E. Felipe Ohana
Valor Econômico
Os pagamentos têm superado as receitas, mas o déficit não é previdenciário.
A previdência pública, no Brasil, tornou-se, desde os anos 90, o patinho feio das finanças do governo central. Sem a inflação para ajudar no equilíbrio das contas (corroendo o valor real das despesas), especialistas se lançaram numa verdadeira cruzada para a redução dos benefícios previdenciários (para apresentação abrangente do tema: Túlio Cambraia em www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/orcamentobrasil/orcamentouniao/estudos/2010/et05-2010.pdf).O argumento mais difundido tem sido o da inconsistência dinâmica. O aumento relativo do contingente de idosos criará um ônus insuportável para as futuras gerações, que comporão a minoria contribuinte. Sendo assim, a forma de se financiar o compromisso previdenciário deverá ser alterada. Como ocorre com qualquer despesa pública, o financiamento advém da carga tributária (ou do endividamento).
O fato de haver uma contribuição específica para financiar a previdência faz com que surja, de maneira inquestionável, a ideia de déficit. Provavelmente, se houvesse uma contribuição para (a função) Relações Exteriores, ouvir-se-ia falar do déficit do Itamaraty.
Outra vertente diz que o montante gasto em previdência poderia ter usos mais nobres. De fato, isto é sempre assim. Decidir sobre a melhor alocação constitui a essência do compromisso político e a marca de um governo, o que, raramente, conta com aprovação unânime.
Entre 2007 e 2009, a maior parte do, assim denominado, déficit previdenciário (87%) originou-se das aposentadorias do setor rural, uma política de não se desamparar aquelas pessoas, mesmo não sendo elas contribuintes em sua plenitude. É, portanto, uma decisão de conteúdo assistencial e, desde que tais despesas estejam orçadas, não há problema para as finanças públicas.
A aposentadoria rural é uma das vertentes assistencialistas a explicar o "déficit previdenciário", cuja força de impacto tem sido potencializada pela elevação do salário mínimo em percentuais superiores àqueles da inflação (INPC). Tivemos, aí, a partir de 2004, um dos principais vetores da distribuição exógena de renda, ao qual não há contestação, embora haja rejeição unânime ao "déficit da previdência". Chega a parecer que os dois movimentos sejam independentes.
Qual teria sido a participação dessa política social (elevação real do mínimo) sobre o déficit da previdência? No quadro abaixo, a coluna Economia (previdenciária) resulta da diferença entre o valor dos benefícios efetivamente pagos e aquele valor que seria pago caso os benefícios, na faixa até um salário mínimo, tivessem sido corrigidos pelo INPC (sem aumento real).
Como a elevação do valor real do mínimo é progressiva, a participação da Economia (coluna a) no déficit previdenciário total (b) é crescente e atinge 83,7%, em 2010. Para deixar claro, R$ 35,3 bilhões é o montante adicional de despesa previdenciária, em 2010, explicado pelo aumento real do mínimo. Se não tivesse havido a política social de aumento real do mínimo, as despesas previdenciárias teriam sido R$ 35,3 bilhões menores. Ou seja, o déficit previdenciário cairia para R$ 6,9 bilhões (o que seria atribuível à aposentadoria rural).
A regra de atualização do mínimo segue a variação do PIB nominal (com defasagem). Portanto, como a arrecadação fiscal cresce com a renda, haveria um hedge para o déficit e bastaria ajustar o hiato presente de recursos. A esse respeito, enquanto a renda crescia a taxas expressivas, a coluna (b/c) mostra o ciclo da relação déficit/PIB. Vale dizer, o reajuste salarial não tem sido compensado. Ademais, não há razão para se crer na estabilidade da regra de reajuste do salário mínimo.
Os pagamentos feitos pelo Ministério da Previdência (MPAS) têm superado as receitas correspondentes. Isto, nada obstante, não autoriza adjetivar o déficit criado como previdenciário, uma vez que a origem do problema é assistencial.
Nessa circunstância, criar uma idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição significa abrir espaço para se acelerar a elevação real do salário mínimo e/ou de outras despesas assistenciais, no âmbito do MPAS. Mais importante, não há qualquer preocupação com segurança jurídica no contrato estabelecido tacitamente entre o contribuinte e o Estado, referente à sua aposentadoria por tempo de contribuição.
A pergunta final: nada há a fazer, se a sociedade resolver gastar menos com previdência? Mantido o zelo pela questão contratual e identificados os valores assistenciais (para custeio mediante tributos gerais e não sobre a folha de pagamento), caberia elidir as aposentadorias por tempo de contribuição. Restaria ao MPAS a função de seguradora (cobertura dos impedimentos da capacidade laboral) e a de pagar uma renda de referência para aqueles em idade avançada. Neste quadro, é evidente, haveria uma redução expressiva nas alíquotas de contribuição, uma vez que a previdência, como essencialmente entendida, estaria sendo privatizada.
Em suma, a despesa previdenciária é fiscal, o que remete esta matéria à preocupação geral com o equilíbrio das contas públicas. Com a meta fiscal atingida, gastar mais ou menos no âmbito do MPAS é uma preocupação de natureza política. De toda forma, não se explica a razão de os contribuintes do regime geral da previdência serem escalados como "solidários principais" para o ajuste fiscal, como o foram, ao serem tributados pelo fator previdenciário.
Por fim, as iniciativas de reforma sempre propuseram fazer mais do mesmo, apenas reduzindo a intensidade. Não funcionou.
Felipe Ohana é economista e consultor. fohana@terra.com.br
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