Cristiano Romero -Valor Econômico - 22/09/2010
Tornou-se um esporte nacional, há exatos 11 anos, falar mal do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. A se levar a sério o que é dito, seu governo foi um dos piores da história. O sucesso de público do governo Lula reforçou a zombaria. Hoje, até os aliados de FHC desistiram de defendê-lo. O ex-presidente parece não ter seguidores dentro do próprio partido, o PSDB. O que todos fingem esquecer é que o Brasil vive hoje, em grande medida, do legado de Fernando Henrique.
Como ministro da Fazenda, FHC fez o Plano Real, que debelou a hiperinflação. Não é pouco. A estabilidade de preços é um ativo político de valor incomparável, especialmente num país que sofreu por décadas com o infortúnio da inflação. Não foi à toa que deu a FHC duas vitórias presidenciais no primeiro turno. O presidente Lula descobriu, rapidamente, o valor da estabilidade. Em seu primeiro mandato, também deu prioridade ao combate à inflação, mas jamais comemorou o aniversário do real - em 2004, fez chegar a grandes empresários que não via com bons olhos a celebração da data.
FHC saneou o sistema financeiro nacional. Com a queda abrupta dos índices de preços, grandes bancos perderam receita inflacionária e fecharam as portas. A desconfiança dos depositantes era tanta que, se não fosse o mal-afamado Proer, a quebradeira poderia ter se generalizado. Hoje, Lula e seus ministros se orgulham do fato de o sistema bancário brasileiro ter atravessado, quase incólume, a pior crise financeira em 80 anos.
Fernando Henrique quebrou os monopólios estatais, criou agências independentes para regular os setores liberalizados e privatizou estatais. Não fez isso por razões ideológicas, mas por necessidade. Desde a crise da dívida, no início dos anos 80, o Estado brasileiro perdera a capacidade de investir. Era continuar drenando recursos para as estatais ou aplicá-los em áreas essenciais, como saúde e educação.
Tome-se o exemplo da Vale. Entre 1943, ano de sua fundação, e 1997, quando foi privatizada, a empresa investiu, em média, US$ 481 milhões por ano, e teve lucro líquido de US$ 192 milhões. De 1998 a 2009, investiu US$ 6,1 bilhões e lucrou US$ 4,6 bilhões. As exportações saltaram de US$ 1,1 bilhão para US$ 7,7 bilhões. O retorno para a sociedade foi além - o recolhimento de impostos pulou de US$ 31 milhões para US$ 1,093 bilhão por ano.
Na telefonia, em 1997, um ano antes da privatização, havia 21,5 milhões de telefones fixos e celulares no país, 13,4 por cada 100 habitantes. Em 2009, eram 215,4 milhões, com densidade de 112,1 por 100 habitantes. No caso da Petrobras, FHC não a privatizou, mas, ao abrir seu capital em 2001, tirou-a do marasmo, além de beneficiar milhares de trabalhadores, que usaram o FGTS para comprar ações da empresa. Nos cinco anos anteriores à abertura de capital, a estatal investia US$ 5 bilhões, em média, por ano. Em 2008, aplicou US$ 29 bilhões.
Hoje, tanto a Vale quanto a Petrobras são estrelas reluzentes do capitalismo brasileiro. O presidente Lula admira tanto as duas que costuma brincar com assessores, dizendo que, depois da presidência da República, gostaria de comandar a Petrobras; no caso da Vale, seu desejo é influir na gestão.
FHC reorganizou as finanças dos Estados. Em 1997-1998, renegociou suas dívidas. No ano 2000, sancionou a Lei de Responsabilidade Fiscal. Privatizou a maioria dos bancos estaduais, fechando um ralo por onde escorriam bilhões de reais em desperdício e corrupção. Os três marcos foram fundamentais para sanear as contas dos governos estaduais, que nos anos recentes recuperaram, inclusive, a capacidade de investir.
Na área social, FHC universalizou o ensino fundamental, promoveu avanços na saúde e criou os programas de transferência de renda, que, na gestão Lula, foram unificados no Bolsa Família. Reformou ainda a previdência social e criou o fator previdenciário, dificultando a concessão de aposentadorias a quem tem menos de 50 anos.
Disseminou-se a ideia de que FHC perdeu popularidade porque quebrou os monopólios estatais, privatizou e mudou as regras de aposentadoria. Essa percepção não encontra abrigo nas evidências. Números do Datafolha mostram que, entre 1995 e 1998, a popularidade de FHC variou pouco nas faixas de ótimo/bom e regular - ambas sempre em torno de 40%. A rejeição esteve sempre abaixo de 20%, com exceção do fim de 1998, quando chegou a 25%.
FHC perdeu apoio popular quando o governo, no primeiro mês do segundo mandato, foi forçado a desvalorizar o real. Aquilo foi entendido pela população como uma quebra de confiança e uma ameaça à estabilidade. No seu pior momento, em setembro de 1999, apenas 13% dos brasileiros consideravam seu governo bom ou ótimo; 56% o rejeitavam.
A desvalorização foi o reflexo de um equívoco - a manutenção do real valorizado de maneira artificial por muito tempo, contrariando, inclusive, as opiniões de setores do governo. Outro grande erro foi ter proposto ao Congresso a emenda da reeleição, tirando proveito da mudança em benefício próprio - isso não invalida a importância da reeleição, mas o correto teria sido aprová-la para entrar em vigor no governo seguinte. Pode-se mencionar ainda a falta de planejamento que levou ao apagão.
A perda de popularidade de FHC fez com que os adversários espalhassem a ideia de que seu governo foi um desastre, o que, como se vê, está longe de ser verdade. Tudo passou a ser condenado, mesmo aquilo que, na época em que foi feito, tenha sido aprovado pela maioria da população, como de fato ocorreu. Trata-se de uma das maiores mistificações da história do país, afinal, o Brasil vive hoje, com razoável grau de satisfação, dentro do legado construído por FHC. Um legado aprovado pela população e seguido por Lula.
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