quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Segurança pública, ainda uma questão estrutural

Ronaldo Marzagão
O Estado de S. Paulo 


Em artigo publicado no Estado de 17 de maio de 1986 sustentei que o maior problema da segurança pública estadual era estrutural, decorrente da forma de estruturação das polícias na Constituição federal, e não conjuntural, variável de acordo com circunstâncias administrativas de momento. Passados 27 anos, o tratamento continua sendo meramente conjuntural, o que é equivocado.

Medidas importantes, no curso desses anos, como maiores verbas para reequipamento e valorização salarial das polícias, aumentos de efetivos e de investimentos orçamentários em segurança pública, não produziram senão melhoras temporárias. Atenuam, mas não resolvem o problema. Não adianta sistema de segurança conjunturalmente melhor se a sua estrutura não estiver adequada às suas finalidades e permanecer intocada.

No Brasil, a estrutura do sistema de segurança pública estadual é definida pela Constituição federal, no que tange às funções das Polícias Civis e Militares (artigo 144, parágrafos 4.0 e 5.0). A estas cabe a polícia ostensiva ou preventiva; àquelas, a polícia judiciária ou de investigação.

Tudo indica que a Constituição tratou de definir as atribuições das Polícias Civil e Militar a partir de equivocada premissa de que o momento do crime é o marco divisório da atuação policial. Antes da ocorrência do crime, agiria a Polícia Militar, de forma ostensiva (polícia de prevenção). Depois da prática do crime, agiria a Polícia Civil, em atividade repressiva (polícia de investigação), em trabalho conjunto com a Polícia Técnico-Científica.

O raciocínio peca pela base, haja vista que o momento do crime é ponto de convergência, e não marco divisório da atuação policial. Senão chegaríamos ao ponto de a Polícia Militar não poder, por exemplo, intervir em roubo consumado para prender seus autores, pois o crime já teria ocorrido; e a Polícia Civil não poder atuar nas ruas para evitar que o roubo ocorra. Parece-me lógica do absurdo.

O modelo constitucional de funções partidas enseja a ideia de autonomia administrativa e operacional de cada uma das corporações policiais que integram a estrutura de segurança estadual. Propicia formações policiais distintas, originárias de órgãos de ensino diversos. Dificulta o relacionamento profissional e a atuação conjunta das duas corporações. Funciona como caldo de cultura para conflitos de atribuições, para a dispersão de meios e para a superposição de funções entre as polícias, resultando daí efeitos operacionais altamente negativos. Conduz a pesadas estruturas administrativas, operacionais e financeiras, incompatíveis com a eficiência de uma organização policial simples e ágil.

A complexidade da organização policial paulista, por exemplo, foi notada por policiais estrangeiros em 1958. Americanos que estudaram a organização da polícia paulista, depois

de constatarem sua complexidade, recomendaram a sua simplificação e reestruturação, alertando para o risco de se chegar à situação de; "em vez de a organização servir à polícia, a polícia é que serve à organização" (Estudo sobre a Organização Policial do Estado - Missão Norte-Americana de Cooperação Técnica, página 127).

Daquela época para agora, São Paulo conseguiu enormes avanços na racionalização de sua estrutura de segurança, avanços esses sinalizados, por exemplo, pelos melhores índices nacionais de redução do ! número de homicídios. Entretanto, o modelo constitucional é único para todos os Estados federados do Brasil e limita que cada Estado se estruture, como lhe convier, com polícia que combata o crime como todo harmônico, e não como segmentos autônomos.

Nesse quadro, a solução do problema estrutural seria aparentemente simples: bastaria emenda constitucional unificando as duas polícias e criando ciclo único de atividade policial. Más não é. Vai além, pois atualmente existem outras instituições que também exercem, ainda que ocasionalmente, funções típicas das policias estaduais, tomando a questão muito mais complexa.

As Guardas Municipais, de previsão constitucional e destinadas à proteção de bens, serviços e instalações do município, na prática têm exercitado, em maior ou menor extensão e ainda que eventualmente, atividade própria de polícia preventiva da Polícia Militar. De outra parte, o Ministério Público, invocando suporte constitucional e por intermédio do procedimento investigatório criminal, promove investigações e exercita função de polícia judiciária. O procedimento investigatório do Ministério

Público tem, em essência, a mesma finalidade do inquérito policial realizado pela Polícia Civil.

Em suma, a realidade demonstra que temos várias instituições distintas exercendo, exclusiva ou eventualmente, funções próprias de polícia estadual, não havendo como unificá-las numa única estrutura.

A atuação concomitante - e muitas vezes superposta - de órgãos distintos agrava a questão estrutural do sistema de segurança pública estadual, produzindo, entre outros fatores adversos, insegurança jurídica. Até mesmo para as polícias.

Daí por que, diante dessa realidade, deve haver reestruturação constitucional no sistema de segurança pública estadual. Antes, porém, é necessário que os Poderes da União definam qual o sistema legal de prevenção e de investigação policial que pretendem adotar para combater o crime. E quais serão as instituições e com que procedimentos legais instrumentalizarão o combate ao crime.

Não há solução fácil. Precisa ser construída com prudência e reflexão. A delicada tarefa é prioritariamente dos Poderes Legislativo e Executivo da União (Constituição, artigo 60), dos quais se espera a sensibilidade de dar prioridade a tema tão relevante.

Não há como unificar as várias instituições que exercem função própria de polícia estadual

Advogado, foi secretário de segurança pública de São Paulo
.

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