sábado, 26 de outubro de 2013

Arábia Saudita da China



Marcelo Coutinho 

Nos últimos quatro anos, a China se tornou o nosso maior parceiro comercial, de quem compramos produtos industriais e para quem vendemos bens elementares. De lá também vem o maior volume de dinheiro investido no país. O leilão do Campo de Libra - a maior privatização do país já vista - consolidou em 2013 uma nova era econômica, incluindo a expressiva participação oriental em nosso mercado petrolífero.

De agora em diante nossas mais importantes relações comerciais estão atreladas ao gigante asiático. Mesmo com a participação de empresas europeias no consorcio de Libra, a maior parte do petróleo exportado deve ir mesmo para a China. Nunca passamos por isso antes. Sempre tivemos com o chamado Ocidente um maior intercâmbio em geral. Tudo mudou de uma maneira acelerada, profunda e, aparentemente, sem volta.

No século XIX, a Inglaterra desempenhou esse papel no Brasil, abrindo as primeiras ferrovias e portos para escoar a produção pós-mercantilista. No século XX, foram os EUA que acompanharam o nosso desenvolvimento por intermédio das suas multinacionais. No século XXI, chegou a vez da China, com o seu capitalismo vermelho, mas sem hegemonia.

A pressão do capital inglês nos tirou do Brasil colonial escravocrata. O predomínio norte-americano fez com que nos mudássemos das fazendas para as grandes cidades e ampliássemos as fábricas. Com idas e vindas, também substituímos o coronelismo pela democracia moderna.

Com a China, já sofremos um efeito imediato que foi a desindustrialização. Não somos mais um exportador relevante de manufaturados. Voltamos a viver da "fazenda", ainda que não moremos mais nela.

Não é possível compreender a longa modernização brasileira desde Dom Pedro Segundo sem o capitalismo. Para o bem ou para o mal, foi o que promoveu boa parte das transformações que nos fizeram ser o que somos hoje. A China de alguma forma irá também contribuir para o nosso crescimento, mas não pelo lado político.

Seguindo os seus próprios interesses, as potências liberais anglo-americanas romperam os velhos elos de dominação tradicional no Brasil agrário, tornando possível a democracia nos trópicos e o nascimento de uma sociedade mais aberta, com o advento das classes médias e da opinião pública.

Já a China autoritária deve acentuar em nós a cultura do Estado imperando sobre a sociedade. É importante lembrar que todas as ondas de democratização no mundo foram seguidas de reversões. O golpe de 1964 no Brasil foi inclusive destaque de uma delas. Há, portanto, razões para acreditar que os regimes pluralistas sejam bastante suscetíveis às variações nos contextos internacionais.

Neste momento, talvez já sintamos outros efeitos da ascensão chinesa. Os últimos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE, referentes a 2012, indicam que, não apenas a economia, como também a imensa desigualdade social no Brasil está estagnada. É ainda muito cedo para conclusões, mas precisamos ficar atentos a esse fenômeno que interrompeu a queda nas nossas disparidades históricas.

A China não é a única grande potência e nem tem condições de controlar o mercado, como bem mostrou o leilão na maior reserva de petróleo no Brasil. Depois de tanto alarde, o dragão mandarim apresentou limites e a Europa mostrou que está viva. As análises sobre o mundo pós-ocidentais foram precoces e não cansam de produzir novas aberrações tipológicas. Surge agora a teoria do mundo sem líderes, nem G-20 nem G-2, como se fosse possível uma "apolaridade", um vazio de poder como esse.

O que está acontecendo de fato é a consolidação comercial chinesa na periferia, às vezes de maneira associada a outras empresas. Daí porque agora as relações sul-sul favorecerem em primeiro lugar a própria Ásia. Isso pode ou não em algumas décadas erodir por completo o protagonismo das antigas potências em países como o Brasil. Mas não está predeterminado.

Quando isso ocorrer e se vier mesmo a ocorrer, os primeiros sinais serão no dólar - na hipótese desta moeda perder o controle dos meios de pagamentos globais -, e só depois, possivelmente, nas instituições políticas domésticas. Neste caso, começaríamos a dar adeus à democracia. Viraríamos definitivamente a "Arábia Saudita" da China.

MARCELO COUTINHO, 39, é professor doutor e pesquisador de relações internacionais da UnB, UFRJ e IUPERJ.

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