impediam que a teoria clássica fosse aplicada com sucesso na resolução dos problemas do mundo real. Tais pressupostos básicos - entendidos como verdades universais que dispensam comprovação e certificação em dados empíricos - são a neutralidade da moeda (alterações na quantidade de moeda não têm qualquer efeito sobre o nível agregado de emprego e produção), a existência de substitutos brutos (se um determinado preço sobe, o agente econômico tende a preferir um similar mais barato, promovendo um nivelamento para baixo, o que valeria para produtos, serviços e salários) e o axioma ergódico (o futuro nunca é incerto, já que se desenha como uma sombra estatística projetada por dados colhidos no passado e no presente). Davidson argumenta que, desprovido desses três axiomas, o economista clássico jamais conseguiria provar que a liberalização dos mercados de trabalho e de bens produzirá aquilo - a flexibilidade de preços - que é a solução do desemprego. Contra o paradigma da neutralidade da moeda, Keynes propunha uma economia monetária, com regulação de contratos e provimento de liquidez aos mercados.
A economia clássica não era o alvo exclusivo de Keynes. Ele pretendia também colocar de lado os "fundamentos ricardianos do marxismo". Não conseguiu nem uma meta, nem outra. Suas ideias "revolucionárias" não foram compreendidas pelos economistas clássicos. Para que fossem, teriam de rejeitar todo seu condicionamento acadêmico. Trataram, então, de absorver o que lhes servia para manutenção do edifício tradicional. Nascia o que Davidson chama de "síntese neoclássica do keynesianismo".
Brotou dessa interpretação uma penca de economistas keynesianos que, de Keynes, ostentavam apenas o nome. Essa fase de assimilação parcial e modificadora das propostas de Keynes durou até os anos 1970. Como não conseguiam articular uma teoria da inflação logicamente consistente, os supostos keynesianos, sobretudo os americanos, despiram seus adereços keynesianos e retornaram à teoria clássica.
Com a "Teoria Geral", Keynes assumia a missão de mudar a consciência dos economistas. Só assim poderia alterar o pensamento dos governantes. "Embora Keynes tenha alterado a visão dos economistas sobre as políticas que os governos podiam seguir para minorar o problema do desemprego, não conseguiu mudar o pensamento de seus colegas sobre a teoria econômica subjacente", escreve Davidson. Logo depois de publicada sua obra fundamental, estabeleceu-se o debate que até hoje empolga keynesianos e neoclássicos.
As teses de Keynes sofreram vigoroso repúdio por parte sobretudo de Frederick Hayek, principal inspirador da corrente que depois viria a ser conhecida como neoliberal. Enquanto Keynes punha ênfase na estimulação da demanda com vistas a reduzir o desemprego, Hayek localizava na oferta o ponto vital para se obter a flexibilização de salários e preços tendente a forjar as condições para o pleno emprego. O fato de o impasse permanecer até hoje é prova cabal para os neoclássicos de que Keynes falhou em implodir os axiomas da teoria formulada por Smith e Ricardo. A teoria clássica tomou Keynes como um "caso especial" de si mesma, ou seja, reduziu a teoria revolucionária a um conjunto de aplicações específicas para eventos localizados, como a rigidez de salários monetários.
Keynes tentou também demolir outra lei cara ao saber convencional, a de Say (Jean Baptiste de Say, economista francês do século XIX), segundo a qual "a oferta cria sua própria procura". Para ele, a procura agregada não é idêntica à oferta agregada. Entre uma e outra, há o investimento e a poupança. Nascia a teoria de preferência pela liquidez de Keynes, outro desafio aos clássicos.
Para Keynes, o futuro é incerto e imprevisível. O futuro não depende de um conjunto de expectativas matemáticas. Tudo afeta a decisão do empresário de investir, desde a possibilidade de mudança de governo e de política econômica, até peculiaridades psicológicas. A matemática não consegue, sozinha, tirar da toca o "espírito animal" do empresário - na definição de Keynes, "a compulsão espontânea para a ação, em vez da inação". Para tanto, precisa, além de provedores de recursos a juros baixos, encarar o porvir com otimismo pessoal.
No mundo real, as propostas de Keynes foram aplicadas depois da II Guerra Mundial pelos governos dispostos a desenvolver condições econômicas de prosperidade. O resultado foi, para Davidson, "uma era de crescimento real sem qualquer precedente na história". Essa era de ouro durou até 1970. Keynes foi então suplantado pelo que Davidson chamou de "contrarrevolução neoclássica". Na gangorra da história, após o colapso de 2008, a fórmula de Keynes retornou para evitar outra Grande Depressão. Passados três anos, essa reviravolta ainda está em aberto.
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