quinta-feira, 23 de junho de 2011

Avaliação ideológica do Cone Sul

Jarbas Passarinho
Correio Braziliense 

Coronel reformado, foi governador, senador e ministro de Estado

A viagem da presidente Dilma ao Uruguai sugere o exame histórico dos anos que abalaram o período que abrange as décadas de 1960 e 1970, especialmente Argentina, Chile e Brasil. A visão crítica da história busca interpretar analiticamente o período em que ambos viveram como personagens engajados no conflito das ideias que então travaram na tentativa de reformar a sociedade segundo a convicção ideológica. Saber se, mesmo derrotados, mantiveram ou não seus princípios revolucionários, é mais útil do que os situar com precisão cronológica de arquivista nos dias, meses e anos exatos dos fatos vividos. Para a ciência política, importa mais analisar no âmbito das ideias do que simplesmente saber com precisão situá-los e quando aconteceram.

Desde a década de 1960, passada a fase das guerrilhas, surgiu uma nova esquerda que não tem base sólida como a original teve na massa operária, nem uma base eleitoral para vencer uma eleição que fuja do kiss of death, o beijo da morte, que representa um governo sem maioria absoluta no parlamento. Uma vez chegados ao poder, opinam pelo regime de capitalismo democrático, uma "nova esquerda", doutrina variante da social-democracia, admitida depois que perdeu atualidade o fundamento da esquerda original. Segundo um fiel marxista famoso, como Hobsbawm, as esquerdas moderadas justificam-se explicando: "Já que na prática nada podemos fazer para nos distinguir da direita, só resta nos adaptarmos".

José Mujica enfrentou a ditadura uruguaia, preso durante 13 anos e por várias vezes evadido da prisão, uma delas flagrado ao sair da rede de esgotos de Montevidéu, onde se escondera à semelhança de Jean Valjean, de Les Misérables, de Victor Hugo. A reportagem da Folha de S.Paulo, que o ouviu recentemente, registra: "Na solitária padeceu por vários anos e teve sua saúde duramente abalada. Frequentemente seus guardas na prisão não lhe permitiam sequer que fosse ao banheiro durante o dia inteiro".

De seu sofrimento não guarda rancor. Não adotou represálias. Trocou a luta armada pela disputa democrática parlamentar, chegando a senador e posteriormente a presidente da República. Na campanha, pregava não mais combater a burguesia, ou porque Marx ensinou, no Manifesto, de 1848, que as classes médias não são revolucionárias e a burguesia é fonte de todos os vícios e maldades. Venceu com os votos dela, hoje governa com ela e é por ela considerado líder confiável às regras econômicas do mercado.

Considerável mudança do guerrilheiro tupamaro — outrora decidido a eliminar a burguesia, agora tem-na numa coalizão de centro-esquerda. Em 2009, em entrevista a O Estado de S. Paulo, disse que "a esquerda uruguaia tem peculiaridades que só funcionam no Uruguai". Fidel Castro, depois de 50 anos de socialismo, confessou que o socialismo cubano também não funcionava. Ao irmão, seu refém, mandou experimentar simulação com a propriedade privada. À reportagem de 2009 adiciona que, apesar do passado de guerrilheiro tupamaro, Mujica é considerado pelos economistas um político pragmático, market friendly, um líder confiável entre os agentes do mercado. Sua trajetória política faz-nos lembrar a de Lula, de revolucionário exaltado por três vezes derrotado em eleições presidenciais a eleito na quarta vez, convertido em político pragmático.

A reportagem da Folha compara Mujica e a presidente Dilma. A começar por salientar que "José Mujica passou mais tempo na prisão, de 1972 a 1985". Mujica delicadamente reformulou suas ideias, devidas à paixão revolucionária, de que fala François Furet, mas sem ceder à apostasia. Fica claro que optou pelo centro-esquerda dentre as "peculiaridades" uruguaias a que recorreu, na entrevista. A nossa presidente prefere dizer apenas "que tem orgulho do seu passado e dele não se arrepende". Mujica divulga, aparentemente sem mágoas, a natureza das torturas por que passou. A presidente silencia sobre elas, conquanto faça, aqui e ali, saudosos elogios aos companheiros que sofreram torturas e morreram pela causa comum. Um fato é inegável: a análise do ocorrido no Cone Sul e no Brasil deixa clara que a opção pela luta armada, para conseguir ideologicamente implantar regimes marxistas-leninistas, foi um erro, aliás, admitido publicamente por José Mujica.

A reconciliação das partes em conflito é essencial para obter o esquecimento do ocorrido, sem exigência de perdão pelo vencedor nem de rejeição de princípios por parte do vencido, ambos sepultando rancores. É um exemplo que o Uruguai dá, com a inexistência de rancores dos tempos fratricidas que a luta armada podia ter guardado. É o que podemos lembrar, com efusão, a pacificação da Guerra Farroupilha depois de 10 anos de duração, já que a Lei de Anistia, de 1979, só logrou esquecimento por parte pelos vencedores. O imperador concedeu ao general vencedor seu primeiro título nobiliárquico, Conde de Caxias. O povo, feita a paz, poucos anos depois o elegeu senador da Província do Rio Grande.
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