O público dá, sim, importância à ética. Mas as transgressões governamentais terão incidência significativa até as eleições?
As campanhas à Presidência da República quase sempre trazem surpresas, maiores ou menores. Na campanha atual, a grande maioria dos analistas políticos dizia que, pela primeira vez, a política externa seria um tema central dos debates. Mas ao longo dos meses o tema acabou tendo pouca relevância. Ficaram para trás as simpatia do presidente Lula pelo "companheiro" Ahmadinejad, ou as barbaridades ditas no caso dos prisioneiros políticos cubanos em greve de fome.
Até as últimas semanas, as transgressões praticadas pelos detentores do poder, desde o caso Waldomiro Diniz, envolvendo o então chefe da Casa Civil, José Dirceu, não tinham maior repercussão na campanha eleitoral. Nem mesmo a quebra do sigilo fiscal da filha de José Serra teve efeitos na opinião popular, restringindo-se aos minoritários setores mais escolarizados. Agora, outro caso cheio de sombras, com acusações de nepotismo e tráfico de influência, veio à luz, a partir de uma reportagem da revista Veja tendo como foco a então chefe da Casa Civil, Erenice Guerra, braço direito de Dilma Rousseff.
Lula saiu a campo para apagar o fogo, usando a tática de sempre: expelir o que é necessário em seu entorno, impondo a demissão de Erenice, na tentativa de preservar sua imagem e a de sua candidata. No plano imediato, há uma pergunta que não quer calar: as graves denúncias terão consequências significativas na opinião popular, a ponto de tornar viável um segundo turno? A resposta positiva é improvável, mas não pode ser descartada.
A improbabilidade tem muito a ver com o feel good factor, ou seja, com o fato inegável de que ponderáveis parcelas da população ascenderam socialmente, pela via dos programas governamentais de transferência de renda, da elevação real do salário mínimo, da expansão do crédito e também de seu esforço pessoal. Ao mesmo tempo, a elite empresarial, com algumas exceções, se embala nos lucros advindos da associação entre o Estado, a grande empresa e os fundos de pensão.
Poderíamos, assim, chegar à conclusão de que esse quadro revela uma característica da cultura política brasileira, em que a ética na política, quando muito, tem significado secundário?
A resposta não é simples. O tema da probidade administrativa entrou em cena, a partir de 1945, no âmbito do regime democrático, instituído após a queda do Estado Novo. Entre as formações partidárias, a UDN encarnou a defesa da moralidade dos costumes políticos, ou, no dizer de seus inimigos, o tema do moralismo, até hoje lembrado para desqualificar quem denuncia práticas escusas. O problema básico da UDN não era, entretanto, a defesa da ética na política, e sim sua incapacidade de ligar-se às massas, acrescida de um liberalismo capenga, que a levou a apoiar o golpe de 1964.
No campo oposto, Getúlio Vargas e o PTB caracterizaram-se pela capacidade de criar laços com os trabalhadores, unindo a lógica material à lógica simbólica, na feliz expressão da historiadora Ângela de Castro Gomes. Transgressões praticadas no curso do governo Vargas foram desqualificadas como manobras da elite, inimiga do povo.
Esse quadro mudou, a partir das campanhas eleitorais de Jânio Quadros, culminando com sua ascensão à presidência da República, em janeiro de 1961. A essa altura, Getúlio se suicidara, sob a acusação de que um "mar de lama" se instalara no Palácio do Catete, e Jânio encontrara um campo aberto para encarnar o herói a um tempo moralizador e populista que, com sua vassoura, iria varrer, inexoravelmente, a sujeira incrustada na política do País. Embora Jânio explorasse também outros temas, sua cruzada desempenhou um papel importante na sua escalada, sensibilizando a classe média e as massas populares.
Em outro contexto - o da ditadura militar iniciada em 1964 -, o alegado objetivo de "purificação" da democracia, associado ao temor do comunismo, deu lastro social ao golpe, pela via do apoio da classe média. Quando a democracia ressurgiu, em meio ao esforço de se estabilizar o regime, construir instituições, garantir tanto quanto possível a transparência dos atos de governo, o ataque às transgressões acabou tendo também rendimento eleitoral. O signo da vassoura deu lugar ao caçador de marajás - Fernando Collor -, que, vitorioso na campanha eleitoral de 1989, comprometeu-se a investir contra os vencimentos dos funcionários públicos dos escalões mais altos.
Esses exemplos indicam que, em certas conjunturas, o grande público dá importância à ética na política, e vota levando em conta esse fator. Nos dias de hoje, se a vitória da onda vermelha, que nada tem de vermelha, se confirmar, será preciso levar a sério e combater as ameaças a frio à democracia, pela via da contenção da imprensa, da censura, da extirpação de partidos e outros expedientes.
As campanhas à Presidência da República quase sempre trazem surpresas, maiores ou menores. Na campanha atual, a grande maioria dos analistas políticos dizia que, pela primeira vez, a política externa seria um tema central dos debates. Mas ao longo dos meses o tema acabou tendo pouca relevância. Ficaram para trás as simpatia do presidente Lula pelo "companheiro" Ahmadinejad, ou as barbaridades ditas no caso dos prisioneiros políticos cubanos em greve de fome.
Até as últimas semanas, as transgressões praticadas pelos detentores do poder, desde o caso Waldomiro Diniz, envolvendo o então chefe da Casa Civil, José Dirceu, não tinham maior repercussão na campanha eleitoral. Nem mesmo a quebra do sigilo fiscal da filha de José Serra teve efeitos na opinião popular, restringindo-se aos minoritários setores mais escolarizados. Agora, outro caso cheio de sombras, com acusações de nepotismo e tráfico de influência, veio à luz, a partir de uma reportagem da revista Veja tendo como foco a então chefe da Casa Civil, Erenice Guerra, braço direito de Dilma Rousseff.
Lula saiu a campo para apagar o fogo, usando a tática de sempre: expelir o que é necessário em seu entorno, impondo a demissão de Erenice, na tentativa de preservar sua imagem e a de sua candidata. No plano imediato, há uma pergunta que não quer calar: as graves denúncias terão consequências significativas na opinião popular, a ponto de tornar viável um segundo turno? A resposta positiva é improvável, mas não pode ser descartada.
A improbabilidade tem muito a ver com o feel good factor, ou seja, com o fato inegável de que ponderáveis parcelas da população ascenderam socialmente, pela via dos programas governamentais de transferência de renda, da elevação real do salário mínimo, da expansão do crédito e também de seu esforço pessoal. Ao mesmo tempo, a elite empresarial, com algumas exceções, se embala nos lucros advindos da associação entre o Estado, a grande empresa e os fundos de pensão.
Poderíamos, assim, chegar à conclusão de que esse quadro revela uma característica da cultura política brasileira, em que a ética na política, quando muito, tem significado secundário?
A resposta não é simples. O tema da probidade administrativa entrou em cena, a partir de 1945, no âmbito do regime democrático, instituído após a queda do Estado Novo. Entre as formações partidárias, a UDN encarnou a defesa da moralidade dos costumes políticos, ou, no dizer de seus inimigos, o tema do moralismo, até hoje lembrado para desqualificar quem denuncia práticas escusas. O problema básico da UDN não era, entretanto, a defesa da ética na política, e sim sua incapacidade de ligar-se às massas, acrescida de um liberalismo capenga, que a levou a apoiar o golpe de 1964.
No campo oposto, Getúlio Vargas e o PTB caracterizaram-se pela capacidade de criar laços com os trabalhadores, unindo a lógica material à lógica simbólica, na feliz expressão da historiadora Ângela de Castro Gomes. Transgressões praticadas no curso do governo Vargas foram desqualificadas como manobras da elite, inimiga do povo.
Esse quadro mudou, a partir das campanhas eleitorais de Jânio Quadros, culminando com sua ascensão à presidência da República, em janeiro de 1961. A essa altura, Getúlio se suicidara, sob a acusação de que um "mar de lama" se instalara no Palácio do Catete, e Jânio encontrara um campo aberto para encarnar o herói a um tempo moralizador e populista que, com sua vassoura, iria varrer, inexoravelmente, a sujeira incrustada na política do País. Embora Jânio explorasse também outros temas, sua cruzada desempenhou um papel importante na sua escalada, sensibilizando a classe média e as massas populares.
Em outro contexto - o da ditadura militar iniciada em 1964 -, o alegado objetivo de "purificação" da democracia, associado ao temor do comunismo, deu lastro social ao golpe, pela via do apoio da classe média. Quando a democracia ressurgiu, em meio ao esforço de se estabilizar o regime, construir instituições, garantir tanto quanto possível a transparência dos atos de governo, o ataque às transgressões acabou tendo também rendimento eleitoral. O signo da vassoura deu lugar ao caçador de marajás - Fernando Collor -, que, vitorioso na campanha eleitoral de 1989, comprometeu-se a investir contra os vencimentos dos funcionários públicos dos escalões mais altos.
Esses exemplos indicam que, em certas conjunturas, o grande público dá importância à ética na política, e vota levando em conta esse fator. Nos dias de hoje, se a vitória da onda vermelha, que nada tem de vermelha, se confirmar, será preciso levar a sério e combater as ameaças a frio à democracia, pela via da contenção da imprensa, da censura, da extirpação de partidos e outros expedientes.
* Boris Fausto é historiador, professor aposentado do Departamento de Ciência Política da USP e autor, entre outros livros, de A Revolução de 30 - Historiografia e História (Companhia das Letras)
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