XICO GRAZIANO
O Estado de S.Paulo
A agricultura esteve em voga na política destes dias. Melhor dizendo, participou das conversas. Vejam que curiosas frases foram ditas:
Do senador Demóstenes Torres, em entrevista à revista Veja: "Vivemos em um momento crítico, de total submissão. No final das contas, o Congresso se comporta bovinamente".
Do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, questionado a respeito de sua posição atual sobre as drogas: "Só quem é burro não muda de opinião diante de fatos novos".
Do jovem Dayvini Nunes, dono do apartamento alugado pelo ex-ministro Antônio Palocci: "Eu não tenho como bater de frente com essas pessoas. Sou um laranja".
A alusão pejorativa à agricultura tem se tornado, há tempos, uma característica típica da oratória brasileira. Não se conhece outra nação onde a linguagem carregue tamanho preconceito contra o campo. Triste povo que, mesmo sem o perceber, achincalha seus agricultores.
A lista das figuras de linguagem depreciativas do mundo rural soa enorme. "Vá plantar batatas" é uma das mais antigas. Diz-se que a frase nasceu na época gloriosa de Portugal, quando a navegação e a pesca emprestavam prestígio à sociedade, restando desdém pela vida sofrida na agricultura. Tida como alimento vulgar, a solanácea calejava e sujava as mãos dos que a produziam.
Alimento básico da civilização inca, a batata encantou os colonizadores espanhóis, que logo a levaram para a Europa. O sucesso de sua aceitação leva muita gente a pensar que o alimento tem origem alemã. Uma das razões decorre do fato de que, em 1740, Frederico II, o Grande, baixou norma obrigando seus súditos na Alemanha a consumirem batatas para enfrentar a constante ameaça da fome. Ainda hoje, sobre seu túmulo, no Palácio de Sans-Souci, depositam-se batatas para lembrar o gesto pátrio.
Nem sempre facilmente se explica a origem das metáforas negativas utilizadas com gêneros agrícolas. A própria batata, que mereceria uma homenagem, serve ao desabono.
Descascar um abacaxi, outro exemplo, não exige tanto esforço assim para justificar algo penoso, conforme a linguagem popular utiliza na descrição de missão inglória. Mas pegou.
O caso da laranja sempre me pareceu o mais estranho. No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa se encontra que laranja, em economia, remete a indivíduo, nem sempre ingênuo, utilizado em práticas fraudulentas contra o fisco ou com dinheiro ilícito. Ser "laranja" significa, portanto, um disfarce do mal.
Mas qual seria a motivação semântica do termo? O engana trouxa recai sobre a laranja por ser ela azeda? Ou por causa da coloração amarela por fora, na casca, e branca por dentro, no bagaço? Ninguém duvida que o Palocci esconda algo estranho nessa história de sua grana milionária. Só não entendo eu qual o alegórico pecado da fruta.
Já o coitado do burro sai injustiçado sempre que, aos olhos de uma pessoa, outra não toma boas decisões. Dizer, entretanto, que fulano é burro afronta a natureza, pois o asinino é um animal bem inteligente. Cauteloso, o bicho fez história no transporte de cargas em terrenos difíceis e encostas íngremes, onde um cavalo facilmente despencaria. O burro, ou sua mulher, a mula, empacam por astúcia, não por teimosia.
Fernando Henrique, um homem sabidamente perspicaz, está correto. Quem não muda nunca de opinião é dogmático, perde razão. As Ideias e seu Lugar intitula um dos seus ensaios mais instigantes sobre as teorias do desenvolvimento. Ter ele caído na armadilha da linguagem preconceituosa mostra o quanto o vício está incorporado nos ditos populares. Para mostrar sua flexibilidade intelectual poderia alternativamente ter dito: "Não sou uma pedra"! Parada no mesmo lugar.
Do burro ao boi. O Congresso Nacional, aos olhos do povo, parece uma casa de doidos. O senador Demóstenes Torres, porém, teve alguma inspiração ao contrário, ligada à mansidão, para caracterizar em sua entrevista o lado bovino daquela Casa. A submissão do Congresso ao poder do Executivo é um sério problema apontado por ele, motivo de preocupação dos democratas republicanos. Agora, achar que toda boiada é lânguida significa desconhecer a complexidade da pecuária. Cutuca touro bravo pra ver!
Certo desprezo ao caipirismo se esconde no preconceito urbanoide contra o campo. Nas festas juninas o desdém aparece disfarçado nos exagerados fetiches do caboclo, tais como o chapéu de palha desfiado do tipo espantalho, aquele dentinho pintado de preto para parecer banguela, o sapatão velho de bico furado. Em vez de homenagem, refletem um horroroso mau gosto que deforma a visão das crianças sobre os homens do interior, depreciando-os, igualando-os todos ao triste personagem Jeca Tatu. Pedagogia zero.
O passado escravocrata e latifundiário, aliado aos problemas ambientais do presente, como o desmatamento, certamente ajuda a cultivar na opinião pública uma imagem negativa da nossa agricultura. Vista caolhamente, suas mazelas se destacam, as glórias se escondem. Nesse olhar deformado, o atraso ido subjuga a modernidade rural.
A ideologia urbana, auxiliada por infelizes metáforas, transforma o positivo em negativo, criando uma maldade que ridiculariza o mundo rural. Poderia ser diferente. Bastaria as pessoas se apegarem às jocosas figuras de linguagem. O Palocci caiu do cavalo. Fernando Henrique mexeu com um vespeiro. Demóstenes cutucou a onça.
Louco da vida com as autoridades alemãs, que equivocadamente jogaram sobre as costas dos agricultores espanhóis a culpa por aquele surto bacteriológico, bradou o representante da Espanha, Francisco Sosa-Wagner, brandindo nas mãos um exemplar do legume: "É preciso recuperar a honra do pepino".
Tá certo o homem!
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