domingo, 26 de junho de 2011

Culpa

Uma crítica sutil e rifinada acerca de omissão social consciente.
Vale a pena ler, é breve e profundo.

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FERNANDA TORRES
FOLHA DE SÃO PAULO


Tive certeza de que todo o mal que nos rodeia só era possível graças à existência de egoístas abjetas como eu.

NA ÉPOCA em que a guerra nos morros do Rio de Janeiro espocava bombas pela madrugada, fui convidada para um jantar em torno de Salman Rushdie.

Durante a noite, mantive uma distância envergonhada do legendário autor. Nunca li Salman Rushdie, nem mesmo "Os Versos Satânicos", livro considerado ofensivo ao profeta Maomé e que levou o aiatolá Khomeini a emitir uma fatwa conclamando os muçulmanos devotos a assassinarem o escritor.

Já na sobremesa, o grupo no qual eu havia me refugiado foi chamado para se aproximar do Prêmio Nobel de Literatura. Na mesa da varanda, ele narrava sua lembrança do fatídico 11 de Setembro.

Depois de passar mais de dez anos escapando da morte, Rushdie fixou residência em Nova York. No dia do ataque ao World Trade Center ele se encontrava em uma outra cidade dos Estados Unidos a trabalho. Boston, se não me engano.

Angustiado com o horror dos acontecimentos que assistia impotente pela TV, Rushdie saiu a vagar pelas ruas na tentativa de aliviar a claustrofobia do quarto de hotel. No meio do caminho, avistou um templo ecumênico e entrou sem ter por quê. Lá dentro, alguns perdidos, como Rushdie, tentavam dar conta do sentimento geral de estupefação.

O inglês de origem indiana nos falou da solidariedade que se estabeleceu no lugar e do bem que a experiência entre pessoas desconhecidas lhe trouxe. A mesa fez um silêncio sincero, até que a mudez deu lugar a um discreto desconforto com a continuidade conversa.

"Salman...", arrisquei, "Depois de passar anos escondido, depois de todos os países pelos quais o senhor passou, não lhe veio um pânico terrível de ver justamente a cidade que havia escolhido para viver servir de alvo dos que o perseguiam?".

Surpresa, vi o rosto barbudo que tantas vezes cruzei no noticiário se virar para mim indignado. Em um inglês claro e pausado, Rushdie me passou uma descompostura violentíssima. Reiterou mais de uma vez que jamais pensaria em si mesmo no momento em que milhares de pessoas estavam morrendo. "Dying!", repetia ele, com os olhos pregados em mim.

Emudecemos todos. Eu, para sempre.
A pequena recepção acontecia na avenida Niemeyer, num condomínio espremido entre o mar e a favela do Vidigal. Um tiroteio ecoava do outro lado da rua, no labirinto de casebres que sobe a vertiginosa encosta até as escarpas lisas do morro Dois Irmãos. O som das metralhadoras era tão audível que parecia vir do jardim sobre o oceano.

Diante da reprimenda pela minha indiferença com o sofrimento alheio, vinda do autor de "Os Versos Satânicos", Prêmio Nobel da Literatura e carta marcada do Jihad, tive certeza de que os tiros lá fora, o caos da minha cidade, a miséria sem fim do país, todo o mal que nos rodeia só era possível graças à existência de egoístas abjetas como eu.

Não é um sentimento raro. O convívio com as grandes tragédias transforma qualquer drama existencial burguês em devaneio vil. A ira de Rushdie tem fundamento.

No livro "A Educação Sentimental", Gustave Flaubert narra a formação moral e sensual de Frédéric Moreau, que alimenta um amor platônico por uma mulher casada, a Senhora Arnoux. O pano de fundo é a Revolução de 1848 na França.

Bebendo à tarde, só, num bar da tumultuada Paris, Frédéric testemunha a entrada de um reformista no recinto. Com um discurso inflamado, o rapaz incita os presentes a se juntarem às hordas insatisfeitas e sai levando consigo meia dúzia de gatos pingados. Frédéric admira por alguns instantes o altruísmo dos revoltosos para concluir, em seguida, que seria incapaz de atitude semelhante. Constatação feita, o herói volta ao copo e aos devaneios emotivos de seu coração imberbe.

Eu tenho culpa de amar Flaubert.

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