EDITORIAL
O GLOBO
A frase "restaure-se a moralidade ou locupletemo-nos todos", atribuída ao Barão de Itararé (Aparício Torelly), retrata bem a postura irônica do humorista, de muitas décadas, diante da crônica de maus costumes éticos na vida política do país. O afrouxamento moral tem longa história, e não parece que terá fim.
A tragédia ocorrida no fim de semana, com a queda de um helicóptero no Sul da Bahia, desvendou ligações do governador Sérgio Cabral com empresários que colocam questões sérias sobre até que ponto deve ir o relacionamento entre pessoas do mundo privado e público, sem que seja ultrapassada a fronteira do conflito de interesses.
Não se pode imaginar que o governador do Rio de Janeiro, seja qual for, não conheça pessoalmente o empresário Eike Batista, inclusive morador do Rio. Nem que deixe de ter contato com outros empresários, entre eles empreiteiros, cuja parte ponderável do faturamento vem de verbas públicas. Eles batem sempre à porta do setor público, nada a estranhar. A questão entra em área sombria quando é perguntado se o governador deveria ter viajado para Porto Seguro no jato de Eike Batista, numa escala para desembarcar num resort próximo, em que haveria a festa de aniversário de Fernando Cavendish, dono da Delta, construtora com R$1 bilhão em contratos com o governo do Rio, alguns obtidos sem licitação.
Eike, procurado pela imprensa, declarou ter emprestado o jato "com satisfação". Não se trata disso. Cabral é que teria de perceber a inadequação da carona e a inoportunidade da festa.
Ligações perigosas existem pelo mundo. Quando os estragos ocorrem na vida da pessoa pública, nota-se que ela nada enxergava de mal naquele relacionamento indevido. A ministra francesa de Relações Exteriores, Michele Alliot-Marie, por exemplo, era próxima de empresários tunisianos da órbita do ditador Ben Ali. Passou, inclusive, o feriado de Natal em Túnis, quando já cresciam as manifestações contra o regime. Como nos enredos da maioria das histórias desse tipo, a ministra voou em jatinhos privados. Pois os ventos da Primavera Árabe derrubaram Ali e a ministra.
O próprio chefe da ministra, presidente Nicolas Sarkozy, deve ter pago algum preço ao aparecer no avião particular e iate do amigo Vincent Bolloré. E não faltam amigos para pessoas poderosas na órbita pública.
No Brasil, depois de, no governo Collor, PC Farias ter ultrapassado todos os sinais vermelhos, a ponto de o presidente sofrer impeachment, veio a Era FH, na qual houve alguns cuidados na separação entre o público e o privado. Criou-se, então, a Comissão de Ética da Presidência.
Já nos oito anos de Lula, a ética - inclusive a comissão - foi mandada às favas, uma contribuição dramática à deterioração dos costumes na vida pública. O fato de o partido e o grupo de políticos que se apresentavam como reserva moral fazerem o oposto em Brasília funcionou como um "liberou geral". Até porque o presidente sempre defendeu "mensaleiros" e "aloprados" petistas.
A tragédia no Sul da Bahia ocorreu dentro de todo este contexto. Deveria servir de alerta aos homens públicos que se descuidam e não delimitam os devidos espaços entre os cargos eletivos que ocupam e os interesses que os cercam. Legítimos, mas tóxicos. Precisam ser administrados com cuidado.
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