Uma importante reflexão acerca da evolução de conceitos e de sociedades nos últimos anos.
Cristovam Buarque
Cristovam Buarque
O Globo
Na semana passada, em Dijon, na França, realizou-se o fórum "Em torno das incertezas: Rio+20" para debater assuntos relacionados à cúpula de chefes de Estado e Governo, que se realizará no Rio de Janeiro, em junho de 2012. Um dos temas debatidos girou em torno do texto "133 perguntas sobre o futuro", que apresentei ao fórum (atualmente já são 168 perguntas - ver no endereço http://bit.ly/is31J6). Mas não há dúvidas que o mais importante dos três dias foi a palestra de dois senhores que somam 184 anos de idade: Stéphane Hessel, com 94, e Edgar Morin, com quatro anos a menos, pois fará 90 no dia 18 de julho.
O debate com eles durou quase três horas em auditório lotado. A primeira gratificação dos assistentes foi ver dois homens com essas idades chegarem caminhando rápido e subirem os degraus do palco, sem qualquer ajuda. Depois do debate, Hessel seguiu para um restaurante, onde jantamos até meia-noite. Morin não pôde ir ao jantar porque precisava viajar por duas horas e meia até Paris para cuidar de sua mudança à casa onde vai morar depois do casamento.
A jovialidade desses quase 200 anos não decorre apenas da capacidade de subir faceiramente os degraus, nem da resistência para falar, jantar ou casar, mas, sobretudo, do conteúdo que apresentam, olhando para o futuro, e da total empatia com os jovens que ali estavam.
Morin gesticula mais, fala com rapidez meteórica e cita muitos autores. Hessel tem gestos mais contidos e fala com mais poesia. Ambos falaram do futuro, preocupados, enfáticos, combativos, otimistas. Cada um denunciou os riscos das crises ecológica, social, política e financeira. Sobretudo, falaram que estas crises decorrem de outra muito maior, a crise do modelo da civilização que surgiu a partir da Revolução Industrial.
Civilização da insegurança, do desperdício, da depredação ambiental, da desigualdade, do desemprego, do endividamento, do consumo de drogas e da droga do consumo. Civilização que, no lugar de usar, se submete ao avanço técnico; no lugar de reduzir, cria necessidades novas a cada instante.
Ao longo de duas horas, eles passaram crítica, lucidez, jovialidade, combatividade. Começaram o discurso pela indignação que carregam e extravasam com a crise ambiental; a desigualdade; a intolerância racial, religiosa, de gênero, de opção sexual; com a falta de compaixão e de respeito à diversidade; com a estupidez da economia, a voracidade dos bancos e dos consumidores.
Hessel convoca os jovens a indignarem-se, como estão fazendo milhares, todos os dias, nos países árabes e na Europa, autonomeando-se de indignados, por inspiração do livro "Indignez-vous", que ele escreveu. Morin fala da esperança de uma "Nova Via", pela qual aponta rumos para uma civilização solidária, inteligente, harmônica.
Da indignação passam à análise crítica, mostrando a falta de lógica da civilização industrial; como a produção destrói; como a economia e a globalização alienam pelo excesso de trabalho de uns e o desemprego de outros; como o luxo do consumo por alguns e o consumo do lixo por outros se engrenam como duas partes de um mesmo sistema. Diante de nós, dizem, há um mundo ameaçado, um planeta maltratado, uma sociedade partida, vazia, drogada.
Pelos discursos percebe-se que os dois senhores não aceitam perguntar se vale a pena o esforço para salvar a humanidade. Não concordam com a ideia de Arthur Koestler de que o cérebro humano é suicida, por carregar um lado lógico com poder tecnológico para mudar o planeta e um lado amoral sem capacidade para dominar os instintos individuais e de curto prazo.
Eles falam da esperança de que todo o desastre atual é prenúncio de um novo tempo, quando a ética controlará a técnica; o prazer substituirá o consumo; a dança substituirá o ritmo chapliniano do fordismo; o antagonismo será substituído pela convivência solidária entre os homens e deles com a natureza.
Os dois passam o otimismo de que estes jovens vão mudar o mundo que continuará depois deles dois.
E desafiam todos à combatividade para que mudem o mundo do futuro, dos duzentos anos adiante. Hessel, aos 94, conclui declamando, de memória, todos os 24 versos do poema de Apollinaire "Sob a Ponte de Mirabeau", que conclui dizendo: "Vem a noite/soa a hora/os dias passam/eu não passo."
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