sexta-feira, 24 de junho de 2011

Elogio ao sociólogo que virou tese

JOSÉ NÊUMANNE
O Estado de S.Paulo

Fernando Henrique Cardoso era um militante celebrado e respeitado cientista social quando entrou na vida pública como assessor direto do representante máximo da resistência civil à ditadura militar, Ulysses Guimarães, presidente nacional do MDB e, depois, do PMDB. Candidatou-se ao Senado por uma sublegenda, apoiado pelos metalúrgicos de São Bernardo do Campo, liderados por Luiz Inácio da Silva, o Lula. Aproveitou-se da renúncia de Franco Montoro, eleito governador de São Paulo, para ocupar a vaga deste no Senado. Consta que só não foi ministro de Fernando Collor de Mello porque o ranzinza Mário Covas, líder da dissidência que se tornou PSDB, não o permitiu. Um observador realista duvidaria de sua eleição até para a Câmara dos Deputados quando Collor caiu. Mas, tendo sido o principal artífice da tentativa de impedimento que deu em renúncia, e passado pela Chancelaria e pelo Ministério da Fazenda no mandato-tampão de Itamar Franco, do qual foi um dos articuladores mais notórios e importantes, venceu a eleição presidencial.

A alavanca de Arquimedes que o levou de uma cadeira incerta no Congresso ao principal gabinete do Palácio do Planalto foi o Plano Real. Na chefia de Pedro Malan, Pérsio Arida, Edmar Bacha e Gustavo Franco, ele desistiu de pôr o ovo de Colombo de pé e, em vez disso, fritou uma suculenta omelete. Hoje tudo isso parece óbvio. Mas, à época, não o era. O confronto entre desenvolvimentistas e heterodoxos (mais tarde satanizados como "neoliberais") atiçava o fogo que tecia a cortina de fumaça que impedia a visão do óbvio: a redenção do assalariado passava forçosamente pelo fim da febre inflacionária, causa da doença econômica que enriquecia os ricos e empobrecia os pobres com a perda do valor de compra da moeda. A familiaridade do professor Aloizio Mercadante Oliva com a teoria econômica não evitou que ele cometesse uma das mais célebres batatadas da política econômica no Brasil: garantiu a seu líder e candidato à Presidência Luiz Inácio Lula da Silva que a moeda forte era um estelionato eleitoral. E, no Ministério da Fazenda de Itamar, seu colega professor promoveu a maior revolução social da História do Brasil. Com isso, tornou-se o caso raro de sociólogo que virou tese e político que saiu do zero para o infinito num átimo.

Da mesma forma, contudo, que disparou do anonimato para a glória, mergulhou no ostracismo em idêntica velocidade com que escalou até o topo. Patrono da reeleição, instituto incomum e renegado na política brasileira, aposentou-se como o alvo preferencial dos adversários e a companhia mais indesejável dos companheiros de jornada. De posse do sucesso da estabilidade monetária, que antes rejeitavam, os petistas apedrejaram sua herança, dada como maldita, e com esse refrão Luiz Inácio Lula da Silva se elegeu duas vezes consecutivas e fez sucessora uma candidata improvável, tirada da cartola de mágico, Dilma Rousseff, provando, na prática, que na política, ao contrário do que reza o bom senso comum, nem sempre fatos se impõem a argumentos enganosos.

Se os fados são caprichosos com qualquer um, mostraram sê-lo mais no que se refere ao filho de general que se tornou figadal inimigo do regime militar e ao mero assessor que chegou ao posto que caciques como Ulysses Guimarães, Miguel Arraes e Leonel Brizola almejaram, mas nunca alcançaram. Agora, ao atingir, serelepe, o oitavo decênio de existência, viu-se subitamente reconhecido pela adversária da qual menos podia esperar um gesto amistoso. E esse inesperado reconhecimento foi lavrado em documento em papel timbrado da Presidência na elogiosa carta que Dilma Rousseff lhe enviou cumprimentando-o pela efeméride. No texto, reproduzido no site do ex-presidente e nos jornais, Dilma elogiou o "acadêmico inovador", "político habilidoso" e "presidente que contribuiu decisivamente para a consolidação da estabilidade econômica", jogando no lixo o discurso da "herança maldita", repetido ad nauseam nos próprios palanques.

Dilma constatou que o antecessor apostou no "diálogo como força motriz da política" e "foi essencial para a consolidação da democracia brasileira". E acrescentou: "Não escondo que nos últimos anos tivemos e mantemos opiniões diferentes, mas justamente por isso maior é a minha admiração por sua abertura ao confronto franco e respeitoso de ideias". Os correligionários do elogiado comemoraram o fato como se fosse um triunfo eleitoral, esquecendo-se de que nunca nenhum deles teve humildade e tirocínio para reconhecer os feitos de Fernando Henrique como a adversária o fez.

O oportuno reconhecimento, antecipando o registro histórico desapaixonado que resgatará o papel do acadêmico no exercício da Presidência, está obviamente acima das querelas do cotidiano do poder e da política. Embora tenha sido divulgado dias depois da ida de Lula a Brasília, onde ele foi buscar lã e saiu tosquiado no episódio que terminou com a defenestração de dois protegidos do ex-presidente, Antônio Palocci e Luiz Sérgio, o documento não deve ser reduzido a um movimento do minueto da relação entre padrinho e afilhada. Demonstrando que até pode ter perdido o pelo, mas nunca a manha, o lobo de Garanhuns arreganhou os dentes, exigindo da companheirada fidelidade à sucessora que elegeu, dando a entender que não saiu da sintonia da presidente.

De qualquer maneira, Dilma saiu bem na foto ao perceber que o poder, mesmo quando conquistado com as notórias falsificações do marketing político, permite a quem o conquista tornar-se maior ao reconhecer o mérito alheio. Com isso, mesmo que essa não tenha sido sua intenção, ministrou uma lição a seu professor, que perdeu uma oportunidade de se mostrar à altura da veneração popular que conquistou, e a seus opositores, incapazes de perceber o óbvio até quando este vem se manifestar ao alcance do nariz.
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