CAETANO VELOSO
O GLOBO
Podem dizer que sou chato (não será nem a milionésima vez), voltando a um papo que já saiu das manchetes
Numa cena de “12 homens e uma sentença”, de Sidney Lumet, cuja ação se resume às discussões dos jurados no julgamento de um garoto acusado de matar o pai (o que o pode levar à cadeira elétrica), um personagem fascistoide quer desqualificar moralmente o réu (mesmo levá-lo à condenação) com o argumento de que ele “não fala inglês correto”. Em inglês, o fascistão usa “don’t” em vez de “doesn’t”, ao referir-se ao acusado (o que é um erro de concordância verbal). Um outro membro do júri, em reação antifascista, corrige o inglês de quem quer negar os direitos do garoto. Ao apenas dizer “doesn’t even speak…”, o sensato opositor do fascista, sem sequer explicar que o argumento deste é inaceitável, mostra que, mesmo sabendo usar melhor as regras do inglês culto, não rejeita as premissas que exigem respeito ao réu, independentemente de ele ser mais ou menos letrado. Tudo isso, no filme, está dentro de um contexto que caracteriza o menino como de origem pobre e habitante de cortiço degradado. Pois bem, a atitude do jurado que dá o quinau no fascistão é um paradigma do que fizeram os professores de linguística ao defenderem o livro de Heloisa Reis dos jornalistas que o acusam de “ensinar a falar errado”: repetidas vezes esses professores apontaram erros de regência, concordância ou sintaxe nos que atacaram o livro de Heloisa.
Podem dizer que sou chato (não será nem a milionésima vez), voltando a um papo que já saiu das manchetes. Mas, em primeiro lugar, colunas não são escravas de notícias. E, depois, mas não menos importante, eu sou apaixonado demais pelo tema para deixar passar equívocos que doeriam em mim. Volto ao assunto em parte por causa de outra Heloisa, a Faissol, cuja entrevista a Jô que vi no YouTube (me mandaram um link, com a palavra “Imperdível!” no subject) é cheia de momentos excitantes e intrigantes. O próprio Jô, a certa altura, faz (em cumplicidade velada com o telespectador) um paralelo entre a alegação feita pela moça de que um funk (de sua autoria) que ela acabara de cantar tem valor educativo, e o famoso livro didático aprovado pelo MEC, não. Ri, fascinado e meio nervoso (eu estava sozinho, aqui na frente do computador), sintonizado com a ironia do apresentador. Mas logo me veio à cabeça que muitas vezes me doeu ouvir o próprio Jô dizer coisas como “houveram várias tentativas de não sei-o-quê”. Sempre me dói (como se diz popularmente de erros crassos que eles “doem no ouvido”) quando alguém flexiona o verbo haver quando ele não está em função de verbo auxiliar, ou seja, quando ele é impessoal e tem o dever de ficar estacionado na terceira pessoa do singular. Ouço muito isso — não só, é claro, do Jô — e tenho especial antipatia pelo erro.
A Heloisa, não a da cartilha ou livro de conselho para educadores (nunca ficou claro para mim), mas a do funk, a filha do famoso dentista de Collor e atual cunhada e comadre de João Gilberto, me fez viajar por várias regiões misteriosas das classes sociais e por várias camadas e graus de educação. Como muitos devem saber, ela ganhou (e adotou) o apelido de “Heloisa Quebra Mansão”, em simetria contrastante com o “Quebra Barraco” da Tati. Esta é uma favelada que exibe, com grande graça, em funks desabusados, sua proficiência sexual. Já Helô é menina fina da Zona Sul, rica de nascença, acostumada a passar férias em Angra. Nenhum erro de concordância em suas respostas a Jô. Mas muitas afirmações (nas falas e no texto das músicas) que doeriam nos ouvidos da classe média alta de onde ela vem. “Dou sem dó”, “dou pra cachorro”, “eu dou no primeiro encontro”. Jô se comportava como alguém sóbrio em frente de alguém que bebeu demais, para dizer o mínimo. Mas não era malevolente. Uma certa leveza e doçura mitigava a insinuação de ridículo que ele fazia diante da entrevistada. Esta não registrava em absoluto o teor. O que lhe dava um ar de independência e mesmo de pureza d’alma.
Estarei mentindo se disser que esse foi o primeiro contato que tomei com a nova fase de Heloisa. Não. Já tinha lido em jornais. Tinha ouvido conversas em que se comentavam alguns versos seus. Na verdade eu conheci Heloisa em Buenos Aires, faz anos , quando João e eu fizemos um show lá e ela foi com a irmã. Mas assistir à entrevista, com Jô citando livro da Reis — e pouco depois de ter assistido a “12 homens e uma sentença” na TV — foi instigante e revelador. Quis compartilhar com meus 17 mil
leitores a experiência. E algumas conclusões.
Eu tinha chegado de um encontro com Tzvetan Todorov na casa de Bia e Pedro Correa do Lago, aonde cheguei diretamente do Projac, onde tinha ido participar do programa dos 25 anos do “Xou da Xuxa”. Ou da Xuxa na Globo. Ou na TV (não sei se eles contam os cruciais anos que ela passou na Manchete). Seja como for, de Xuxa a Todorov, me movi com naturalidade e sem tempo para pensar. Vendo a Faissol com Jô no YouTube e Lumet na TV, pensei em quão relevante pode ser ver televisão.
E me animei a voltar a “pegar os peixe”, pois, apesar de poder parecer diferente, eu me pus desde logo perto de Zé Miguel e João Ubaldo. No mínimo, estranhava tanto Possenti quanto Clóvis Rossi. Gosto de que esse episódio tenha chamado a atenção para o que dizem os professores de linguística. Mas o artigo de Pasquale sobre o assunto foi o mais equilibrado. Justamente o professor de gramática que os professores de linguística adoram odiar.
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